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Entre o espírito e a espiritualidade
Henri Bergson procurava uma nova filosofia da vida, aquela que vai além do que a inteligência pode atender, a dimensão psicológica e criadora da evolução, complemento esta filosofia com a ideia da noosfera de Teilhard Chardin, não se trata de simples colagem, mas convergência entre a filosofia, a religião e uma espiritualidade que propicie um diálogo com as cosmovisões culturais.
As diferentes teorias da vida pretendem atingir o conhecimento através de categorias desenvolvidas pela inteligência, a sabedoria e a intuição podem ir além, o que diz Bergson a própria inteligência é um produto da evolução, sabemos mais do que sabia o homem primitivo.
A inteligência criada pelas necessidades da vida para agir sobre os objetos, a natureza , o próprio agir e a sabedoria necessária para isto, fundamentou-se inicialmente na matéria, porém ao substituir o todo pela parte, tornou-a ilegítima, para compreender a vida e o sentido da evolução, é preciso um novo método de pensamento que entenda o sentido natural de inteligência, com ajuda da intuição, não é contraditório com a sabedoria presente em várias cosmovisões.
Para Bergson o que caracteriza a inteligência é aquilo que chama de “duração”, partindo da própria existência como seres vivos, para aprender o que é a vida como uma variação perpétua e contínua de nosso espírito, depois levanta a duração do universo que se forma incessantemente, e em cada forma mínima que ele revela seu impulso criador, este estado de mudança extrapola a matemática e a física que só pode modelar cada mudança em uma curta “duração”.
Teilhard de Chardin ao caracterizar o “fenômeno humano” o vê como uma complexificação da matéria, aí diferente de Bergson não vai separar aquilo que ele chama de “matéria” inerte, e para Teilhard de Chardin é um corpo “vivo” de tudo que existe, pelo qual foi acusado de panteísmo, e vê na existência do Universo como Bergson algo que não pode ser separado de uma evolução criadora, que vai modificando formas e mecanismos de interação, também evolui a “sabedoria”.
Também o problema da duração aqui Bergson se distância da ciência, ao menos da atual que vê o tempo não como “duração” mas como uma “dobra”, Chardin está mais próximo da Ciência ao ver na evolução a aproximação da criação e a complexificação do universo, da natureza e do homem a aproximação do Criador e da eternidade.
A evolução de Bergson então caminha para a evolução da vida da consciência, volta assim ao subjetivismo e a consciência abstrata dos idealistas, para Chardin ao chamar o homem de “fenômeno humano” (não é contraditório com feito a “semelhança” de Deus pois caminha para a eternidade), diz que tipo de consciência é a humana, a consciência de sua existência física que não se separa da espiritual.
BERGSON, Henri; A Evolução Criadora, Silo Paulo: Martins Fontes, 2005.
CHARDIN, Teilhard. O fenômeno humano. Trad. Armando Pereira da Silva. SP: Cultrix, 2001.
Espiritualidade e cosmovisão
Espiritualidade é a busca de um sentido para a vida, ela pode parar na physis, que para os gregos era a natureza ou pode ir além e contemplar a meta-physis, que significa μετα (metà) = depois de, além de tudo; e Φυσις [physis], ou seja, além da natureza e da física.
Assim uma espiritualidade que para na natureza, a explicação por exemplo da origem do universo, ainda que seja uma cosmovisão física, carece de uma cosmovisão escatológica que explique a origem e o fim de tudo, cairá em algum ponto nos sofismas e no niilismo, conforme o sofista Górgias (485-380 a.C.) nada existe.
Se nada existe o sentido da vida é sem sentido, muito se explora superficialmente o sentido da vida, para muitos é ser feliz apenas, ainda é uma cosmovisão limitada, dores e sofrimentos são parte da vida, assim é preciso passar por eles para que a vida de fato tenha sentido.
A espiritualidade necessidade de uma cosmovisão, ou se preferir o termo mais filosófico, de uma visão de mundo (Weltanschauung), usada de maneira quase oposta por Kant e Heidegger, enquanto Kant usa-a como transcendência idealista (do sujeito ao objeto), Heidegger retorna a tradição metafísica, com o propósito de dela se distanciar.
O conceito de eidos (no grego é forma e essência) transformado em ideia, e a separação do sujeito com o objeto, relegou as questões do espírito (nem espiritualidade pode ser chamada) ao campo da subjetividade, marco inicial do movimento filosófico denominado idealismo alemão foi a publicação da Crítica da razão pura em 1781 por Immanuel Kant (1724-1804), terminando cinquenta anos mais tarde com a morte de Hegel (1770-1831).
Martin Heidegger inicia pelo questionamento do sentido de ser do ser-aí. Isso porque “não se compreende por esse termo apenas a concepção da conexão entre as coisas naturais, mas, ao mesmo tempo, uma interpretação do sentido e da finalidade do ser[1]aí humano e, com isso, da história [Geschichte]” (HEIDEGGER, 2012, p. 13).
Grande parte do que se chama de espiritualidade é na verdade apenas uma busca de sentido pela vida, um exercício mental que é diferente do espiritual, carece de uma ascese, de uma verdadeira “ascensão”, por isto retorna sempre a physis, a natureza ou ao chão.
Uma cosmovisão completa deve ir além do fato e chegar a intencionalidade, tudo existe com uma intenção, ter consciência é “ter consciência de algo”, conforme pensa a fenomenologia de Husserl, então consciência do “universo” portanto tem uma intenção de existência do universo, que é em parte metafísica e em parte espiritualidade, algo ou alguém tem (e não teve) uma intenção primária, algo grande, infinito, superior a natureza, ao universo e a tudo que conhecemos, algo inefável.
HEIDEGGER, Martin. Os problemas fundamentais da fenomenologia. Trad.: Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2012.
O inefável e a interpretação
Antes de fazer o post de hoje, não podemos deixar de registrar as Olimpíadas de Tóquio, cujo abertura acontece hoje e alguns protestos: cinco seleções: Estados Unidos, Suécia, Chile, Nova Zelândia e para surpresa o Reino Unido, se ajoelharam antes de suas partidas de futebol em protesto antirracista, já as jogadoras do feminino da Austrália se abraçaram lembrando a nação aborígene que vive lá e significando a união nacional.
Mas talvez a mais importante manifestação ficou relegada a segundo plano, os manifestantes são chamados de “ultranacionalistas”, o que não é verdade, pois 43% da população era favorável ao adiamento da olímpiada, 40% era contra a realização e apenas 14% são favoráveis.
Era inefável a Pandemia e ela está aí ainda dando sinais de resistência apesar da luta da ciência para vacinas e sua superação, exatamente o povo mais resiliente não renunciou a um evento, e isto também é claro é um problema de interpretação do que de fato ocorre neste momento.
Algo inefável que não esteja sujeito a interpretação e mesmo metáforas seriam pouco para tentar explicá-las são as grandes questões da humanidade: o que somos no universo, para onde vamos e agora mais do que nunca: para onde iremos.
Muitas são as cosmogonias que tentam dar uma interpretação escatológica para estas questões, o certo é que existimos e não porque pensamos (penso, logo existo), mas existimos e isto nos permite o pensamento e a linguagem (sou, logo penso) e com ela é possível a interpretação.
A cosmogonia cristã, há muitas outras em diferentes culturas, é aquela cuja metáfora do grão de semente transforma em vida: a semente que cai entre espinhos, que cai em solo raso e que cai a beira do caminho, o terreno bom a fará germinar e dar frutos, é uma interpretação do inefável.
O texto bíblico da multiplicação dos pães, cuja interpretação terrena vê apenas a distribuição dos bens (Mc 6,1-15), não observa a interpretação inefável pois é Jesus que pergunta a Felipe (Mc 6,5): “Jesus disse a Filipe: “Onde vamos comprar pão para que eles possam comer?”, e depois de multiplicar os 5 pães de cevada e dois peixes, o inefável divino, os homens queria dar-lhe um poder terreno e diz a leitura (Mc 6,15): “Mas, quando notou que estavam querendo levá-lo para proclamá-lo rei, Jesus retirou-se de novo, sozinho, para o monte.”, é uma divina interpretação feita pelo próprio mestre.
Interioridade e a relação social
Se a sociedade atual “isola” o indivíduo, e a pandemia o fez com maior profundidade, isto não significa que não seja necessário em uma vida urbana cada vez mais agitada, algum isolamento.
O drama cultural de nosso tempo é quando se “pressupõe exatamente a não satisfação (pela opressão, repressão ou algum outro meio) de instintos poderosos”, explicou Freud (ver o post sobre o Mal estar da civilização), ele expõe isto como uma “frustração cultural” que domina o campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos, mas Byung Chul Hang vai mais a fundo ao analisar o que é a dor.
O novo livro de Byung-Chul Han “A sociedade paliativa” vai descrever diante da dor a sociedade medieval como a sociedade do martírio, e a atual como Sociedade da Sobrevivência, e por causa da tentativa de viver na ausência da dor uma Sociedade Paliativa, tantos remédios antidepressivos, ansiolíticos e “analgésicos, prescritos em massa, ocultam relações que levam a dor” (Han, 2021, p.29).
Em uma análise curiosa para um budista, mas talvez pela consciência de que a Páscoa significa uma “passagem” pela dor para a vida eterna, o autor descreve: “em vista da pandemia, a sociedade da sobrevivência proíbe mesmo a missa de Páscoa. Também sacerdotes praticam o “social distancing” e usam máscaras de proteção. Eles sacrificam a fé inteiramente à sobrevivência … A virologia desposa a teologia.” (Han, 2021, p. 35).
Todos escutam os virologistas, diz o autor, a bela narrativa da ressurreição “dá lugar inteiramente à ideologia da saúde e da sobrevivência” (Han, 2021, p. 35), não se trata da vida e sim: “A morte esvazia a vida em sobrevivência”.
Utilizando Hegel o autor explica o verdadeiro sentido da dor: “A dor é o motor da formação dialética do espírito” (pg. 75), o percurso formativo é “uma via dolorosa: O outro, o negativo, a contradição, a cisão pertencem, portanto, à Natureza do espírito” (pg. 76) e assim a interioridade.
Explica o autor: “nisso ela distingue da vivência [Erlebnis], que não leva a nenhuma mudança de estado. Apenas a dor surte uma transformação [Veränderung] radical. Na sociedade paliativa, o igual se perpetua.” (pg. 77).
Jesus sempre após algum momento intenso de pregação ou de participação em algum evento social, retirava-se com os discípulos, era o momento da interioridade, porém muitas vezes as situações obrigavam a deixar o descanso de lado e voltar a ver o povo (Mc 6, 31-34):
“Ele lhes disse: “Vinde sozinhos para um lugar deserto e descansai um pouco” … Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor” e Jesus voltou e foi ensinar outras coisas a eles.
Ele também teve momentos de dor anteriores a Páscoa, ao qual bebeu o cálice, e pouco descanso como na passagem acima.
HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa: a dor hoje. trad. Lucas Machado, Petrópolis: RJ: Ed.Vozes, 2021.
Ter consciência de Ser e viver com o essencial
A frase do filósofo Sócrates “a vida que não se examina não vale a pena ser vivida” não faria grande sucesso hoje, a frivolidade fez crescer aquilo que não é essencial como falsa necessidade de felicidade e um ambiente de dor e resiliência entra em choque com esta mentalidade.
Deve-se examinar neste contexto o que é consciência, e como pede a hermenêutica não existe consciência, a não ser a consciência de algo, a consciência fenomenológica não há dualismo entre sujeito e objeto, Ser é buscar examinar a consciência de algo, seja ele concreto ou abstrato.
A vida social requer alguma forma de mutualismo, estar bem e o Ser não negar sua sociabilidade, a vida pessoal requer exame do Ser, o equilíbrio com a natureza, também com sua própria implica a saúde, o equilíbrio e isto não está separado de interioridade e capacidade de reflexão pessoal.
A pura exterioridade leva ao não essencial, a performance, a imagem pública e a autovalorização pessoal são formas de exterioridade que podem levar ao consumismo e ao individualismo exagerado.
Ter consciência do todo é complexo, porém viver com no essencial torna a vida simples.
O essencial para se viver requer poucas coisas: vestimentas, alimentos e posses modestas podem levar a uma vida equilibrada e feliz, o contrário pode levar a um excesso de preocupação e stress.
No outro extremo não ter o essencial pode levar também ao desespero, aí estão as maiores e injustas situações sociais, uma sociedade que não se preocupa com isto está em desiquilíbrio e leva todos ao desiquilíbrio, também os que acumulam e tornam-se egoístas e consumistas.
A consciência do Ser na visão hegeliana estaria ligada ao Ser-em-si e para-si fica apenas na forma de percepção, fica na imaginação, a intencionalidade dos fenômenos que é negadora de outros objetos (externos) ou de si mesmo (internos) e por isto esta forma de consciência está relacionada ao nada.
A consciência não se consegue sem se identificar com nenhum ser-em-si (algo na fenomenologia) é nela que se aproxima em relação com outra consciência, isto ocorre porque uma ação ou escolha enquanto consciência percebe nesta relação a contingência e gratuidade da existência.
Assim esta consciência leva a reciprocidade, ao mutualismo e a uma existência que vale a pena, no dizer do filósofo Sócrates “porque ela se examina” e isto a vivifica e caminha para a plenitude.
A pura exterioridade é voluntarismo e a pura interioridade é falso essencialidade, e pode ser fuga.
Não haverá retorno a frivolidade
Embora filosóficos midiáticos e otimistas fora de contexto desejam algum retorno a algum tipo de normalidade, já temos duas mudanças estruturais irreversíveis, a necessidade de compreender a total interdependência, ninguém está isolado e a reestruturação da vida social e urbana.
A Inglaterra prestes a voltar a normalidade e os Estados Unidos que comemorou seu dia da independência pensando em comemorar a independência do coronavírus admitem o fracasso, em ambos países as autoridades declararam que deveremos conviver com esta dificuldade, também no Reino Unido.
O conceito de coimunidade foi desenvolvido por Peter Sloterdijk em outro contexto, uma espécie de mutualismo em que todos são responsáveis por todos, encontrar bodes expiatórios seja na criação do vírus seja no combate ineficaz tornaram-se teorias conspiratórios de difícil aceitação, em ambos os casos o oportunismo político está presente, ainda que se possa perceber um combate nem sempre eficaz.
Sobre o compromisso individual voltado à proteção mútua, Peter Sloterdijk pensa que nem é chegado o momento de recolhimento nacional, nem o mundo ficou pequenos para todos, o consumo existe graças a frivolidade, não há público consumo se não houver apelo a ele.
O que deverá acontecer é uma exigência nova do mutualismo, ela ainda é só uma tendência, mas a ideia que não sairemos fácil da convivência com o perigo do vírus e de novas mutações nos leva a necessidade de uma nova consciência de comunidade, além daquela falada e não praticada.
O que Sloterdijk chama de mutualismo pode tornar-se algo ainda mais amplo, disse em entrevista ao jornal El País: “A necessidade de um escudo universal que proteja todos os membros da comunidade humana não é mais algo utópico. A enorme interação médica em todo o mundo está provando que isso já funciona”, o problema é que as disputas e os nacionalismos impedem isto.
A resposta de Sloterdijk é bem interessante: “esses movimentos não são operacionais, que têm atitudes pouco práticas, que expressam insatisfações, mas que de modo algum são capazes de resolver problemas. Acho que serão os perdedores da crise”, eu concordo com ele.
A única ressalva é que estas disputas podem levar a embates irreversíveis, que seriam catastróficos para toda a humanidade e mais ainda, um tema que ele também toca, as democracias estão em risco.
Sua resposta é: “no futuro, o público em geral e a classe política terão a tarefa de monitorar um retorno claro às nossas liberdades democráticas”, o desejo de suprimi-las está todo dia em pauta em muitas cabeças políticas, é uma tentação numa crise.
O todo, a parte e o Ser
Foi a partir desta teorização do todo que Werner Heisenberg deu início ao princípio quântico, quando formulou sua teoria não havia qualquer resposta de experiência científica, o que por si só já contesta o empirismo, e era uma “teoria” o que por si só contesta que a realidade é prática, mas foi a primeira tentativa, feliz porque depois a Física e a Ciência viriam em seu socorro, sobre partir do todo e não das partes como propunha o método cartesiano.
A verdade da física, porém vai se mudando ao longo do tempo, as novas descobertas sobre as novas descobertas de subpartículas (entre elas o bóson de Higgs), os 7 estados da matéria (junta-se aos três amplamente conhecido, o plasma (luz líquida), os estados de Bose-Einstein, gás fermiônico e superfluido de polarations, e pode haver um oitavo, assim já há uma para-física.
Porém já há, e sempre houve a meta-física (posterior a física), a modernidade quis reduzi-la a subjetividade (algo próprio do sujeito, mas preso apenas a sua mente), a ontologia atual, fruto da hermenêutica e da fenomenologia, recupera-se questionando o “velamento” do ser, e propõe uma clareira, a crise do humanismo não é outra coisa senão esta crise.
A pergunta filosófica sobre o tudo é “porque existe o tudo e não o nada” e isto supõe a ex-sistência, já a pergunta sobre o todo poderia ser, ela não é feita filosoficamente e sim apenas teologicamente, se existe “tudo” qual é a intenção que justifica a ex-sistência de tudo ?
A fenomenologia recupera a intencionalidade, uma subcategoria da consciência na filosofia medieval, com um sentido de estar dirigida a algo, ou de ser acerca de algo, assim ontológica.
Husserl a recuperou dirigindo-a a um objeto, categoria essencial no idealismo moderno, mas dirigindo-a algo que pode ser imaginário ou real, assim inclui-se a metafísica e o Ser.
Assim o fantástico da existência de tudo não é apenas sua existência, mas a intenção pelo Todo.
Qual é o todo e se existe é Ser, assim só Ele pode Ser além do todo universo que é locus, já que na física moderna o tempo é uma abstração, diz o físico italiano Carlo Rovelli, que está entre os mais respeitados.
Para os cristãos a entrada de Deus na physis acontece com Jesus, diz a passagem que Jesus pergunta quem dizem ser “o filho do homem” (Ele assim fala de uma de suas duas naturezas: divina e humana), e vai perguntar aos apóstolos o quem dizem que Ele é.
Os apóstolos respondem (Mt 16,14-16) {a questão do mestre: “Alguns dizem que é João Batista; outros que é Elias; outros ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas”. Então Jesus lhes perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Simão Pedro respondeu: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”, e Jesus diz que ele é feliz porque foi Deus que o revelou.
A possibilidade da clareira
Perscrutar e investigar o insondável é próprio do homem, porém há sempre a possibilidade do devaneio e de esquemas bem montados de pensamento que não levam a clareira, assim como um explorador na floresta, o risco de andar em círculos sem uma bússola, um rio de guia ou astros celestes são essenciais.
Isto ocorre desde os primórdios, alertava Heráclito em um fragmento “A φύσις gosta de se ocultar”.
A φύσις (“Physis kryptesthai philei”) foi deixada sem tradução porque ao pé da letra seria physis, mas isto era para os gregos a própria natureza e o que hoje está separado dela como Ser, a dicotomia em sujeito e objeto.
Em Heidegger, a verdade é este fundamento abissal, oculto mas possível de ser desvelado, isto está ligado neste autor pelo vínculo entre o ser e a verdade como sem-fundo, fundamento abissal, o insondável, porisso exploramos nos posts da semana passada a metáfora, ao contemplar o ser, isto se torna inefável.
O que poder-se-ia chamar de excesso ontológico nada mais é que o mistério do ser, sua escatologia sem fundamento único, ele nem é um fragmento do universo, nem é o próprio, parte dele e incógnito como ele.
A verdade é geralmente pensada como correção, concordância de enunciado com a que que enuncia, ou de uma coisa com o que já foi pensada previamente dela, uma hipótese que se procura torná-la verdade.
Pode-se pensar no relativismo, mas é exatamente o contrário, para Heidegger a verdade é sempre a verdade, a experiência de verdade, de Platão a Husserl, foi sempre uma adequação das representações, tentando escapar das metáforas, com a essência das próprias coisas.
Assim a verdade não é ser descobridor, mas é ser descoberto, o Dasein (ser aí) está aberto para si mesmo e para o mundo, e só nele pode-se alcançar a originalidade do fenômeno da verdade, o que os gregos chamaram de Alétheia, e que Heidegger vai além propondo ser instauradora do pertencer de Ser-homem.
Este é o sentido de originalidade do Ser, pensa o ser em seu sentido primordial como “presentar”, Ser é ser no presente, nele se desvela,
Assim o único sentido que poder-se-ia pensar a dialética como ontologia é aquele no qual o “traço básico do próprio presentar é determinado pelo permanecer velado e desvelado”, é o Ser em movimento.
A razão que estamos presos ao velamento do Ser (o seu esquecimento como dizia Heidegger) é a prisão a esquemas lógico-racionais que aos quais a verdade é ligada ao ente e desligada do Ser.
HEIDEGGER, Martin. Alétheia. Os pensadores. São Paulo : Abril Cultural, 1985, p. 126.
Da linguagem ao Ser
A linguagem enquanto fala e retórica é apenas aquilo que se exterioriza, porém se pensada como ontologia é a abertura (Erschlossenheit) a partir da apropriação silenciosa do si-mesmo, como Heidegger pensou em Ser e Tempo, seja a abertura (offenheit) pensada como clareira do ser (lichtung des Seins), aquela usada por pensadores e poetas, e que se mostra na medida que sua correspondência silenciosa como ser, expressa em Carta sobre o Humanismo.
Escreve neste texto: “O destino se apropria como clareira do Ser, que é, enquanto clareira. É a clareira que outorga a proximidade do ser. Nessa proximidade, na clareira do Da lugar, mora o homem como ex-sistente, sem que ele já possa hoje experimente e assumir esse mora” (Heidegger, 1967, p. 61)
Em termos gerais linguagem é um veículo da expressão de algo interno ao homem, isto é, uma ponte que vincula o dentro e o fora do homem, tal forma de falar é pensada como uma atividade que acontece na qual o homem é o próprio meio, por isto há o silêncio antes.
Mas segundo a concepção ontológica da linguagem, não é a linguagem que pertence ao homem, mas antes o próprio homem concebido ontologicamente como ser-para-a-morte resoluto ou ser ontologicamente que responde como mortal à solicitação silenciosa do Ser.
Em termos mais simplistas trata-se aqui da diferença entre o ente que “tem” uma linguagem, no sentido de capacidade de falar, e a concepção ontológica que pensa o homem como “sendo” por meio de ser possuidor da capacidade de falar, a linguagem aqui não é apenas a transmissão de informações, mas o modo no qual manifesta o próprio existir humano.
Neste contexto comunicação começa com o silêncio, é preciso um vazio, um epoché na comunicação, que pressupõe um Outro que será destinatário, não é assim receptor, mas destino de sua fala, e este é o modo pelo qual se manifesta o próprio existir humano.
Assim para Heidegger, mas de outro modo também para Niklas Luhmann, seria preciso rever toda a teoria da Comunicação, pois receptor e transmissor são eles próprios o meio não humanos, e não “substituem” o homem, não podem existir nem ter relação como se o homem fosse algo acessório, aí está toda a alucinação da Inteligência Artificial atual, colocar receptor e transmissor no lugar de fonte e destino, seria preciso prever uma “clareira” do ente “fora” do Ser.
Por isto a clareira é interna, já postamos em outro oportunidade aquilo que Heidegger afirma em sua obra magna Ser e Tempo: “Na medida em que o ser vige a partir da alethéia, pertence a ele o emergir auto-desvelante. Nós denominamos isso a ação de auto-iluminar-se e a iluminação, a clareira” (cf. Ser e Tempo). (* aletheia do grego: a- não, lethe- esquecimento, desvelar).
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 61.
O círculo hermenêutico e a metáfora
Somos traídos quando julgamos conhecer e estamos ainda na etapa inicial da interpretação, aquela que ainda não iniciou um processo de epoché, colocar entre parênteses nossos pré-conceitos e iniciar uma verdadeira dialogia.
A metáfora nos ajuda a aproximar usando de linguagem poética uma relação de pertencimento, trazer o mundo a poesia e levar a poesia ao mundo, isto porque o poema projeta um mundo na sua dimensão ontológica, uma realidade que está entre o ver como da metáfora e o próprio ser.
Há além desta função no âmbito da inovação semântica, o desvelar de realidade mais profundas, por exemplo, explicar questões que são complexas de modo a permitir este pertencimento, esta proximidade, é a função por exemplo, das parábolas, a metonímia e a sinédoque.
Exemplos de parábolas mais conhecidas são as bíblicas, associar o Reino de Deus às sementes que crescem sem serem percebidas, ou ao grão de mostarda, uma pequenina semente que se torna uma árvore, isto para dizer que há uma força vivificadora no homem, e em todo homem.
Porém a metáfora, pelo uso de linguagem figurada corre sempre o risco de ficar na superfície.
Exemplificamos na semana passada a passagem bíblica em que Jesus ia para a obra margem do mar da galileia e uma tempestade ameaça a barca e Jesus acalma a tempestade (Marcos 4:35-41), porém a sutileza desta passagem é os significados metafóricos de ir a outra margem e da própria tempestade.
Precisava explicar coisas mais profundas e questionou os discípulos o medo das tempestades, e segue para a outra margem, significando lá um momento mais direto com os apóstolos, boa parte da exegese analítica (ver o post anterior) se fixa numa compreensão imediata que ir para a outra margem significa mudar a rota, quando na verdade além descansar (Jesus dormia na tempestade), as realidades mais profundas eram explicadas diretamente aos apóstolos.
Isto se comprova se verificarmos que depois Jesus retorna “a outra margem” onde volta a encontrar a multidão (Mc 5,21-43), e nesta multidão está além de uma mulher desconhecida que toca o manto do mestre e é curada de uma hemorragia de 12 anos, há um chefe de Sinagoga chamado Jairo.
Jairo tinha a filha nas últimas, e enquanto se encontrava com Jesus pedindo que impusesse as mãos na filha, chegam amigos de Jairo, que dizem que ela faleceu e Jesus diz que ela “apenas dorme”, vai a casa de Jairo e realiza o milagre pronunciando as palavras “Talitá cum” (na foto quadro pintado por Benito Sáez Garcia), menina levanta-se.
Esta sutileza, uma pessoa comum e um chefe da sinagoga, mostra bem claro que na “multidão” se encontram também autoridade religiosas que querem sinais (os judeus querem sinais e os gregos sabedoria) e assim a metáfora é complementada com “sinais” e uma “sabedoria” inerente a Jesus.