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Querela pacis e a verdadeira vida da paz
Embora um filósofo que possua várias limitações, Erasmo de Rotterdam, há mais de 500 anos escrevia o Querela Pacis, um lamento da Paz, que falava em primeira pessoa sobre a Paz e dizia “a paz precisa sempre de alguém que lhe dê voz”, assim é antes uma atitude do interior do Ser.
Os textos de Byung-Chul Han, destaco três: A sociedade do Cansaço, A crise da narração e Vita Contemplativa, podem parecer alienantes num mundo em pé de guerra, mas é um texto que aponta também este caminho, uma paz interior que dê voz ao mundo da pura exterioridade.
Diz na Crise da Narrativa: “a filosofia como ´poesia´(mythos) é um risco, um belo risco. Ela narra, até mesmo ousa, uma maneira nova de viver e ser” (Han, 2023, p. 106), destaques do autor, aponta até mesmo a concepção do Iluminismo e de Kant sobre a alma, como “ousada”, mas são narrativas e mais a frente lembra que Nietzsche apontará um mundo “transnarrado”.
É a partir deste autor que apontará um mundo onde “uma narrativa do futuro, baseada em uma “esperança”, em uma “fé” no amanhã e no depois de amanhã” (Han, 2023, p. 108) que é aquela mesma que o autor aponta em outro texto como o “já”, mas não “ainda”.
O que aconteceu com a filosofia na atualidade, e isto transbordou para as outras ciências é que “no instante em que a filosofia reivindica ser uma ciência, ser uma ciência exata, seu declínio começa. A filosofia como ciência renega seu caráter narrativo imaginário” (p. 108).
Como diz o autor “se priva de sua linguagem. Emudece” (idem), se esgota na administração da história, e é incapaz de narrar (p. 109), daí todas as modernas narrativas.
Depois o autor apontará a narração como cura, das páginas 111 até 129, para desembocar no capítulo seguinte “a comunidade narrativa”, que recupera a capacidade de narrar e imagina “uma família mundial” (p. 125), para além da nação e da identidade, esta é a paz desejada.
A pax romana e até mesmo a paz eterna (Kant) não saem dos limites das narrativas pessoais ou da identidade restrita a grupos, esta narração do cidadão do mundo, deve partir de vozes que tenham capacidade de ver a humanidade como família, como um todo na diversidade.
Eis o paradigma da complexidade desenvolvido nos posts desta semana: “o indivíduo vive no todo e o todo no indivíduo. É por meio da poesia que se origina a mais alta simpatia e a coatividade, da comunidade mais íntima” (Han, p. 125), lembrando um texto de Schriften Novalis), esta paz vem da voz interior, mas aponta para a coletividade, para a humanidade.
Esta paz beatífica, divina e verdadeira (Pax et Spes) é que pode dar voz a uma paz efetiva e duradoura.
HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023
Se a noite da humanidade vier
O que fazer se a crise civilizatória chegar aos limites humanos e continuar a se humanizar? abordamos em posts anterior a tomada de consciência que Edgar Morin trás no capítulo 4 do livro Terra-Pátria sobre as “nossas finalidades terrestres”
É nele que o autor trabalha também o aparente paradoxo: conversar/revolucionar, trata- se de entender a mudança sem abandonar os principais princípios humanitários: “A tomada de consciência de nossas raízes terrestres e do nosso destino planetário é uma condição necessária para realizar a humanidade e civilizar a Terra” (Morin, 2003, p. 99) pois o adjetivo “revolucionário” tornou-se reacionário e muito manchado de barbárie” (idem).
O autor acrescenta mais a frente: “Aqui aparece um outro problema: há um poder das ideias sobre a realidade, o que suporia uma realidade e uma força das ideias? Conforme já tivemos ocasião de mostrar, as ideias e os mitos adquirem realidade, impõem-se nos espíritos e podem inclusive impor-se na realidade histórica, violentá-la, desviá-la” (Morin, 2003, p. 126) e isto é muito relevante no contexto atual.
Isto é complementado por Morin ao salientar que “conservar/revolucionar: é o paradoxo progredir/resistir”, onde o resistir é “estar na defensiva em todas as frentes contra os retornos e manifestações da grande barbárie, escrito antes do novo milênio, isto é muito atual em face a possibilidade de guerra.
Escreveu Morin naquela época, o que hoje é a realização de uma profecia: “A primavera dos povos de 1989-1990 sofreu um regelo. Todos os seus germes de liberdade estão em via de destruição. A grande barbárie faz um grande retorno” (Morin, 2003, p.100).
Resistir agora então significa não abandonar valores humanitários, também na atualidade Morin falou sobre “resistência do espírito” que é conservar em nós os mais caros valores da vida, do humanismo e da crença em valores verdadeiramente “divinos”.
Não acreditar que fomos feitos para a guerra, para a barbárie e temos um destino cruel, embora o panorama mundial seja sombrio, é preciso resistir com a armadura da paz.
MORIN, Edgar & Kern, Anne-Brigitte. Terra-Pátria. Trad. Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003.
A crise do pensamento simplista e o complexo
A epistemologia da complexidade é um ramo da epistemologia que estuda os sistemas complexos e fenômenos emergentes associados, em alguns ambientes como na mecânica e na física construíram uma tendência a aprofundar o que até então eram apenas chamados de sistemas dinâmicos, e agora sistemas não lineares ou caóticos.
O processo de industrialização serviu de grande suporte para um desenvolvimento até então impensáveis das ciências naturais, depois a geração de tecnologias: o vapor e a combustão, depois a eletricidade, e tudo parecia mover-se numa engrenagem perfeita.
Tudo se caracterizou até um certo momento em um movimento que Edgar Morin chamou de disjuntor-e-redutor, tanto as ciências como nas artes a ideia de reduzir o que é complexo ao simples (por exemplo, buscar na menor parte da física até então, os átomos) uma realidade que aos poucos mostrou-se complexas (sub-partículas em dimensões cada vez mais microscópicas até chegar ao universo quântico).
As particularidades da física subatômica introduziram incertezas e mostrou os limites do reducionismo que estava levando a uma visão distorcida da realidade, mostrou suas incertezas e ingenuidades, a pretensão de captar uma realidade objetiva que poderia ser independente do observador, quanto o próprio observador faz parte do fenômeno.
Assim esta lógica redutora-reducionista da física ampliou-se para o universo social e pessoal, e mecanismos aparentemente simples poderiam resolver problemas que são complexos, e toda a problematização decorrente desta realidade não foi observada.
O pensamento complexo não se limita ao mundo acadêmico, ele transborda e está presente em diversos setores da sociedade, assim como o simplismo de raciocínios que não contemplam a complexidade e a diversidade da vida social.
Também no mundo espiritual (ou subjetivo como poderia pensar quando vemos os objetos foram da realidade do sujeito) este equívoco nos conduz a uma porta larga, onde os valores básicos do humanismo podem ser ignorados e a vida fragmentada.
Assim a porta por onde passam lógica simplistas e triviais conduzem a grandes e problemáticos enganos, enquanto a complexidade de um caminho socialmente justo e verdadeiro não se reduz às formas ideológicas simplistas e pouco humanas.
Passar pela porta estreita nunca será um caminho fácil, porém o único que pode conduzir a humanidade a um futuro sustentável e realmente humano, de paz, de fraternidade e de valores sociais de respeito a dignidade humana.
Além da fraternidade generosa
O livro de Edgar Morin no capítulo 3, explora as “fontes biológicas da fraternidade: a ajuda mútua”, aborda o equívoco (de interpretação) da darwinismo tornado social ,“A origem das espécies por meio da seleção natural” (a obra é de 1859-1860), além de outros autores seu livro Método 2 “A vida da vida”, onde aponta que há uma solução da problemática entre a cooperação e conflito, para entender inclusive as sociedades.
Assim responde a esta “complexa relação”, presente em todas sociedades, há uma relação “complementar e antagônica (dialógica) entre solidariedade e conflitualidade.
Abre o quarto capítulo apoiando-se na filosofia de Heráclio (540-470 a.C.) “Concórdia e discórdia: pai e mãe e todas as coisas” o autor se vale da ideia do próprio universo: sua formação, desenvolvimento, dispersão e morte, mais ainda apoiado nas descobertas do mega telescópio James Webb (o livro é mais antigo) e hoje com a ampliação da cosmovisão se confirma.
O quinto capítulo finalmente chegamos a uma concepção mais complexa de fraternidade, para Morin as três noções: paternidade, maternidade e fraternidade, argumenta que, diferente do que a sociedade patriarcal demonstrou, o conceito de pai é tardio na história da humanidade.
Lembra que a ideia de macho (pai) e fêmea (mãe) não é um conceito universal para toda a natureza, e com isto a relação de irmandade (conceito mais horizontal de fraternidade) é o que deve prevalecer, mas lembra que os conceitos de nascimento e dependência, são muito importantes para o mutualismo e cooperação, estes sim presentes em todas formas de vida.
Para desenvolver o sexto capítulo recorre a experiências pessoais, e lembra que as esferas da fraternidade no interior de uma família, estão na origem das fraternidades externas que encontramos nas relações sociais no decorrer da vida.
As experiências do autor vão se tornar mais explícitas no capítulo 7 “minhas fraternidades” que são vivências do autor e um capítulo breve e inspirador que esclarece o posicionamento do autor sobre um tema tão importante num contexto dramático civilizatório que vivemos.
O autor assim apresentação o que chama no capítulo 10, de um “Oásis de Fraternidade”, onde a sociedade moderna, da globalização, contra a redução da vida humana a uma dimensão só “tecnoeconômica” que reduz o humano a uma dimensão particular mais material da vida.
Muito antes da crise atual, que Morin parecia antecipar, vai escrever nos capítulos finais “Mudar de via?” onde nossos problemas sociais ambientais são resposta ao Sapiens demens (ligados apenas a tecnologia, ao transumanismo e agora a inteligência artificial), somente uma mudança radical de via podemos recuperar a serenidade, a paz e uma volta ao processo civilizatório.
MORIN, E. Fraternidade: para resistir à crueldade do mundo, trad. Edgar de Assis Carvalho, São Paulo SP: ed. Palas Athena, 2019.
Conservar/revolucionar e resistir
O que fazer se a crise civilizatória chegar aos limites humanos e continuar a se humanizar ?.
A resposta de Edgar Morin está no capítulo 4 do livro Terra-Pátria ao estabelecer “Nossas finalidades terrestres”, onde estabelece: “A tomada de consciência de nossas raízes terrestres e de nosso destino planetário é uma condição necessária para realizar a humanidade e civilizar a Terra” (Morin, 2003, p. 99), e salienta que a primeira é conservadora e negligencia “deliberadamente aqui o adjetivo “revolucionária”, que se tornou reacionário e muito manchado de barbárie” (idem) e basta ver as atrocidades do escalonamento das guerras atuais.
Conservadora porque “trata-se de preservar, de salvaguardar não apenas as diversidades culturais e naturais degradadas por inexoráveis processos de uniformização e destruição, não apenas as conquistas civilizacionais ameaçadas pelos retornos e as manifestações de barbárie” (idem p. 99) não podemos regredir nos marcos civilizatórios que já alcançamos, mais que isto, é preciso evoluir.
É um paradoxo, mas justificável: “A conservação tem necessidade da revolução que asseguraria a busca da hominização” (Morin, 2003, p. 100) onde o paradoxo “aparentemente contraditório, conservar/revolucionar: é o paradoxo progredir/resistir” (idem), onde o resistir é “estar na defensiva em todas as frentes contra os retornos e manifestações da grande barbárie, escrito antes do novo milênio, isto é muito atual em face a possibilidade de guerra.
Resistir, para o autor, é se antepor a duas barbáries crescentes: a “crueldade odiosa” que se exprime “no assassinato, na tortura, nos furores individuais e coletivos” e a “crueldade anônima vem da barbárie tecno-burocrática” de estados totalitários assumidos ou presumidos.
Assim, o autor que fala da “hiper-especialização”, “anonimização, da abstração, da mercadorização que conduzem juntas à perda não apenas do global” vê a necessidade imperiosa de resistir a esta mentalidade que conduz necessariamente a barbárie e ao processo de degradação.
Assim a busca “da hominização deve ser concebida como o desenvolvimento de nossas potencialidades psíquicas, espirituais, éticas, culturais e sociais” (p. 101) é parte deste paradoxo resistir/revolucionar, assim o desenvolvimento deve ser concebido de maneira antropológica, isto é, “romper com a concepção do progresso como certeza histórica para fazer dele uma possibilidade incerta …” (p. 102).
E acrescenta ele deve “compreender que nenhum desenvolvimento é adquirido para sempre: como todas as coisas vivas e humanas, ele sofre o ataque do princípio de degradação e precisa incessantemente ser regenerado” (p. 102) e aponta a ideia falsa de desenvolvimento, pois “: o subdesenvolvimento dos desenvolvidos aumenta precisamente com seu desenvolvimento tecno-econômico” (p. 104), a guerra e os conflitos partes justamente dos “desenvolvidos”.
Assim a noção de subdesenvolvimento: “por mais bárbara que seja, estabelece um vínculo antropológico entre os ditos desenvolvidos e os ditos subdesenvolvidos; ela incita a uma ajuda técnica e médica útil – abrir poços, desenvolver fontes de energia, lutar contra as endemias e as carências nutricionais -, embora se efetue em condições de exploração económica, de degradação natural e de urbanização miserável que ocasionam novos males” (p. 105).
Assim é preciso “suportar” as diferenças e até estabelecer vantagens sobre elas, não mais ignorar ou demonizar culturas diferentes, estabelecer ajuda e acordos para o desenvolvimento global e o processo de ampla humanização, que o autor chama de “hominização”.
MORIN, Edgar & Kern, Anne-Brigitte. Terra-Pátria. Trad. Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003.
Uma nova revolução copernicana
O centro de nosso universo não é mais o sol, no centro de nossa galáxia o que existe é um buraco negro, apesar do nome parecer ser negativo, segundo as novas teorias depois do super telescópio James Webb ele é apenas uma nova realidade além do pensamento físico atual, chamado Sagitário A* tem um diâmetro de 35 milhões de quilômetros e é o objeto mais massivo da galáxia (primeira foto feita em 2017 pelo telescópio Event Horizon, Feryal Ozel).
Edgar Morin aponta esta e outras mudanças científicas de nosso século mais “formidáveis” que as ideias aparentemente revolucionárias de nosso tempo que pouco ou nada mudaram na concepção social, humana e de mundo que ainda tempo.]
Escreveu Morin: “Tivemos que abandonar um universo ordenado, perfeito, eterno por um universo em devir dispersivo, nascido na irradiação, no qual atuam dialogicamente, isto é, de maneira ao mesmo tempo complementar, concorrente e antagónica, ordem, desordem e organização” (Morin, 2003, p. 62), e ainda: “estamos num universo que não é nem banal, nem normal, nem evidente” (p. 63) e deveríamos pensar assim também da vida humana e social.
Assim nossa minúscula casa num universo quase-infinito é “… é um pequeno cesto de lixo cósmico transformado de maneira improvável não apenas num astro muito complexo, mas também num jardim, nosso jardim” (p. 64) e assim deveríamos pensar e não em conflitos.
“Nossa árvore genealógica terrestre e nossa carteira de identidade terrestre podem hoje finalmente ser conhecidas” (p. 64) e aponta para isto a evidência de nossos problemas.
A primeira evidência que aponta é o desregramento econômico: “Não poderíamos considerar a economia como uma entidade fechada. Trata-se de uma instância autónoma dependente de outras instâncias (sociológica, cultural, política), também elas autónomas/dependentes umas em relação às outras” (p. 65), assim as guerras atuais não são senão a disputa de mercados onde poderiam reconhecer a interdependência e autonomia de cada economia.
A segunda e a crise ecológica: aponta o relatório Meadows encomendado pelo Clube de Roma em 1972, mas também: “as grandes catástrofes locais com amplas consequências: Seveso, Bhopal, Three Mile Island, Chernobyl, secagem do mar de Arai, poluição do lago Baikal, cidades no limite da asfixia (México, Atenas)” e agora mais recentemente Fukushima e as catástrofes naturais.
Apontava ainda a crise de desenvolvimento e a crise universal do futuro, aquela que estamos mergulhados hoje, com ódios e guerras mundiais escalando onde o amor e a fraternidade se encontram sufocados.
“Assim, por toda parte, o desenvolvimento da tríade ciência/ técnica/ indústria perde seu caráter providencial. A ideia de modernidade permanece ainda conquistadora e cheia de promessas onde quer que se sonhe com bem-estar e meios técnicos libertadores” (p. 76).
Sem um retorno ao bom senso, à cooperação mundial e a fraternidade a crise será profunda.
MORIN, Edgar e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Patria. Trad. francês por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003
A identidade e a família humana
Temos identidades e culturas regionais, ligados as nações, o fato que existem nacionalidades não deveria ser contrário a existência e visão de uma família humana, não apenas pela nossa identidade genética e animal, mas principalmente pela nossa vida e relações em comum.
Edgar Morin, em seu livro Terra-Pátria (Editora Sulina, 2003) traça as origens de uma visão do homem ligado a natureza (e por consequência ao Cosmos), que irá se desenrolar nas visões de Bacon, Descartes, Buffon e Marx (Morin, 2003, p. 54) que fizeram do homem “um ser quase sobrenatural que progressivamente assume o lugar vazio de Deus” (idem), porém isto disparou uma visão arrogante e autoritária perante o Cosmos e o Outro.
Como isto regredimos em nossa visão planetária: “A identidade do homem, ou seja, sua unidade/diversidade complexa, foi ocultada e traída, no cerne mesmo da era planetária, pelo desenvolvimento especializado/compartimentado das ciências” (pg. 61), uma visão xenófoba de nacionalismo e de identidade agora explode inibindo uma visão da família humana.
Escreve Morin: “A nação e a ideologia edificaram novas barreiras, suscitaram novos ódios. Deixam de ser humanos o islamita, o capitalista, o comunista, o fascista. “ (pg. 60), note-se que isto foi escrito 1993 (a primeira edição original em francês).
Nossa visão de homem se reduziu, aponta Morin: “A filosofia, encerrada em suas abstrações superiores, só pôde se comunicar com o humano em experiências e tensões existenciais como as de Pascal, Kierkegaard, Heidegger, sem, no entanto, jamais poder ligar a experiência da subjetividade a um saber antropológico” (idem, pg. 61), a visão destes autores parece etérea.
Isto ocorreu também nas ciências humanitárias: “A antropologia, ciência muldimensional (articulando dentro dela o biológico, o sociológico, o económico, o histórico, o psicológico) que revelaria a unidade/diversidade complexa do homem, não poderá edificar-se de fato a não ser correlativamente à reunião das disciplinas … “ (pg. 62), e assim o fragmento humano se traduz em pensamento fragmentado.
É esta fragmentação traduzida em guerra e ódio que exige um desocultar do Ser, reclamado por Heidegger e pensadores que o seguiram (Hans-Georg Gadamer, Hannah Arendt e outros), e que está pensado também em Morin: “Donde a necessidade primordial de desocultar, revelar, na e através da sua diversidade, a unidade da espécie, a identidade humana, os universais antropológicos” (p. 60), des-velar (mais que re-velar, que é velar de novo) como diz a ontologia moderna.
A família humana pode ser desocultada em seus interesses comuns: a ecologia, o equilíbrio econômico e principalmente a paz.
MORIN, Edgar e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Patria. Trad. francês por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003
Poder, Ira e Tempo
Em tempo de ameaças e ódios que colocam em cheque não apenas povos, nações e culturas, mas até mesmo o processo civilizatório é bom rever aquilo que pensamos de poder e Ira.
Sloterdijk (2006) tinha desenvolvido a questão de Ira em tempos atuais, num contexto de psicologia política, valores como orgulho, ambição e vaidade contribuem para aquilo que pode ser chamado em tempos de redes, a uma verticalização da vida social.
O autor esclarece que as teorias sociais da “estratificação social na base da dominação, regressão e privilégio” são trocadas pelas ideias de disciplinamento individual (ascese, virtuosidade e desempenho) apontadas como causas da diferenciação vertical.
Isto parecia óbvio tanto para Michel Foucault, patrocinador deste víeis interpretativo, já que denunciava nos anos 70 a intima relação entre discurso e disciplina, por outro lado na visão da viragem linguística, nos seus famosos jogos de linguagem, vinculou esta última com figuras comportamentais e abriu para a sociologia (e algumas meias-filosofias) a compreensão dos rituais latentes, próprios de jogos comunicativos.
Meias-filosofias porque Sloterdijk vai contestar esta leitura e também diversas vertentes da filosofia analítica anglo-americana, que veem nos jogos de linguagens um igualitarista e relativista, não o é.
A chamada tensão vertical, na obra de Sloterdijk, tem grande relevância para a ética e a pedagogia, pois estabelece uma hierarquia entre valores, sem os quais a ética é sabotada, e o educador ao perseguir algo mais alto ao qual o educando está, deve ter algo a mais na alma e no corpo, e isto é seu discurso sobre “a sociedade de exercícios”.
O que estes autores chamam a atenção é a destruição contemporânea da interioridade, tema que Byung-Chul Han vai até a raiz, mas tanto Heidegger, Hannah Arendt e agora Sloterdijk já haviam chamado a atenção para isto: o estar-no-mundo, destruiu aquilo que foi considerado durante milhares de anos como algo mais importante: distinguir-se radicalmente deste mundo.
Em Heidegger este discurso já está presente apontando que o homem como alguém que não dispõe mais de uma interioridade que pode servir de abrigo, para o fugitivo do mundo que ele, eventualmente escolheria ser, as condições modernas, se opõe a certeza de uma vida mais que verdadeira no horizonte da realidade ou num hipotético “fim de mundo”, isto foi escrito muito antes das visões apocalípticas e pseudo-proféticas atuais, sem ver a ausência de ascese.
Hans Jonas escreveu: “age de maneira que os efeitos do seu agir não coloquem em perigo a permanência da vida humana autêntica na terra!” (Jonas, 2006) e Edgar Morin pede uma humanidade (re) humanizada, enfim reverter o processo do poder violento, do ódio e da guerra.
JONAS, Hans. Das Prinzip Verantwortung: Versuch einer Ethik für die technologische Zivilisation. Frankfurt Suhrkamp, 2006.
SLOTERDIJK, P. Zorn und Zeit. Frankfurt: Suhrkamp, 2006.
Ontologia, idealismo e a verdade
O pensamento de Heidegger deve partir da questão do Espírito em Hegel, lido por Byung-Chul em Introdução à Fenomenologia do Espírito “em termos do esquecimento do ser” (questão central de Heidegger), ele a vê como um “eu árido” que encontra “sua limitação ao ente que lhe sai ao encontro” (Han, pg. 334 citando Hegel).
Embora recupere Hegel, em parte, na epígrafe do último capítulo: “a verdade é o todo”, ele rediscute a dialética e sua metafísica no idealismo: “em relação ao “apenas ser” que o esvazia até um nome “que não nomeia mais nada”, a consciência natural … quando se dá conta do ser, assegura que ele é algo abstrato. ” (Han, pg 336).
A consciência natural (vista assim) “se demora em ´perversidades” … “ela tenta eliminar uma perversidade organizando outra, sem se lembrar da autêntica inversão” onde “a verdade da essência do ser se recolhe ao ente” (pg. 336 com citações de Heidegger), que vê nisto um passo atrás e o “já” esquecido, incompreendido (pg. 337), não aparece completamente negado, aparece na forma de “ainda não” que não é uma negação, nem uma barricada, posto “ao lado do já impede que ele se apresente” (pg. 337).
Há todo um desenvolvimento em contraste com a dialética de Hegel, mais que um tópico poderia muito bem ser um livro, porém o diálogo que trava com Derridá e Adorno no capítulo sobre o Luto e o trabalho do luto, encaminha para sua visão do todo fora da abstração dialética, diz a preocupação com a imortalidade, com matar a morte, não é secreta apenas no coração de Platão ou Hegel (pg. 384), seria a principal preocupação com o arquivo “cardiográfico” da história da filosofia, nela o filósofo “trabalha” para reverter o negativo do ser.
Este é o que vai dar base ao seu “trabalho do luto”: “ser capaz da morte como morte”, isto é, ser capaz do luto, esta “tragédia” “se distingue radicalmente do ruidoso trabalho do luto da dialética hegeliana” (Han, p. 385).
“As lágrimas liberam o sujeito de sua interioridade narcísica … elas que o “feitiço que o sujeito lança sobre a natureza” (Han, p. 394) agora citando Adorno, e o autor afirma que a “Teoria Estética é o livro das lágrimas (idem) e que ao contrário de Kant, e que “o espírito percebe, frente à natureza, menos sua própria superioridade do que sua própria naturalidade” (p. 395).
“A experiência estética abala o sujeito narcísico que se julga soberano e faz desmoronar o endurecido princípio do “eu” … a lágrima do sujeito abalado e comovido prova ser capaz de verdade” (pg. 395).
Capaz da verdade, do infinito e para os que creem de Deus, não um Deus dos bens passageiros e de falsa alegria, mas aquela do já, mas não ainda, aquela além da dor e da transitoriedade das coisas temporais.
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
Noética, Ontologia e a guerra
Para Platão noésis é superior à dianóia, que é discursiva e aparentemente lógica, enquanto a primeira é uma elevada atividade mental possível, habitando a esfera do Bem e da Harmonia.
É uma possibilidade de acesso ao mundo “divino” (o sumo bem de Platão que está no eidos), é transcendente, absoluto, além do raciocínio humano comum, os filósofos a perseguem sem ao menos tocar na questão da crença de um Deus superior onde a noésis “habita”, não é Ser, mas atitude mental.
Já a dianóia enquanto habita um raciocínio lógico, matemático e técnico fica preso ao que a mente consegue captar do mundo terreno, mesmo admitindo equívocos, verdades não absolutas e as vezes confusas, elas habitam o cotidiano do humano, também desligado do Ser.
Há uma linha fundacional que vai da fenomenologia à antropotécnica de Peter Sloterdijk e Byung-Chul Han, envolvendo essencialmente a questão do Ser, a ligação entre a noesis e o noema, fragilizada pelo bombardeio de narrativas que o universo digital proporcionou, mas o esquecimento do ser, a ausência de interioridade levaram àquilo que Chul-Han chama de “desauritização” e a “pura facticidade” dita assim:
“O desencantamento do mundo se expressa como desauritização. A aura é o brilho que eleva o mundo para além de sua pura facticidade, o véu misterioso que envolve as coisas” (Han, 2023, p. 80).
Não se trata de negar a facticidade, mas de não permitir sua noesis, isto é a compreensão inicial na mente em toda sua aura, ela faz uma “seleção narrativa”, no dizer de Byung-Chul (falando sobre a fotografia): “Ela estende ou encurta a distância temporal. Ela pula anos ou década. A narratividade se opõe à facticidade cronológica” (Han, 2023, p. 81).]
São estas as mentiras das guerras, são de todas as guerras porque escondem seus reais motivos, mas particularmente das guerras atuais porque usam narrativas para mudar o que é evidente se lido na facticidade cronológica, em exemplo bem atual, o bombardeio na semana passada de um hospital de idosos na Ucrânia (foto) e o bombardeio de bases da ONU no Líbano, isto tem correlação com a crueldade e a ausência de qualquer narração que as justifique.
A paz está nos corações e autoridades que mantem a aura da esperança, o espírito solidário.
HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.