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Uma nova revolução copernicana
O centro de nosso universo não é mais o sol, no centro de nossa galáxia o que existe é um buraco negro, apesar do nome parecer ser negativo, segundo as novas teorias depois do super telescópio James Webb ele é apenas uma nova realidade além do pensamento físico atual, chamado Sagitário A* tem um diâmetro de 35 milhões de quilômetros e é o objeto mais massivo da galáxia (primeira foto feita em 2017 pelo telescópio Event Horizon, Feryal Ozel).
Edgar Morin aponta esta e outras mudanças científicas de nosso século mais “formidáveis” que as ideias aparentemente revolucionárias de nosso tempo que pouco ou nada mudaram na concepção social, humana e de mundo que ainda tempo.]
Escreveu Morin: “Tivemos que abandonar um universo ordenado, perfeito, eterno por um universo em devir dispersivo, nascido na irradiação, no qual atuam dialogicamente, isto é, de maneira ao mesmo tempo complementar, concorrente e antagónica, ordem, desordem e organização” (Morin, 2003, p. 62), e ainda: “estamos num universo que não é nem banal, nem normal, nem evidente” (p. 63) e deveríamos pensar assim também da vida humana e social.
Assim nossa minúscula casa num universo quase-infinito é “… é um pequeno cesto de lixo cósmico transformado de maneira improvável não apenas num astro muito complexo, mas também num jardim, nosso jardim” (p. 64) e assim deveríamos pensar e não em conflitos.
“Nossa árvore genealógica terrestre e nossa carteira de identidade terrestre podem hoje finalmente ser conhecidas” (p. 64) e aponta para isto a evidência de nossos problemas.
A primeira evidência que aponta é o desregramento econômico: “Não poderíamos considerar a economia como uma entidade fechada. Trata-se de uma instância autónoma dependente de outras instâncias (sociológica, cultural, política), também elas autónomas/dependentes umas em relação às outras” (p. 65), assim as guerras atuais não são senão a disputa de mercados onde poderiam reconhecer a interdependência e autonomia de cada economia.
A segunda e a crise ecológica: aponta o relatório Meadows encomendado pelo Clube de Roma em 1972, mas também: “as grandes catástrofes locais com amplas consequências: Seveso, Bhopal, Three Mile Island, Chernobyl, secagem do mar de Arai, poluição do lago Baikal, cidades no limite da asfixia (México, Atenas)” e agora mais recentemente Fukushima e as catástrofes naturais.
Apontava ainda a crise de desenvolvimento e a crise universal do futuro, aquela que estamos mergulhados hoje, com ódios e guerras mundiais escalando onde o amor e a fraternidade se encontram sufocados.
“Assim, por toda parte, o desenvolvimento da tríade ciência/ técnica/ indústria perde seu caráter providencial. A ideia de modernidade permanece ainda conquistadora e cheia de promessas onde quer que se sonhe com bem-estar e meios técnicos libertadores” (p. 76).
Sem um retorno ao bom senso, à cooperação mundial e a fraternidade a crise será profunda.
MORIN, Edgar e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Patria. Trad. francês por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003
O cosmos, a noosfera e a perdição
No capítulo sobre “A perda da salvação, a aventura desconhecida” do livro Terra-Pátria de Edgar Morin ele lança um olhar profundo sobre a nossa falta de cosmovisão e a perdição em nossas microscópicas preocupações que não olham um mundo e uma realidade maior a nossa volta.
Diz no início: “Se houvesse navegadores do espaço, sua rota no aglomerado de Virgem ignoraria a muito marginal Via Láctea e passaria longe do pequeno sol periférico que tem em sua órbita o minúsculo pla- neta Terra. Como Robinson em sua ilha, pusemo-nos a enviar sinais em direção às estrelas, até agora em vão, e talvez em vão para sempre. Estamos perdidos no cosmos” (Morin, 2003, p. 163).
Acrescenta: “Este mundo que é o nosso é muito frágil na base, quase inconsistente: nasceu de um acidente, talvez de uma desintegração do infinito, a menos que consideremos que surgiu do nada” (idem, p. 163).
Mas o homem na modernidade agigantou seu ego, quer ele próprio ser uma espécie de “Homo Deus” usando a metáfora de Yuval Harari, cujo subtítulo é “uma breve história do amanhã”, também pessimista como Morin, porém o autor de Terra-Pátria espera que o homem encontre um novo futuro mais promissor.
Morin ainda que reconheça que “A vida, a consciência, o amor, a verdade, a beleza são eféme- ros … Estamos na itinerância. Não marchamos por um caminho demarcado, não somos mais teleguiados pela lei do progresso, não temos nem messias nem salvação, caminhamos na noite e na neblina” (pgs. 164-165), acrescenta: “Estamos na aventura desconhecida. A insatisfação que faz recomeçar a itinerância jamais poderia ser saciada por esta. Devemos assumir a incerteza e a inquietude, devemos assumir o dasein, o fato de estar aí sem saber por que” (p. 166) lembrando esta categoria cara a Heidegger, que elaborou o “esquecimento do ser”.
Como recomeçar a itinerância, poderíamos perguntar, o autor dá uma “Boa-má nova” (lembrando a boa nova significado da palavra Evangelho): “Eis a má nova: estamos perdidos, irremediavelmente perdidos. Se há um evangelho, isto é, uma boa nova, esta deve partir da má: estamos perdidos, mas temos um teto, uma casa, uma pátria: o pequeno planeta onde a vida criou seu jardim, onde os humanos formaram seu lar, onde doravante a humanidade deve reconhecer sua casa comum (pg. 166), e a resposta mesmo agnóstica, não é diferente da evangélica.
E então lembra deste apelo: “O apelo da fraternidade não se encerra numa raça, numa classe, numa elite, numa nação. Procede daqueles que, onde estiverem, o ouvem dentro de si mesmos, e dirige-se a todos e a cada um. Em toda parte, em todas as classes, em todas as nações, há seres de “boa vontade” que veiculam essa mensagem” (Morin, 2003, p. 167).
E aqueles que conhecem esta mensagem, esta esperança não podemos permanecer calados, indiferentes ou o que é muito pior, aderir a desesperança, devem lembrar daquela mensagem evangélica: “A quem muito foi dado, muito será pedido” (Lucas 12, 39-48) sob a pena da omissão, da distorção ou do abandono da mensagem fundamental da salvação terrena e celeste.
MORIN, Edgar e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Patria. Trad. francês por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003.
Verdade, noética e o Mal
Nos prolegômenos do primeiro volume de Investigações lógicas, Husserl que havia recebido forte influência de Franz Brentano, pai da psicologia social, vê como problema o relativismo e suas bases na visão de mundo turbada, assim à relatividade da existência de um mundo não é objetiva nem subjetiva, mas “a unidade objetiva completa que corresponde ao sistema ideal de todas as verdades de fato, e dele é inseparável” (HUSSERL, 2005, p. 136).
Isto porque cada tipo de objeto tem desdobramentos próprios possíveis, por assim dizer, tem um método próprio prescritos a priori por leis de essência determinadas pelo eidos da objetividade em questão (Husserl, 2006, 309), isto quer dizer que é a essência da objetividade que pré-determina o tipo de desenvolvimento concordante que se tem da experiência dele.
Pode haver a vivência da evidência nesta experiência do objeto, e isto colabora com seu status de ente enquanto um “ser verdadeiro” (Husserl, 2006, p. 309), aquilo que Husserl chamava de “Lebenswelt”, uma lógica da vida, neste caso da vivência experimentada com o objeto.
Assim um objeto que é o “puro X” se mantém estável em meio à multiplicidade de caracteres noemáticos, que se perfilam no decorrer de uma experiência, o objeto visado no pensamento pela consciência humana, ele precede a primeira ideia intuitiva que é a noesis (pensar X).
Essa visão noética é uma síntese de identidade, conceito central para o estabelecimento do objeto “efetivo”, “verdadeiro”, a objetividade apreendida em doação evidente, numa síntese de identidade concordante, é efetivamente, escreveu Husserl:
A todo objeto “verdadeiramente existente” correspondente por princípio (no a priori da generalidade eidética incondicionada) a ideia de uma consciência possível, na qual o próprio objeto é apreensível originariamente e, além disso, em perfeita adequação. Inversamente, se essa possibilidade e garantida, objeto é o ipso verdadeiramente existente” (HUSSERL, 2006, p. 316).
As sínteses envolvidas no pensamento fenomenológica, para o estabelecimento do “ser” ou do “não-ser” dos objetos correlatos noemáticos são “intencionalidades de ordem superior”, é aquilo que Husserl retirou do pensamento neotomista de Franz Brentano, livra-se do psicologismo, do eidos que temos do bem e do mal ainda escolástica do pai da psicologia social.
A intencionalidade de doação evidente dos aspectos ainda não presentes do objeto formam um horizonte intencional, na visão de Husserl, traz por sua vez, suas potencialidades já pré-determinadas, assim são falsas as visões fáticas de guerra e paz, de demônio e do mal.
São as intencionalidades mal-formadas (no sentido que não tem uma verdade noética), a verdade enquanto “ser”, enquanto “o verdadeiro” nas leituras fáticas e idealistas, são para Husserl uma “efetividade” (Wirklichkeit) já que guarda coerência em seu núcleo.
Assim o pensamento tradicional pensa ser ortodoxo ao se referir ao outro como “mal” ou como “demônio”, quanto na verdade esconde a intencionalidade noética de seu interior.
Husserl, E. Investigações lógicas. Primeiro volume: Prolegômenos à lógica pura. Tradução de D. Ferrer. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2005.
Husserl, E Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Tradução de M. Suzuki. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006
A narrativa e a verdade
Não são apenas alguns pensadores como Edgar Morin, Peter Sloterdijk e Mario Bunge que reclamam da dificuldade de elaborar o pensamento de modo verdadeiro, os fundamentos se perderam e as narrativas dominam até mesmo áreas como a ciência e a religião, sem falar da política que é o reino das narrativas, a paz, o clima e a seguridade social são parte da retórica.
No livro de Byung-Chul Han “A crise da narração” ele recupera um ensaio do escritor húngaro Peter Nadás “Betsutsame Ortsbestimmung” (penso que não há tradução para o português, mas Han traduziu o título como Localização pendente), narra a história de uma aldeia onde ao centro se encontra uma enorme pereira selvagem.
Nadás descreve esta aldeia como uma comunidade narrativa que se reúne ao redor da pereira “nas noites quentes de verão” para uma “contemplação ritual” e ratifica o “conteúdo coletivo da consciência” (Han, 2023, p. 121), nela não há “opinião sobre isso ou aquilo, mas narram ininterruptamente uma única grande história” (Há, p. 122) e onde se costumava “cantar baixinho … Hoje já não há mais dessas árvores e o canto da aldeia emudeceu” (Nadás, apud Han, 2023, p. 122).
Acrescenta o filósofo coreano: “Aquela ´contemplação ritual´ que ratifica o conteúdo coletivo da consciência dá lugar ao barulho da comunicação e da informação” (Han, p. 122), “aquele “canto” que sintoniza os moradores da aldeia em uma história, e assim, os une” (Idem).
Aquilo que vivem da comunicação “barulhenta” “não cria nenhuma coesão social, não cria um Nós. Pelo contrário, ela desmantela tanto a solidariedade quanto a empatia” (Han, 2023, p. 123).
A crítica filosófica de Han é clara: “Mas nem todas as narrativas constitutivas de uma comunidade se baseiam na exclusão do Outro, na medida em que existe também uma narrativa inclusiva que não se apega a uma identidade” (Han, 2023, p. 124) e cita até mesmo A paz perpétua de Kant, em que pese todo seu idealismo conservador.
Seu universalismo é claro: “todo ser humano usufrui de hospitalidade irrestrita. Todo ser humano é um cidadão do mundo … Ele [Novalis] imagina uma ´família mundial´ para além da nação e da identidade. Ele eleva a poesia como uma forma de reconciliação e amor” (p. 125).
O autor, apoiado em Novalis, refere-se também a questão da complexidade que contempla o todo: “O indivíduo vive no todo e o todo no indivíduo. É por meio da poesia que se origina a mais alta simpatia e coatividade, a comunicação mais íntima” (Han, 2023, p. 125).
HAN, B.-C. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
A diferença do Amor divino
É como no dia-a-dia pela secularização ou por descrença colocar o Amor em um patamar meramente humano, a leitura que Hannah Arendt faz de Santo Agostinho em sua tese de doutorado, permanece entre estas duas interpretações o Amor humano e o Divino.
Para analisar isto, Arendt qualquer interpreta a obra de Agostinho governada por três princípios que aparecem sem aparente contradição, ele aumentou sua rigidez dogmática de Agostinho na medida em que o cristianismo se insere em seu pensamento, esta consiste de sua da passagem do pensamento pré-teológico, filosófico, para o pensamento teológico, conforme a autora.
Assim a primeira parte da tese da autora, intitulada o “Amor como desejo: o futuro antecipado”, ela aborda o amor dentro de uma perspectiva filosófica de continuidade do pensamento helênico, em que o amor é visto como uma disposição sempre movida pela falta, por algo que não se possui, mas que se espera ter, como meio de alcançar a felicidade, assim o desejo é algo ainda não alcançado enquanto o Amor é o desejo obtido, e isto é filosófico.
Estes dois tipos de Amor recebem em Agostinho dois nomes: a caritas e a cupiditas, diferem no amor pelo objeto que amam, “porém, tanto o amor certo quanto o errado (caritas e cupiditas) possuem isto em comum – ânsia desejosa, quer dizer, appetitus”, escreveu a autora.
Caritas é o amor puro, verdadeiro, porque deseja a Deus, a eternidade e o futuro absoluto, enquanto a cupiditas ama o mundo, as coisas do mundo, aqui é pré-teológico, porque a caridade não é apenas um amor passageiro, ou desejo de um bem passageiro, mas do eterno.
Seja religioso ou não, estamos entre o desejo e a posse, depois que obtemos o objeto desejado em geral, e usufruindo do prazer desta posso a cupiditas passa e ficará algo eterno se nela houver a caritas, isto é um Amor Eterno, que dá uma posse eterna e então não passa.
Assim o homem que tem esta busca, deve se recolher em seu interior, e dentro de si, se isolando do mundo, penetra na “quaestio” agostiniana, o fio condutor que Arendt persegue: “pois quanto mais ele se retirava para dentro de si e recolhia a si mesmo na dispersão e da distração do mundo, mais ele se tornava uma ´uma questão para si mesmo´”, escreveu a autora.
Toda filosofia tem uma questão básica, e a de Agostinho se torna teológica: “O que eu amo, quando amo o meu Deus?” (Confissões X, 7, 11 apud Arendt p. 25), ainda que seja “no mundo”.
Assim a segunda parte de sua tese recebe o nome “e “Criatura e Criador: o passado rememorado”, no livro X de Confissões. “A memória, então, abre o caminho para um passado transmundano como a fonte original da própria noção de vida feliz” escreveu a autora sobre Agostinho.
Ao se propor ao relacionamento com Criador, o homem não se perde, e sim se encontra e isto é diferente de todo tipo de apego mundano, o deus do dinheiro, do consumo ou do desejo.
ARENDT, H. O conceito de amor em santo Agostinho. Tradução de Alberto Pereira Dinis. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
Hannah Arendt e o Amor Mundi
Hannah Arendt foi, a nosso ver, instigada pelo seu drama existencial, e dentro dele, a tomar a questão do Amor, desde cedo com uma questão essencial, escreveu Safransky:
“Em começos de 1924 chegara a Marburg uma estudante judia de 18 anos querendo estudar com Bultmann e Heidegger. É Hannah Arendt. Vinha de uma boa família judia assimilada de Könisberg, onde crescera. Aos 14 anos, sua curiosidade já havia despertado. Leu a Crítica da razão pura, de Kant, dominava grego e latim tão bem que aos 16 anos fundou um círculo de estudos e leitura de literatura antiga. Antes mesmo de suas provas finais no liceu de Könisberg, passou uma temporada em Berlim, onde leu Heidegger e tomou aulas com Romano Guardini (especialista em Kierkegaard)”, escreveu Safranski sobre Hannah.
Ainda adolescente, a pensadora que já havia formado um círculo de filosofia ainda adolescente, escreve suas primeiras preocupações, Hannah Arendt redige o poema Consolo (Trost):
“As horas correm, Die Stunden verrinnen / Os dias passam, Die Tage vergehen, / Resta uma graça Es bleibt ein Gewinnen / O simples persistir. Das blosse Bestehen.” (Young-Bruehl, Hannah Arendt, Por amor ao mundo, p. 53).
Numa carta de Heidegger a ela, “E o que podemos fazer além de nos abrirmos, além de deixarmos ser o que é? Deixar ser de tal modo que o amor se torne para nós uma alegria pura/ casta (reine Freude) e a nascente de cada novo dia de vida. Ser elevado ao que somos. De qualquer maneira, seria possível que um de nós ‘dissesse’ e se abrisse ao outro. Só podemos dizer, contudo, que o mundo não é mais meu nem seu, mas nosso”.
Pensar o mundo como “nosso” e não meu é uma necessidade de nosso tempo, um passo essencial para nossos problemas mundiais, ao ler A tese de doutorado de Hannah “O conceito de amor em Santo Agostinho” (ARENDT, 1998), entendemos que houve uma tentativa de ultrapassar o existencial e chegar à essência do amor e a busca do amor mundi.
Ao ler Agostinho de Hipona, objeto de sua tese de doutorado, ela observa a separação entre Amor e gozo: “essa alegria está em amar o amor sem inscrevê-lo em algo particular e passageiro”, e então enfatiza: “O amor espera encontrar com a eternidade a sua própria realização” (Arendt, O conceito de amor em Santo Agostinho, p. 35).
Apesar desta referência à “eternidade” Arendt não chega àquela virtude teologal: amor, que deve ser conjugada de modo “existencial” como fé e esperança, já que na eternidade, para os que creem, a fé e a esperança já estarão em plenitude no Amor.
ARENDT, H. O conceito de amor em santo Agostinho. Tradução de Alberto Pereira Dinis. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
SAFRANSKI, R. Heidegger, um mestre da Alemanha entre o bem e o mal (biografia). Tradução de Lya Luft. Apresentação de Ernildo Stein. São Paulo: Geração Editorial, 2000.
A alegria, o sacrifício e a dor
A dor faz parte da realidade humana, e assim nenhuma alegria é perene se não entende o sacrifício, na etimologia da palavra “ofício sagrado”, não é exatamente a dor, conforme descreve Byung-Chul Han em A sociedade paliativa: a dor hoje, a dor sem sentido, é a “aflição corporal” a dor se coisificou, perdeu um sentido ontológico e de certa forma “escatológico”, “a dor sem sentido é possível apenas em uma vida nua esvaziada de sentido, que não narra mais.” (Han, 2021, p. 46).
Han cita autores da literatura como Paul Valéry, para quem em seu livro o personagem Monsieur Teste “Se cala em vista da dor. A dor lhe rouba a fala” (Han, 2021, p. 43), e também Freud, para quem “a dor é um sintoma que indica um bloqueio na história de uma pessoa. O paciente, por causa de seu bloqueio, não está em condições de avançar na história” (p. 45).
É com a mística cristão Teresa d´Ávila, como uma espécie de contrafigura da dor, “nela a dor é extremamente eloquente. Com a dor começa a narrativa. A narrativa cristã verbaliza a dor e transforma também o corpo da mística em um palco … aprofunda a relação com Deus … produz intimidade, uma intensidade” (p. 44), para quem não sabe foi com sua leitura que a filósofa Edith Stein, discípula de Husserl como Heidegger, se converte ao ler Teresa cristianismo, não por acaso receberá o nome novo Teresa Benedita da Cruz.
O sacrifício é a arte de viver de modo alegre a dor, claro é equívoco pensar e desejar a dor, se ela vem porém, e algum dia virá, ela pode ressignificar como “ofício sagrado” oferecido, Byung-Chul Han escreveu sobre ele: “O sofrimento não é um sintoma, nem é um diagnóstico, mas uma experiência humana muito complexa”, só penetraram nele grandes místicos.
No evangelho de Marcos (Mc 9,31), Jesus choca os discípulos ensinando em segredo, E dizia-lhes: “O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão. Mas, três dias após sua morte, ele ressuscitará”, e depois nega toda forma de poder humano: “quer quiser ser o primeiro seja o servo de todos” e por último ensina a simplicidade das crianças: “quem acolher uma destas crianças é a mim que acolhe”, é diferente do que pensam hoje.
Compreender a dor, a lógica invertida de poder e a simplicidade e inocência das crianças é uma lógica distante numa civilização em crise, hedonista, autoritária e cheia de malícia.
HAN, BYUNG-CHUL. A Sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado, Petrópolis: ed. Vozes, 2021.
A alegria em meio à crise
É possível manter a alegria em meio a crise, dificuldades econômicas e guerras que nos ameaçam ? Não se trata de ingenuidade ou mera alienação, outros preferem pensar em manter seus bens essenciais: alimentação, saúde e moradia segura.
Byung-Chul teoriza que apesar da “diferença” entre Derridá e Heidegger (vejam os posts sobre o livro do autor sobre O coração de Heidegger) há uma afinidade estrutural na visão de luto dos dois, está caracteriza pela renúncia da autonomia do sujeito em Derrida: “Por mais narcisista que nossa especulação subjetiva siga sendo, ela não pode mais se fechar a esse olhar, diante do qual nós mesmos nos mostramos no momento em que o convertemos em nosso luto ou podemos desistir dele [faire de lui notre dueil], fazendo nosso luto, fazendo de nós mesmos o luto por nós mesmos, quero dizer, luto pela perda de nossa autonomia, por tudo que nos fez a nós mesmos a medida de nós mesmos” (Han, p. 430 citando o texto de Derridá “Krafter der Trauer”, fortalecedor da dor), isto é, ambos tem em comum uma visão de renúncia a autonomia do sujeito, o “eu” do idealismo.
Aqui o importante é não deixar o luto trabalhar (lembremos o conceito já visto nos posts do “luto do trabalho”) ele é substituído em Derridá por um jogo do luto: “contudo quanto mais alegre a alegria tanto mais pura a tristeza que nela dorme. Quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria …” (Han, pg. 430-431), mas o luto de Heidegger, explica Han, não mata a morte, tentar matá-la resulta em algo ainda pior: “o querer ressuscitar, ultrapassar violenta e ativamente o limite da morte só os arrastaria (os deuses) para uma proximidade falsa e não divina e traria a morte em vez nossa vida” (Han, pg. 431-432 citando Heidegger).
Heidegger explica que é “não é um sintoma que posa ser eliminado pela contabilidade psicoeconômica. Ele não tem um traço deficitário que implique o trabalho (de luto).”.
Este “retirado” ou “poupado” para o qual bate o coração “santo e enlutado” de Heidegger não é submetido à economia, este “poupado” não se pode gastar nem capitalizar, é portanto aquele que está e caracteriza a renúncia, Han não exemplifica, mas podemos pensar em ajuda humanitária em desastres e guerras, já que vai caracterizar a identidade de renúncia e agradecimento como concebível fora da economia, usando termos heideggerianos “suportar pesarosamente a necessidade de renunciar” e promete a “impensável doação”.
Diz uma frase profunda e sábia de Heidegger, a renúncia é a “forma mais elevada de posse”, parece contrário, mas só temos de fato aquilo que podemos dar pois do contrário é mercadoria de troca, e mais ainda renúncia se torna agradecimento e “dever de agradecimento”, esta dor aumenta aprofundando se torna alegria: “quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria que nela repousa”. (pg. 433), mas não se torna nem sublimação, que nos obriga “trabalhar”, pois é a “inibição de todo rendimento” e a “consciência do vazio e da pobreza do mundo”.
Elogio da miséria alguém poderia pensar, não é um elogio a alegria moderada e contínua, diferente da euforia e êxtase que é seguida de depressão, “a falta do divino acarreta o luto, remonta a um obstinado esquecimento do ser, no qual Heidegger inscreve o divino” (Han, p. 433-434), mas certamente não é ainda o divino bíblico, mas cerca-o.
A recompensa e a alegria do Divino inscrito no ser, é aquela que renuncia e doa, mas sabe que haverá recompensa de receber cem vezes mais não em bens, mas em alegria.
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
O céu pode falar
Sloterdijk supõe o tempo que através dos tempos os homens “fizeram deuses falarem”, assim diz também da “fala” de Jesus, e diz com propriedade histórica: “Por fim, esses que foram invocados em demasia também se deram a conhecer por meio da encarnação pessoal: algumas vezes tomaram a liberdade de recorrer a corpos aparentes que iam e vinham conforme lhes aprazia.” (pg. 22), é verdade e isto significa: Não usar o nome de Deus em vão.
Mas o raciocínio histórico ajuda melhor na outra alternativa do uso de “Deus”: “ … ou se condensaram “na plenitude do tempo”, em um Filho do Homem, em um Messias salvador. Depois que Ciro II, o rei dos persas famoso por sua tolerância religiosa, permitiu aos judeus que tinham sido levados em cativeiro para a Babilônia o retorno à Palestina no ano de 539 a.C., pondo fim a um exílio de quase sessenta anos … a elite espiritual dos judeus ficou muito mais receptiva a boas-novas de cunho messiânico — o Segundo Isaías deu o tom para isso.” (pg. 22).
Diz corretamente ao chamar “panegírico” (culto a um deus abstrato) de Ciro, ele não se converteu nem mesmo abandonou suas crenças em outros deuses, como “instrumento de Deus” ele libertou um povo, lembra o autor também Marcião que cultuava “o deus desconhecido” que vai fazer Paulo chamar os gregos de um povo religioso, porém afirma que o Deus conhecido é o que o apóstolo dos gentios (Paulo) o proclama na figura de Jesus, o Redentor.
A questão da redenção apontada por Sloterdijk do ponto de vista histórico, tem seu sentido pois são momentos que “céu se abriu”, mas o vê como um espetáculo onde “O estágio mais antigo de evidência de fontes sensíveis e suprassensíveis se mostra em forma de comoção dos participantes gerada por um “espetáculo”, um rito solene, uma hecatombe fascinante.” (pg. 24) e isto se repetiu através dos tempos, com grandes oradores e grandes “midiáticos”, mas será este o Deus verdadeiro, de Agostinho como o próprio Sloterdijk o cita (De Vera religione).
Ele também tem razão ao dizer sobre alguns que se julgam com dons “divinos”: “. Em geral, partia-se do pressuposto de que havia intérpretes capazes de associar um sentido prático aos símbolos codificados” (pg. 25), mas novamente não estes falsos oráculos que buscam holofotes.
Veja uma vez que Jesus pede a cura de um surdo/mudo de nascença (Mc 7,34-36): “Olhando para o céu, suspirou e disse: “Efatá!”, que quer dizer: “Abre-te!” Imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade. Jesus recomendou com insistência que não contassem a ninguém. Mas, quanto mais ele recomendava, mais eles divulgavam”, este pequeno detalhe que aparece em muitos milagres, não divulguem, ou seja, não é um espetáculo, não significa não fazer bem feito, no entanto, com sentido sagrado.
O sentido desta cura é mais profundo, além de fazer um mundo e surdo de nascença ouvir e falar, lendo trechos anteriores do evangelista Marcos encontramos a ideia absurda (presente em meios “religiosos” de hoje), usando a ideia mulher siro-fenícia cuja filha tinha um “demônio”, não é a ideia que uma doença ou alguma ocorrência ruim seja “castigo do céu”, pois é do coração do homem que saem as coisas “impuras”: maldades, cobiças, etc.
O Efatá dito para cura de um surdo-mudo de nascença é porque não é uma doença comum, alguém cuja vida e sistema cognitivo não foram ensinados a ouvir e falar, o fez imediatamente, o que é bem complexo, é mudar a mente.
Tempos sombrios, é preciso que surdos ouçam e mudos falem, pois há quem queira calar.
SLOTERDIJK, P. Fazendo o céu falar: sobre teopoesia. Trad. Nélio Schneider. 1a. ed. – São Paulo: Estação Liberdade, 2024.
Vida interior e felicidade
Vivemos a pura exterioridade, o homem moderno não conhece a vida interior, está projetado sobre as coisas e as ações, acredita que pode arrancar dela aquilo que falta interiormente.
Byung-Chul Han em seu ensaio “Vita Contemplativa” cita um conto de Walter Benjamin “Não esqueça o melhor” no qual lembra um rapazinho pastor, “a quem é permitido, em “um domingo”, entrar na montanha de seus tesouros, mas com a instrução enigmática: “não esqueça o melhor”. O melhor significa o não fazer.” (Han, 2023, pg 33).
Fazendo uma leitura do Ser na modernidade, Han escreve: “A crise do presente consiste em tudo aquilo que poderia dar sentido e orientação à vida e está se partindo. A vida nãos e apoia em nada resistente que a sustente.” (pg. 87), lembra citando Hanna Arendt que afirma “encontrar incerto abrigo na escuridão do coração humano” que ainda tem a capacidade de dizer: “de recordar e dizer: para sempre” (idem) e lembra neste aspecto a imortalidade.
Ao contemplar o ser que tem uma dimensão temporal: “Ele cresce longa e lentamente. O curto prazo atual o desmonta.” (pg. 89) e cita Niklas Luhmann sobre a informação (atual): “Sua cosmologia é uma cosmologia não do ser, mas da contingência” (pg. 89 citando Luhmann).
Mas lembra a imortalidade traduzida nesta crise como: “A busca pela imortalidade, pela glória imortal, é, segundo Arendt, “a fonte e o centro da vita activa.” O ser humano conquista sua imortalidade no palco do político” (pg. 145), mas a verdadeira imortalidade é o eterno.
Então escreve Han: “Em contrapartida a vita contemplativa não é, segundo Arendt, o persistir e durar no tempo, mas a experiência do eterno, que transcende tanto o tempo como também o mundo circundante.” (idem pag. 145).
Arendt admira Sócrates, escreve Han, “que renuncia voluntariamente à imortalidade” (pg. 146) e assim lembra que mesmo o escrever torna-se vita activa, e cria uma imortalidade passageira, a qual Han lembra que também Arendt buscou ao escrever.
Mas não se trata de abandonar o complemento da vita contemplativa que é a vita activa, o que acontece é que o “animal laborans” (como Arendt chama o moderno): “está arruinando todas as capacidades humanas, sobretudo a ação” (Han, 2023, pg. 149).
Lembra que a capacidade de ação brota do pensamento “que não é irrelevante para o futuro humano, pois se considerássemos as diferentes atividades da Vita activa em relação à questão sobre qual delas seria a mais ativa e em qual delas a experiência do ser ativo se expressaria de maneira mais pura, então o resultado seria que o pensamento todas as atividades no que diz respeito ao puro ser ativo” (Han, 2023, pgs. 149-150).
Assim não é de nosso exterior que brota nossas más ações, mas antes estão no nosso interior.
Han, B.C. Vita contemplativa. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Ed. Vozes, 2023