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Escatologia apenas humana
Dois equívocos sobre o Natal é que se trata apenas do nascimento de Jesus, ao menos o Jesus histórico deve ser admitido como homem que existe pois houve um recenseamento quando ele nasceu, a segunda é o que veio e o que virá, o advento é assim aquilo (ou aquele) que vem e virá.
Relendo a obra Homo sapiens de Yuval Noah Harari apresenta uma perspectiva evolucionista darwiniana colocando como o homem impôs sua vida no planeta, contemplando três fases: a coletora, a agrícola (e sedentária), a fase industrial e a moderna de informação intensiva, e busca alinhar os elementos estruturais que conectam com a ordem cultural e com os seus alicerces.
No plano da cultura desta as crenças gerais compartilhadas em cada fases, que chama de mitos ficcionais, aos quais atribui a indispensável coesão social e os empreendimentos de cada período.
Mesmo sendo judeu, que possui uma escatologia forte abramica, recusa a existência da alma, da consciência e da individualidade, tendo como perspectiva que a ciência não detectou isto, e que as notáveis conquistas da ciência contemporânea dispensam estas existências.
O seu longo e elaborado trabalho que ao negar estes fatos existenciais metafísicos, envereda pelo mesmo caminho dos neologicistas, de algoritmos que regulariam a vida inclusive biológica, porém é a consciência algo assim desconectado da inteligência e será que organismos são só algoritmos.
O sentido clássico de cosmos, explorado desde Platão, a energia requerida para acionar um algoritmo da criação, a energia sem a qual a própria ideia de algoritmo não se sustenta, é algo que já pré-existia antes da hominização do cosmos (a natureza tornou-se homem) e o que será o futuro deste processo sobre o qual o próprio Harari indaga, sem alma e consciência deste fim.
Estas perguntas apontam para uma escatologia, princípio e fim, e não temos uma aposta num fim longínquo ou próximo se não tivermos respostas sobre um princípio, o escato-lógico do Ser.
Ainda que a escatologia de Harari não seja completa, não há transcendência, ele percebe que estamos próximos de um limiar civilizatório bastante perigoso, tanto no aspecto humano quanto do equilíbrio da natureza, e que o homem poderá realizar esta tarefa sozinho sem algo superior.
Desertos e oráculos
Caminhamos como sonâmbulos no escura, aponta Edgar Morin, este não é um tempo propício ao pensamento afirma Peter Sloterdijk, Byung Chul Han diz que nosso tempo é o “deserto ou inferno do igual”, mas diria que o deserto ainda pode ser fértil, e ter um Oasis porem o igual estéril, é massificação, despersonali-zador e mais que autoritário nos identifica ao nada.
São algumas das vozes que identifico como uma busca desesperada para um retorno não ao antigo normal, mas a um realmente novo normal, não deverá ser este no fim da pandemia, e sim o inferno que nos nivelou todos por baixo, pelo desumano, pelo irracional e pelo consumo.
Edgar Morin aponta para a educação como um caminho para esta renovação, mas quem serão os professores com novo pensamento e nova mentalidade, Byung Chul Han aponta para o cuidado da terra, seu novo livro “Louvor da Terra” que aponta para um jardim comunitário, onde os ritmos e características de cada flor são registrados e acolhidos com sua atenção oriental, centrada nos elementos simples de cada flor.
Peter Sloterdijk já havia escrito Se a Europa despertar, poderíamos dizer agora se o mundo despertasse no pós-pandemia, se realmente olhássemos para o Bem Moral que propõe Morin, para uma fraternidade concreta e realmente universal como propõe o papa Francisco em sua encíclica Fratelli Tutti, mas penso eu são vozes que clamam no deserto como João Batista que morreu degolado pelo pedido de uma dançarina sensual que encantara Herodes.
Quando os fariseus foram a João Batista, que vivia no deserto, vestindo peles de camelos e comendo mel de abelha e cereais, ele respondeu (João 1,23): “Eu sou a voz do que clama no deserto: ´Fazei um caminho reto para o Senhor”, como disse o profeta Isaías”.
Quando há oráculos, pensadores e sábios que falam no deserto uma mudança está próxima.
O deserto e o futuro
Não é apenas a pandemia, de fato ela pode passar, mas seus problemas não só não passaram como estão se agravando, o futuro ali na frente pode ser de uma crise séria, não só pelas dificuldades econômicas e sociais, na raiz há uma crise do pensamento.
O número de problemas de ordem emocional e psíquica de um longo período de isolamento já é visível, e os ciclos seguintes de euforia e exageros podem ser piores, parte da segunda onda no Brasil revelam os dados são festas e aglomerações inexplicáveis em meio a uma pandemia.
O romance de Augusto Cury falando do Futuro da Humanidade, parece apontado apenas para o foco de pessoas com problemas psíquicos podem ter solução e que a relação com estes pacientes que são marginalizados e tratados como sem identidade, deixa indignado um jovem estudante com nome de Marco Polo, o aventureiro navegador veneziano do século XIII, cujo nome o pai deu em sua homenagem.
O desafio deste jovem é que além de remédios, o tratamento com diálogo e psicologia podem levar a uma verdadeira revolução no tratamento de pessoas assim
O mundo já mudou, a nova normalidade poderá apresentar graves problemas tanto de origem social quanto psíquica, mas a consciência de que tudo isto pode e deve ser tratado com diálogo e sem mecanismos de fugas, como bebidas, drogas e festas, pode ajudar a uma outra cura além da pandemia, claro não é este o assunto do livro.
O livro As viagens de Marco Polo inspirou certamente as navegações e as explorações do Oriente na passagem do Renascimento para a Modernidade, escrito entre 1271 e 1295, conta as experiências deste jovem na corta de Kublai Khan, porém a viagem é feita de lutas e desafios (veja ilustração da obra original acima) e as viagens de grandes navegadores vieram nos anos seguintes, há uma travessia a ser feita hoje.
Lembro também a frase de Augusto Cury na qual diz que só é digno do oásis aquele que consegue atravessar o próprio deserto.
A escatologia e o Natal
Como síntese ontológica da escatologia que desenvolvemos esta semana neste blog, retomamos Heidegger em seus três conceitos ditos aqui escatológicos.
Cuidado, Heidegger se apropriou da fábula grega na qual Júpiter e Cuidado que está dando forma a argila brigam pelo nome que será dado a figura criada, e chamado Saturno como juiz ele diz que a Júpiter pertencerá o espírito pois foi ele que o deu a forma, enquanto Cuidado terá a terra, já que a formou, e ao Cuidado pertencerá a forma da argila que ele criou, assim cuidar no momento presente.
Impessoalidade é aquela na qual ela rompe a relação com o mundo, e torna o indivíduo isolado, “fora das relações de familiaridade com o mundo” e assim quase sempre na ausência do outro. ela rompe esta relação, e faz o indivíduo isolado “cair fora das relações de familiaridade com o mundo” diz Heidegger.
Silêncio é aspecto final desta escatologia, é invocado quando o indivíduo já descobriu o si-mesmo, e volta ao mundo agora senhor de si próprio, assim é o retorno da paz e da relação harmoniosa com mundo, ainda que ele esteja em conflito, ou em uma de suas mortes.
O Natal não só não é comemorado por muitos cristãos de diversas seitas, embora curiosamente espera a nova vinda, que é a parusia e também ela é comemorada nas primeiras semanas do Natal, o tempo do advento, porém esta é a separação de que falamos do Ser da vida e o ser-para-a-morte.
Não estão desligados é nele que se desenvolve a morte, a ressurreição da vida e a nova vinda, ou um novo tempo, ou aquilo que acontece depois de uma pequena ou grande tragédia, penso que é verdade que vivemos um tempo assim, porém a escatologia que pretende negar a morte é ela própria a morte.
A necessidade urgente de mudanças na vida humana do planeta, no respeito ao próprio planeta, ao Outro que não é nosso espelho, não é da “nossa turma” é cada vez mais uma exigência de mudança, de morte de um sistema velho e o renascer numa nova perspectiva civilizatória.
E se esse tempo vier, esse fim escatológico qual é a recomendação bíblica para os que creem, é aquela que está em Marcos (Mc 13,33-34): “33“Cuidado! Ficai atentos, porque não sabeis quando chegará o momento. 34É como um homem que, ao partir para o estrangeiro, deixou sua casa sob a responsabilidade de seus empregados, distribuindo a cada um sua tarefa. E mandou o porteiro ficar vigiando”, assim mesmo que este tempo venha ou não “vigiai”.
Enquanto para o cristão deve significar uma eterna parusia, ou seja espera de um nova vinda, para os não cristãos deve ser estar atento a um novo tempo, a uma retomada de valores sociais, ecológicos e humanos que estão abandonados, em crise ou quase sucumbidos numa civilização em crise.
Um Natal sem grandes festas e consumismos deverá ser um Natal mais próximo de seu sentido, o Natal do Cuidado, da Impessoalidade (o respeito ao Outro) e do Silêncio, é uma escatologia quase perfeita, pois ela seria se de fato pudéssemos sentir a volta de um verdadeiro tempo de salvação.
O infinito escatológico
A transcendência como ideia do Infinito (não é a idealista) pode ser compreendida na filosofia de Lévinas como “A presença de um ser que não entra na esfera do Mesmo, presença que a excede, fixa seu ‘estatuto’de infinito, é assim que surgirá em Lévinas a ideia de Estrangeiro e ali ele numa escatologia própria.
O termo Estrangeiro é próprio da tradição bíblica da qual se alimenta Emmanuel Lévinas, tal como muitos se alimentam da mitologia grega, ela é presente na quatríade do profeta Isaías, profeta como no modo dos celebrados poetas gregos Homero e Hesíodo, é curioso porque pode-se a parte de Lévinas ver uma convergência entre a cultura helênica e semita, ao contrário de toda fúria contra a cultura judaico-cristã.
A quatríade é a seguinte: o pobre (que não tem recursos econômicos), a viúva (que não tem marido que a sustente), o órfão (que não tem abrigo que o recolha), o estrangeiro (que não tem pátria onde pisar). eles são a síntese do que hoje chamamos e excluídos no tempo bíblico, e podemos ver numa nova escatologia “filosófica” de Lévinas a ideia de um “fim” escatológico não como final dos tempos, mas o fim da pobreza, do desamparo feminino (hoje é mais grave o feminicídio), os órgãos das guerras e os estrangeiros que andam pelo mundo e que Bauman chega a ironizar (pasmem) e então um apocalipse novo.
É assim que o infinito e o ser-para-a-morte podem também ter uma interpretação escatológica, sem qualquer preconceito ou presunção ao sentido religioso que poderá sim em algum momento ocorrer, e do qual o planeta não está isento, afinal um fim escatológico presente em muitas religiões não cristãs é o que a própria terra (a mãe-terra) se rebela, novamente uma convergência com as profecias bíblicas.
A grande razão pela qual esta ideia foi quase abolida na modernidade, já Leibniz a reclamava está dita por Lévinas: “Minha vida e a história não formam totalidade. O comum que permite falar de sociedade objetivada, e pelo qual o homem se assemelha a coisa e se individualiza como coisa, não é primeiro” (em Ética e Infinito), e Lévinas vai definir este processo como “infinição” (talvez melhor tradução seria infinitação, mas não traduziram assim), uma inversão da subjetividade moderna, porque o sujeito subjetiva-se se sujeitando a Outrem, e assim vive sua escatologia “em processo” pessoal, sujeita ao Infinito.
Na escala social é o estrangeiro, o pobre e o que sofre algum tipo de preconceito (o racista, por exemplo, mas há outros inclusive os religiosos) e com isto é que caminhamos para uma autentico fim escatológico, um apocalipse do mundo atual já sem freio e sem uma direção segura para toda a humanidade.
O infinito como complemento escatológico
Toda escatologia deve princípio e fim (ou é finitista), é um engano imaginá-la apenas com o que vai acontecer no final dos tempos, o apocalipse cristão ou al-dain dos islâmicos, que não está no alcorão, mas nos ditados atribuídos ao profeta Maomé, ela deve ser pensada em processo.
Na filosofia a ideia do infinito permeia a escatologia que chamo de completa pelo fato que admite um fim como aquilo que Lévinas escreveu em Totalidade e Infinito como o desejo metafísico de tender para a coisa totalmente outra, o absolutamente outro, note-se que não é Deus, pois não é teologia, porém a mudança que é possível para um outro estado metafísico, afinal o subtítulo do livro é “Essai sur l´extériorité”, e a exterioridade tem aí algo essencial.
Para Lévinas a ideia do infinito é aquela que remete ao diferente e o distinto, diz Enrique Dussel que Lévinas ao dizer de diferente e distinto, afirma que o diferente se dá na Totalidade e o distinto se dá na Proximidade, fora disto permanecemos no idealismo puro da transcendência do Sujeito para o Objeto.
Nas palavras de Lévinas: “O desejo metafísico tende para coisa totalmente outra, para o absolutamente outro… Na base do desejo comumente interpretado encontrar-se-ia a necessidade (bésoin): o desejo marcaria um ser indigente e incompleto ou decaído de sua grandeza passada. Coincidiria com a consciência do que foi perdido.”, seu fim escatológico é este então, o ser decaído de sua grandeza passada e com consciência do que foi perdido.
Nisto reside também sua ética, afinal para Lévinas ela tem o nome de metafísica porque se refere à transcendência de outrem, que não é meramente física e o indicativo dessa transcendência é a ideia do infinito, aquele que se dá no face a face, que é portanto o distinto encontrado na Proximidade.
É esta proximidade do “face a face” que é primordial em Lévinas, é ela a experiência originária do inter-humano, aqui relaciono-a com o originário cultural onde há identidade do inter-humano, ou seja de um humano a posteriori em função de um a priori, é neste sentido que considero culturas originárias.
A experiência originária é aquela da proximidade ética de alguém, de uma relação sem máscara, e assim antropologia e ontologia se encontram, no dizer de Lévinas (sei que o ponto de vista é diferente) “a moral não é um ramo da filosofia, mas a filosofia primeira”, assim seria uma civilização equilibrada.
A relação com o ser-para-a-morte que vejo com este infinito, é que não se pensa a partir do finito, assim como a morte não pela negação da vida, isto era para Kant para quem a noção de infinito se opõe como um ideal da razão, Hegel modificou porém colocou a positividade do infinito, exclui a diversidade.
O infinito é diverso porque parte do Outrem, da outra coisa, e também o totalmente outro, por isso sua escatologia é completa, o ser-para-a-morte e o infinito se fundem (claro nem Heidegger nem Lévinas o dizem) porque estão no além si-mesmo e no além vida contendo-a inteiramente.
Escatologia e o ser-para-a-morte
De onde viemos e para onde vamos, cada cultura tem uma escatologia própria, a modernidade e em especial o idealismo se caracteriza por desprezar a ideia de infinito, de mistério e consequentemente da morte, vista como fatalidade ou simples finitude da vida, aos que veem pessimismo em Heidegger é preciso analisar se há coerência escatológica (origem, vida e fim).
Da filosofia de Lévinas (Totalidade e Infinito) à poesia de Goethe (Fausto), do romance de Tolstói (A morte de Ivan Ilitch) à ontologia de Heidegger (Ser e Tempo) a morte é mais que um conceito ou um tema, é a própria indagação do ser, em Lévinas o infinito é próprio do ser transcendente enquanto transcendente, o infinito é o absolutamente outro, assim não se podem pensar o infinito, o transcendente, o Estrangeiro (em Lévinas) como sendo objeto, mas como Outro que não é outra coisa senão Ser.
O idealismo ao querer viver sempre acima do real, deseja ignorar ou “transcender” a morte (no sentido falso de objeto) e por isso tergiversa sobre ela, mas diante das tragédias de uma pandemia, de uma crise que pode tornar-se civilizatória, ele imobiliza-se ou parte para o psicologismo, neste campo também há um tratamento fenomenológico adequado, afinal Franz Brentano pai da psicologia social reinaugura na modernidade a fenomenologia, a psiquiatra Kübler-Ross (Sobre a morte e o morrer, Martins Fontes, 2002) estudou aquele estágio da doença em que o paciente se pergunta “Porque eu” e aprofundou o tema.
A análise em Heidegger, para não ser superficial, deve abordar três temas correlatos: Cuidado, Impessoalidade e silêncio, senão é a análise que chamamos de epistemologia ou escatologia incompletas, uma vez que elas se deparam apenas com o pessimismo diante da morte, nem a boa psicologia a vê assim.
Antes um esclarecimento, o termo ontológico se refere ao questionar o fato de existir, o Dasein (ser-aí) não apenas é, mas tem percepção que é, para a fenomenologia assim não se pensa primeiro em si e depois no mundo, pois as duas coisas são indissociáveis, e assim é uma epistemologia ontológica.
Para ajudar o que é este ser-aí, precisamos aprofundar o que Heidegger chama de superação do mundo fático, e assim quanto ao super o mundo da impessoalidade, ele consegue se desvencilhar de uma razão estruturada dotada de sentido, de uma maneira já dada do existir e do Ser.
Safranski, um biografo autorizado de Heidegger, a interpreta assim: “A angústia não tolera outro deus além de si, e isola em dois sentidos. Ela rompe a relação com o outro, e faz o indivíduo isolado cair fora das relações de familiaridade com o mundo”, ela é sentida pela “queda”, pelo horizonte sombrio.
Assim na impessoalidade abandona a ideia de “todos morrem”, que em vida esquiva-se do ser-para-a-morte, para o seu pensar em sua morte solitária, cai naquela angústia descrita em Ivan Ilitch de Tolstói.
Sobre o Cuidado, Heidegger se apropria da fábula grega na qual Jupiter e Cuidado que está dando forma a argila brigam pelo nome que será dado a figura criada, e chamado Saturno como juiz ele diz que a Júpiter pertencerá o espírito pois foi ele que o deu a forma, enquanto Cuidado terá a terra, já que a formou, o filósofo alemão usará este sentido, muito engenhoso, para dizer o ser-para-a-morte para assim encontrar algo além da finitude da forma.
Por último o aspecto do silêncio e da solidão são invocados para descobrir o si-mesmo, e posteriormente voltar ao mundo já senhor de si-próprio, e aberto a relação com os outros, que já não é mais utilitária (tão própria dos idealistas) e nem por meio de diretrizes fixas (tão própria das escatologias incompletas), há assim um Ser além do finito e aberto ao infinito, não há pessimismo algum, que o diz é má leitura.
Uma epistemologia e escatologia incompletas
Aquilo que a fenomenologia e a filosofia ontológica procura está no centro da crise científica e do pensamento que vive o ocidente, e cujo epicentro é europeu, no dizer iluminado de Peter Sloterdijk a Europa se recente de não ser mais o centro como no período colonial (chama-a de Império do Centro) e procura outras formas de colonialismo para levar o idealismo avante, aquilo que na literatura tem-se chamado de epistemicídio.
Ao negar as culturas originárias de outros povos, pensa estar encontrando a própria difusa entre o barbarismo e a antiguidade clássica, tenta um novo renascentismo explorando de maneira difusa a cultura grega clássica.
No plano religioso o desastre é maior, Slavov Zizek escreveu recentemente sobre o conceito religioso em Hegel, e este último dos pensadores que tentar reavivar o marxismo clássico, reelaborou a religião hegeliana, mas que já era presente em Feuerbach e o próprio Marx criticou, no fundo é uma teologia atéia, uma escatologia morta.
Morta porque este é na verdade o grande equívoco da escatologia idealista, não há transcendente para ela sem a separação de sujeito e objeto, precisa negar a substancialidade para afirmar sua “subjetividade” onde o sujeito precisa sempre estar morto, nega o ser-para-a-morte mote de Heidegger, mas afirma a morte em vida (e isto não é o epoché fenomenológico).
Toda forma de cultura originária, é obvio que inclui aquelas culturas não-cristãs, tem uma origem (o próprio nome o diz), a vida e o fim escatológico, que não é para onde se caminha, e neste ponto esta teologia incompleta tergiversa sobre o que de fato é a morte, em tempos de pandemia poder-se-ia dizer que a doença que pode matar, e aqui é idêntica aos negacionistas.
Por isto mesmo que apele para a fenomenologia será incompleta, levará os que as incorporam a exaustão, ao desprezo pela vida, que até mesmo no sentido religioso é algo profundamente sagrado, sua “biós”, sua substancialidade, para ser claro para os idealistas, sua objetividade, caem no abstracionismo teórico.
A única substancialidade desta escatologia incompleta é negar a religião para torna-la idealista e pedir o que é desumano, aquilo que em termos bíblicos chama de “colocam fardos pesados nos ombros dos outros” e que eles próprios se recusam a carregar, em tempos de pandemia nem entram e nem deixam os outros entrarem.
O exame final será substancial: “eu tive fome e me destes de comer, eu tive sede e me deste de beber …” e não será questionado se elaborou uma boa epistemologia ou teologia, aquela que fez do colonialismo o terror das culturas originárias.
De que nossa consciência será um dia cobrada.
Não é preciso ser religioso para perceber que um dia, mesmo que seja diante da morte, pensaremos o que foi a nossa vida, como tratamos aos pobres, a todas as pessoas que nos foram próximas, a natureza e ao respeito a privacidade alheia, enfim a tudo que preserva a vida, e a água é a origem da vida, e ão há vida se não houver o Outro que não são aqueles próximos tão próximos, mas também aos que estão distantes ou não são do nosso círculo.
Certamente teremos em mente algum dia sobre o que foi que fizemos e o que deixamos de herança para as pessoas que nos queiram bem ou mal, não importa, cada um estará diante da própria consciência, e como diz a fenomenologia consciência é consciência de algo, o que é este algo diante da vida.
Quais são este algo essenciais a vida: a fome, a sede, a falta de habitação e o ultrage a cada pessoa, pode-se dizer que é a invasão de privacidade, o excesso de explosão pública, que Byung Chul Han chama de narcisismo, além dos diversos tipos de abusos, são todos uma espécie de nudez.
A falta de água potável para em torno de 500 milhões de pessoas, mas também a falta de políticas públicas de saneamento básico que atinge outro meio bilhão de pessoas, torna o problema da água um problema vital para muitas pessoas no planeta.
Aos que creem o exame final no qual diante de Deus todos serão cobrados está descrito pelo evangelista Mateus como aqueles que serão chamados a participar do Reino de Deus (Mt 25: 35-39): “Porque tive fome, e me destes de comer: porque tive sede e me destes de beber: era forasteiro, e me hospedastes: estava nu, e me vestistes, enfermo, e me visitastes: preso, e fostes ver-me. Então perguntarão aos justos: Senhor, quando foi que te vimos com fome e demos de comer? Ou com sede e te demos de beber? E quando te vimos forasteiro e te hospedamos? Ou nu e te vestimos?”, e a resposta será tudo o que fizemos aos mais pequeninos foi a mim que me fizestes.
A crueldade que mesmo em tempos de pandemia permanecem, quando até não crescem, torna o ambiente civilizatório perigoso e preocupante.
Culturas saudáveis e talentos
Uma sociedade do cansaço, do medo e de pressões autoritárias podem sufocar talentos, esconder dons naturais que todas as pessoas tem, e que desenvolvê-los dependem de cuidados especiaiscomo dar tempo, espaço e ter sensibilidade para que eles se desenvolvam.
Outro problema grave é a exigência social de eficiência e a pressão por resultados, eles virão naturalmente se houver espaço para aprendizagem, crescimento e respeitos as diferenças culturais e sociais, desde o cultivo na família, passando pela escolaridade e pela estrutura social, somente os dons serão desenvolvidos quando estas estruturas estiverem preparadas para apoiar o talento individual.
Do ponto de vista pessoal é preciso superar muitas vezes sentimento de inferioridade, conversar e procurar apoio em especialistas e setores sociais que possam desenvolver a aptidão que tem, que muitas vezes precisa de aprofundamento vocacional e cultivar os dons que possui até que ele se expresse como um talento.
Todo o trabalho sociológico de Marcel Mauss, em sua Teoria do Dom é para demonstrar que nem sempre é a utilidade, a simples troca por vantagens financeiras que em muitas sociedades transformam os dons culturais e sociais em estruturas sociais saudáveis, onde se desenvolvem naturalmente aqueles talentos que cada pessoa possui, a questão da troca e da reciprocidade são estudadas em algumas culturas antigas.
Ao estudar culturas não europeias, o dom no ciclo virtuoso dar-receber-retornar, Mauss ajudou a desconstruir o universalismo europeu, e pode ser considerado uma das fontes de estudos da decolonização.
Em seu ensaio o antropólogo e sociólogo Maus, percebeu muito cedo este desafio de aproximar uma discussão sobre a relação entre a crítica decolonial e a crítica antiutilitarista como a sua visão do “dom” que pode e deve se desenvolver em harmonia social.
Ao estudar culturas não-ocidentais, Mauss procura demonstrar o valor saudável e “universal” do sistema do dom, sob a forma do ciclo de dar-receber-retornar, existia antes do surgimento do mercado e do Estado e continua a existir, apesar da ideologia utilitarista dominante que buscar enfatizar o egoísmo e o mercantilismo dos talentos.
A parábola bíblica dos talentos, onde um homem ao viajar ao estrangeiro entrega seus bens aos seus empregados, dando “talentos”, embora isto signifique um valor financeiro a analogia com os talentos individuais fica clara no texto, diz a leitura Lc 25,14-15 : “Um homem ia viajar para o estrangeiro. Chamou seus empregados e lhes entregou seus bens. A um deu cinco talentos, a outro deu dois e ao terceiro, um; a cada qual de acordo com a sua capacidade. Em seguida viajou”, e a parábola afirma que o que recebeu cinco dobrou o seu talento, enquanto o que recebeu um o enterrou para devolver quando o patrão voltasse.
Assim não se trata de igualitarismo, mas de uma livre distribuição de dons e como cada um trabalha seu talento, num contexto saudável no caso da parábola o homem “vai para o estrangeiro”, isto é, cada um pode trabalhar seu talento conforme recebeu, e ao voltar ele dá uma recompensa maior ao que mais trabalhou os talentos que recebeu, porém todos recebem algum “valor” em talentos e tem a oportunidade de desenvolver, também é claro que neste contexto é a capacidade de cada um em receber e retornar os talentos, como Mauss completa o ato do “dar”, criando um ciclo virtuoso.