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Não coisas e a subjetividade, o eidos deturpado
A subjetividade vem do idealismo que julga o Ser separado das coisas, assim só ser se projetado sobre os objetos, porém o “eidos” gregos, de onde veio o idealismo nascente, não havia esta separação, tanto nas 4 causas de Aristóteles: material, formal, eficiente e final, como também na teoria das ideias platônicas que é a essência e que já relacionamos à coisa.
Enganam-se aqueles que julgam o mundo imerso na erotização, seja o mundo da fantasia, aquela que vem das obras de ficção, do imaginário infantil e do olhar com esperança para um futuro melhor, hoje em um presente cada dia mais preocupante, Chul-Han escreve assim:
“Sem fantasia, só existe pornografia. Hoje, a própria percepção tem traços pornográficos. Ela ocorre como um contato imediato, mesmo como uma copulação de imagem e olho. O erótico ocorre no fechar dos olhos” (Han, 2022), ou seja, é justamente seu inverso, estamos no vazio existencial, na negação do Ser e nele só resta a pornografia, como degradação do Ser.
Citando Barthes, Hul-Han esclarece a parte do pedaço que é: “A subjetividade absoluta só pode ser alcançada em estado de silêncio, o esforço para alcançar o silêncio (fechar os olhos significa fazer a imagem falar no silêncio). A fotografia me toca quando eu a retiro de seu blábláblá habitual […] não dizer nada, fechar os olhos […]” (Han, 2022) e está citando Roland Barthes em sua obra (foto): A câmera clara (ou Lúcida, dependendo da tradução).
A fotografia é portanto uma forma de perpetuar o silêncio, o desejo de muitos tirarem fotos como ato de individual é assim retirá-la do cotidiano e inserir um que de eterno, enquanto a exposição pública que o universo digital permitiu é devolvê-la ao “blábláblá habitual”, diz o autor: “O desastre da comunicação digital decorre do fato de que não temos tempo para fechar os olhos” e talvez ele não saiba mas isto é inclusive físico, por não piscar os olhos devemos usar lubrificantes para a vista se a expomos muito tempo nos ecrãs.
“O ruído é tanto uma poluição acústica quanto uma poluição visual. Polui a atenção” (Han, 2022) e citando Michel Serres diz que este instinto é de origem animal, como os cães, tigres e outros animais que urinam para demarcar terreno, poluem com seu fedor para inibir que os outros animais se aproximem.
Permitir a aproximação do outro é não demarcar território, é sábia a resposta bíblica de Jesus ao contato inicial de dois novos discípulos (Jo 1,38): “Jesus perguntou: “O que estais procurando?” Eles disseram: “Rabi (que quer dizer: Mestre), onde moras?” e ele respondeu: “Vim e vede” e foram e ficaram com Ele, porque não demarcou terreno e não se fechou.
A lógica do silêncio é contrária ao ruído, que não significa apenas a poluição de um som audível, mas um completo vazio capaz de conter e receber o Outro.
HAN, Byung-Chul Não-coisas : reviravoltas do mundo da vida, tradução de Rafael Rodrigues Garcia. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2022.
A não-coisa e o mundo amoral
Para Byung Chul-Han o que está se alterando é o mundo da mercadoria com o digital, vai fazer uma análise da posso do livro e o ebook, este como não-coisa, o smartphone e outros objetos digitais, porém o mundo da moral também está se alterando, cita de passagem:
“A pessoa desinteressada pelas coisas, por posses, não se submete à “moral da coisa” baseada no trabalho e na propriedade. Ela quer brincar mais do que trabalhar; vivenciar e desfrutar mais do que possuir. Em sua fase cultural, a economia também mostra traços lúdicos. A encenação e a performance estão se tornando cada vez mais significativas. A produção cultural, ou seja, a produção de informações, adapta cada vez mais os processos artísticos. A criatividade se torna seu lema”, usando um raciocínio de Vilém Flusser sobre a moral da coisa.
O que Chul-Han chama de fase cultural dever-se-ia analisar a fundo o período da indústria cultural, radio, cinema e televisão, que não foi senão uma passagem da mercadoria para o imaginário através da propaganda, onde se vende a marca e não o conteúdo, assim não estão alienados somente o trabalho e o produto, mas sua própria essência está alienada, usando um termo do período medieval, já analisamos num post anterior, perde sua quididade, sua identidade e singularidade, pois foi a indústria cultural que deu a tudo o aspecto de mesmice.
Também no trecho final vai analisar coisas do coração, e é bom lembrar que estas também tiveram outrora sua singularidade, hoje transformada em um caráter amoral e atemporal, no mal sentido da palavra, o que é eterno é essência e singular e então retoma a quididade.
Diz o trecho final, coisas do coração, relembrando o diálogo da raposa com O Pequeno Principe de Antoine de Saint-Exupéry: “O principezinho pergunta à raposa o que significa “cativar” (apprivoiser). Ao que a raposa responde: “É uma coisa quase esquecida […]. Significa nos tornarmos familiares, estabelecer relações. […] Para mim, você é apenas um garotinho como cem mil outros” e isto é a perda da singularidade, ali introduzirá a escuta e a relação com o Outro, não se pode desenvolver estas relações sem uma concepção moral.
A exposição de relação pessoais, o fim da vida privada pelas filmagens legais e ilegais, a exposição crescente até mesmo de crianças, é crescente e amoral, não há espaço para o crescimento e o respeito a moral de cada idade, nem mesmo da velhice, rejeitada como moral e como idade da sabedoria, é cada vez mais comum a exposição desta “boa idade” no sentido pejorativo e amoral, sem limites de respeito (Chul-Han chama de simetria em O enxame) e de uma moral equilibrada.
Tudo visto como “liberdade”, porém que mergulha em “reviravoltas no mundo da vida”, o subtítulo do autor, caminhamos para uma crise civilizatória e o retorno depende não das coisas, e sim de uma nova moral do estado, das relações humanas e da vida pública.
Han, Byung-Chul Não-coisas : reviravoltas do mundo da vida / Byung-Chul Han ; tradução de Rafael Rodrigues Garcia. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2022.
O que são as coisas
Ao reler as “Não-coisas” de Byung Chul-Han, que relembra com propriedade que o termo vem de Vilém Flusser, que viveu no Brasil boa parte de sua vida, o autor retoma também os conceitos de Hanna Arendt e Heidegger, mas não penetra na essência da coisa, que não é só informação.
Os filósofos medievais já haviam desenvolvido a questão da quididade, que não é nem uma ideia nem um conceito, mas algo que buscava compreender a essência das coisas, do latim, “quidditas” significa “o que é isso” e estava relacionada à ideia de identidade e singularidade.
Assim ao transformá-la em informação, faz aquilo que Luhman fez com o conceito (lembre-se que este autor trata mais a questão da comunicação do que a coisa em-si), diz citado por Byung Chul-Han: “Sua cosmologia é uma cosmologia não do ser, mas da contingência”, ou seja, algo que não possui essência, não tem identidade ou singularidade e não pode “ser”.
Esclarecendo que é uma forma particular de ver a informação, como “coisa transmitida”, e nisto o autor tem razão: “As informações não se deixam possuir tão facilmente quanto as coisas. A posse determina o paradigma da coisa. O mundo da informação não é governado pela posse, mas pelo acesso” (Han, 2022), isto é tão verdadeiro, que o dicionário português no Brasil passou a ter uma nova palavra que é “logar”, do inglês, log “registro” no sentido de marcar um acesso à “informação”, no sentido de Chul-Han.
Citando Jeremy Rifkin, Han adverte que a transição da posse para o acesso é uma mudança de paradigma que leva a mudança drástica no mundo da vida, subtítulo do livro, ele prevê um novo tipo de ser humano: “acesso, logo, ´access´são termos-chave da era nascente (Han, 2022).
Jeremy Rifkin, a transição da posse para o acesso é uma profunda mudança de paradigma que leva a mudanças drásticas no mundo da vida. Ele prevê até mesmo o surgimento de um novo tipo de ser humano: “Acesso, ‘logon’, ‘access’ são os termos-chave da era nascente. […]
Sobre a identidade modificada do sentido medieval, diz o autor: “Nós nos produzimos nas mídias sociais. A expressão francesa se produire significa colocar-se em cena. Nós nos encenamos. Nós performamos nossa identidade” (Han, 2022), veja bem: produz nas mídias.
Mídias são meios, a confusão com a ideia das redes, não de propósito é claro, destrói a terceira característica da coisa que é sua singularidade, não neste ensaio, mas em outros, o autor lembra que tudo no mundo se caracteriza pela mesmice, tudo parece muito igual.
Este mundo da “não posse” é diferenciado pelo desfrutar mais que o viver, faz da “idealização das coisas” uma tarefa, não é raro ver em programas e nas mídias sociais um grande número de perguntas utópicas e bizarras, tais como, o que seria se você fosse um objeto, se morasse em outro planeta, etc. e isto diverte o público das não-coisas.
Não se assustem os revolucionários, mas citando Walter Benjamim, Chul-Han escreve: “a relação mais profunda que se pode ter com as coisas”, esta substancialidade não é materialista e sim uma relação racional e “informacional” com as coisas, informação aqui em outro sentido.
Han, Byung-Chul Não-coisas : reviravoltas do mundo da vida / Byung-Chul Han ; tradução de Rafael Rodrigues Garcia. – Petrópolis, RJ : Vozes, 202
O ser, a clareira e as não-coisas
Estudando a etimologia da Clareira, retirando-a da filosofia de Heidegger, ela vem da palavra alemã Lichtung, onde além do significado de clareira na floresta (ele próprio viveu alguns anos na floresta negra da Alemanha), enquanto Licht é a palavra para luz, significará coisas ocultas, ou entes cuja verdade deve vir à tona, assim alguns tradutores usam desvelar.
A luz lembra o que seguiam os magos que foram seguidos por uma estrela que levaram até o nascimento de Jesus, provavelmente eram persas seguidores de Zoroastro, uma pintura de Ravenna (figura numa parede da igreja de São Apolinário de 526 d.C.) que é bem antiga revela pelos gorros que usavam e as calças que eram daquela região.
A clareira é no contexto da filosofia moderna, o que está oculto dentro de um todo, onde deve emergir o Ser, e isto parece mais apropriado a modernidade, visto que a fragmentação onde apenas emerge a parte, é na maioria das vezes oposta ao todo ao qual o ente pertence, assim a questão do Ser.
O ente que se descobre, enunciou o próprio Heidegger: “deixa-se ver em seu ser e estar descoberto. O ser-verdadeiro (verdade) do enunciado deve ser entendido no sentido de ser-descobridor” (Heidegger, 1986, 219).
Primeiro vemos esta verdade ontológica como Ser, e não mais como lógica, segundo vemos esta relação entre conhecer o objeto e a própria relação com o Ser, o que na filosofia moderna poderia ser chamada de subjetividade, mas não é porque não são instâncias separadas, porém separadas de sua materialidade de objeto podem se tornar algo além do que foi concebido até recentemente, o filósofo Byung Chul-Han fez um ensaio sobre não-coisas, o mundo dos objetos digitais onde as “a inflação das coisas nos ludibria a acreditar no oposto”.
O autor vai se referir ao mundo contemporâneo como “Como caçadores de informação, nos tornamos cegos a coisas silenciosas, discretas, até mesmo coisas ordinárias, trivialidades ou convencionalidades que carecem de estímulo, mas que percebemos em nossa vida diária”, e assim mergulhamos numa obscuridade do Ser em oposto a clareira.
A ordem digital está tornando o mundo não terreno, não substancial, diz o autor no prefácio: “Hoje, a ordem terrena está sendo substituída pela ordem digital. A ordem digital descoisifica o mundo ao informatizá-lo” capturando uma categoria de Vilem Flusser afirma: “As não-coisas estão atualmente invadindo nosso ambiente de todos os lados, e estão suplantando as coisas. Essas não-coisas são chamadas de informação”, citando a obra de Flusser: Dinge und Undinge – Phenomenological Sketches. Munique, 1993, vale lembrar que Flusser viveu no Brasil de 1940 a 1972.
Escapa nesta lógica o silêncio, a vita contemplativa (outro livro do autor), desmorona o Ser.
Han, Byung-Chul Não-coisas : reviravoltas do mundo da vida / Byung-Chul Han ; tradução de Rafael Rodrigues Garcia. – Petrópolis, RJ : Vozes, 202
HEIDEGGER, M. Sein und Zeit. 17 ed. Tübingen, Niemeyer, 1986.
Humildade e poder
Crescem as polarizações e as afirmações de poder, isto não leva a simetria, ao respeito e vai na direção oposta da humildade, não aquela piegas de textos próprios do poder, mas a daquela sabedoria de quem sabe o que é e de onde vem, do pó ou de húmus, de ondem vem a palavra.
Humus é a palavra grega que significa terra e que atualizada no português tornou-se terra fértil, deste mesmo vocábulo se originam às palavras “homem” e “humanidade”, e se pode ser oposto a uma ideia de poder, por outro lado não é oposta a ideia de fortaleza e sabedoria.
Para Hannah Arendt o poder é inerente a qualquer comunidade política, porém verdadeiros líderes resultam da capacidade humana para agir conjuntamente, sob o consenso de todos, e Byung Chul Han, que é um leitor de Hannah Arendt, estabelece que só a simetria onde o respeito existe, que é o alicerce da esfera pública, e onde ele desaparece, ela desmorona, escreve no seu livro “O enxame” que examina a cultura nas novas mídias sociais.
Fundamentado nestas receitas de poder exercito a favor e com a esfera pública, é possível pensar numa relação de poder com humildade, um verdadeiro empoderamento não é o exercício da força ou até mesmo da violência, mas sua supressão e o restabelecimento do equilíbrio, do diálogo e se possível, do consenso, verdadeiros líderes buscam isto.
Sim é contrário a tudo que estamos vendo e assistindo na esfera pública, a imposição de pessoas, estruturas e formas de oprimir uma parcela da população em resposta a outra que alega ser dona dos verdadeiros privilégios em função da violência sofrida, porém, isto é, um circulo vicioso onde a violência se justifica e se perpetua.
Não por acaso crescem as guerras com armas ou sem elas, porém considerar que é possível por este meio submeter o grupo oposto é um delírio, uma vez que aquele que é submetido a algum tipo de privação, sem a humildade que resulta da sabedoria e da fortaleza, responderá na mesma moeda e o princípio de toda guerra é exatamente isto.
Falamos no post anterior do matris in grêmio, gerador de divina sabedoria e fortaleza, no texto bíblico diz que o poderoso olhou para “a humildade de sua serva”, mas até mesmo líderes e correntes religiosas compreender este “poder” como aquele mundano que oprime o Outro, é daí a origem de tantas apostasias e más doutrinas, não por acaso acabam em abuso de poder.
O anjo que anuncia a divindade da concepção de Maria (o nome Conceição vem daí), é Gabriel que significa fortaleza de Deus, numa sociedade que predomina o poder prepotente, arrogante e que se transforma em ditatorial é compreensível que o poder de uma virgem frágil e dócil a vontade divina seja incompreensível, nada mais contrário ao falso “poder” opressor.
Realismo moderado e a contemplação
Já foi postado que a ruptura da vita contemplativa se deu devido ao homo laborans, ou seja, na modernidade quando o trabalho se torna um imperativo econômico, principalmente para as camadas mais pobres da sociedade, no início da revolução industrial sequer havia limite de horário aos trabalhadores e muitas indústrias desrespeitavam até sábado e domingo.
Porém a questão surgiu já na idade média, o trabalho organizado nos mosteiros, e muitos dos primeiros monges beneditinos vinham da nobreza, era realizado pela primeira vez por homens livres, e inclusive a palavra “tripalium” de onde vem trabalho significava tortura (estripar).
Enquanto pensamento neste período medieval surge a querela dos universais, há várias versões para sua origem, mas uma bastante aceita é um fragmento encontrado dos escritos de Boécio (480-525 d.C.), anterior a Tomás de Aquino, ele traduziu para o latim e comentou Aristóteles, embora parcialmente, e fez uma introdução às “Categorias” de Aristóteles.
A querela tratava de questionar se estas categorias eram coisas reais que existiam ou apenas nomes que se davam às coisas, daí as correntes realistas e nominalistas medievais, que chegaram até os nossos dias com a questão da viragem linguística retomada recentemente.
O fato destas coisas existirem ou não significa que devemos ver o Ser como ser de linguagem, conforme defende Heidegger ou simplesmente um fruto do meio material e suas variações, não é apenas o materialismo corrente derivada do objetivismo, mas de uma visão do subjetivo, afinal aquilo que é próprio do ser (subjetivo vem de sujeito).
O realismo moderado na idade média se aproximava, mas colocava limites no realismo, por exemplo de Tomás de Aquino, que como Boécio vai reler a obra de Aristóteles, em sua Suma Teológica, vai caracteriza como razão e esta é uma raís esquecida do racionalismo moderno.
Boécio bem anterior na leitura de Aristóteles faz a escolha entre um realismo “transcendente” ou extremo, mais de caráter platônico, e um realismo “imanentista” ou moderado, com influência de Aristóteles, é importante frisar que Boécio era leitor de Porfírio de forte influência.
A questão deixada por Boécio era “se” os universais (categorias) existiam, só para exemplificar a ideia de animais que são cavalos genérica ou os cavalos reais com raça, cor e sua espécie, e que pode ser compreendido em dois comentários:
“visto que seja necessário, Crisaório, saber, pela útil contemplação destas coisas, o que é o gênero e o que é a diferença, o que é a espécie e o que é o próprio e o que é o acidente, tanto quanto ao que em Aristóteles … Em seguida, certamente me recusarei a falar, sobre os gêneros e as espécies, o seguinte: subsistem ou são postos em intelecções isoladas e nuas? Subsistentes, são corporais ou incorporais?” (Boécio, 1906, p. 147).
A questão merece ser aprofundada visto que os “nomes” das coisas significam uma linguagem.
BOÉCIO. In Isagogen Porphyrii Commenta. Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum, vol. 48. Vindo-bonae: F. Tempsky/ Lipsiae: G. Freytag 1906.
Entre a imortalidade e a eternidade
Não é apenas um tema espiritual como parece, o Vita Activa de Hannah Arendt cita por Byung-Chul é uma correção de rota, de nos retirar da simples temporalidade mortal, para o “tempo que é próprio aos deuses, que não morrem e não envelhecem, e do cosmos imortal” (Han, 2023, p. 145), onde diferencia imortalidade de eternidade.
A busca da imortalidade é, novamente Han citando Arendt, “a fonte e o centro da vita activa”. Segundo o autor, o “ser humano conquista sua imortalidade no palco do político. Em contrapartida, o objetivo da vita contemplativa não é, segundo Arendt, o persistir e durar no tempo, mas a experiência do eterno, que transcende tanto o tempo como também o mundo circundante” (Han, 2023, p. 145), em outras palavras, imortalidade é a busca insensata do palco político, enquanto eternidade é a busca da experiência de eternidade já aqui e agora.
Mas alerta o autor que o ser humano não consegue demorar-se na experiência do eterno, “ele precisa retornar ao seu mundo circundante” (idem), ao compará-la com o pensador, ele logo que começa a escrever abandona a experiência do eterno, assim se entrega a vida activa, e é nela que espera alcançar a imortalidade, Arendt admira Sócrates que não escreve, embora a própria Arendt pensou e registrou seus pensamentos com a intenção da imortalidade (Han, 2023, p. 146), mas a escrita pode ser uma contemplação diz o autor.
Na visão de Byung-Chul a maneira que Arendt vê o mito da caverna de Platão, na verdade é uma história completamente diferente, ela é de um filósofo que liberta da corrente os seus companheiros às sombras que oscilam diante deles, as quais eles consideram a única realidade (pag. 147-8), Platão pede a Glauco imaginar: o que aconteceria com os filósofos se depois de ter visto a verdade voltasse a ela e tentasse libertar os preços das ilusões? (pag. 148).
A “parrehesia” (abertura da verdade) é uma situação de risco, “o filósofo age, quando apesar do perigo de morte, retorna a caverna” a fim de convencê-los da verdade, assim a ação antecede o conhecimento da verdade, enquanto a contemplação é o caminho do conhecimento para a verdade, que precede a ação (pag. 149).
Afinal a própria polis grega e o pensamento de Platão tiveram origem nos diálogos de Sócrates escritos pelo próprio Platão, este sim uma verdade contemplativa e discursiva (diria dialogal, mas o termo pode ter interpretações dúbias), assim a ação precede o pensamento em Platão.
Segundo a crítica de Hans, a ideia de que a perda da capacidade contemplativa levou a vitória do “animal laborans” que submete tudo ao trabalho com a consequente perda da capacidade contemplativa e sua reintegração a natureza e ao planeta.
Han cita Santo Gregório, um mestre da Vita Contemplativa: “quando um bom programa de vida exige que se passe da vida ativa à contemplativa, é frequentemente útil que a alma retorne da vida contemplativa à ativa, de tal modo que a chama da contemplação desperta no coração entregue toda sua plenitude de atividade” (pag. 151), assim se vive a eternidade terrena.
HAN, Byung-Chul. Vita Contemplativa. Trad. Lucas Machado, Brasil, RJ: Petropolis, 2023.
Palestina, General de Inverno e Essequibo
A trégua infelizmente acabou porque o Hamas cometeu um atentando no último dia de trégua, matando um rabino e duas mulheres, segundo a imprensa israelense, e a milícia Al-Qassan, braço armado do Hamas, reivindicou o atentado.
Segundo o FDI (Forças de Defesa de Israel) 200 alvos do Hamas já foram atingidos, um deles um suntuoso prédio que funcionava a Suprema Corte do Hamas, a escala da guerra retorna.
General de Inverno é o nome dado ao inverno russo durante as guerras porque tanto na invasão napoleônica (1812) quando o exército de um conjunto de alianças (é importante lembrar que algumas nações europeias apoiavam) perde a guerra devido o inverno, também na segunda guerra mundial o inverno foi decisivo para a Alemanha perder a guerra.
O que pensar agora do inverno na Ucrânia, onde a Rússia teve avanços em vários fronts, no entanto ela tem problemas na Criméia onde há grande parte da munição russa, o inverno lá prolonga até março e a Ucrânia dá sinais de fraquezas e perde parte dos apoios, agora países como a Finlândia e a Polônia já se mobilizam em defesa própria sobre uma possível invasão.
Por último, um front pode aparecer na fronteira do Brasil, o exército já enviou tropas para a região devido a possibilidade de invasão do território brasileiro que seria estratégico para uma invasão da Venezuela contra a frágil força militar da Guyana (antiga Guiana Inglesa).
Um referendo feito na Venezuela nestes dias, é bom lembrar que Maduro controla todo o aparato do Estado, deu parecer favorável a 5 questões sobre uma possível invasão da Guiana de Essequibo como é chamada a região que hoje pertence a Guyana, uma das questões desafia o Corte Internacional de Justiça que proibia a Venezuela de qualquer invasão.
Enfim um cenário desastroso de crise civilizatória vai se agravando, mas acreditamos na paz.
A sociedade que vem
Este é o título do último capítulo do livro de Chul Han “Vita contemplativa”, nele analise a crise religiosa e suas consequências para a cultura, o ser e a sociedade atual.
Inicia afirmando: “a atual crise da religião não se pode deixar reduzir simplesmente a que perdemos a fé em Deus ou que nos tornamos desconfiados de certos dogmas” (pg. 153), ela reside no fato que perdemos a capacidade contemplativa, uma crescente coação tanto da comunicação como da produção dificulta o “demorar contemplativo”, não há como “parar”.
Cita Malebranche (1638- 1715) que dizia que a atenção é como uma “prece natural da alma”, a nossa hiperatividade pode ser responsabilizada pela religiosa, “a crise da religião é uma crise da atenção” (pg. 154), e o pior que o autor não aponta, o fanatismo dominou a “atenção”.
Diz o autor “escutar é o verbo para religião”, mas também é para meditação, estudo, contemplação e reflexão, seja qual for o princípio do limiar de um pensamento ele requer uma parada, uma inatividade.
No pensamento atual do romantismo, “a liberdade é desacoplada do si mesmo”, a ação dá lugar ao escutar: “somente a tendência a intuição, quando direcionada ao infinito, põe em mente a liberdade ilimitada” (pag. 159) diz o autor agora citando Schleiermacher.
Ainda citando Schleiermacher, escreve que as lágrimas interrompem o “feitiço que o sujeito coloca na natureza” (pag. 160), dissolvido em lágrimas, o sujeito se entrega à Terra.
Agora citando Agamben em “A comunidade que vem” afirma sobre o reino vindouro do Messias que Walter Benjamim teria contado a Ernest Block e está citando em Han:
“um rabino, um verdadeiro cabalista, disse uma vez: para instaurar o reino da paz, não é necessário destruir tudo e dar início a um mundo completamente novo; bastaria deslocar um pouquinho essa taça ou esse arbusto ou aquela pedra, e do mesmo modo todas as coisas. Mas esse pouquinho é tão difícil de realizar e a sua medida tão difícil de encontrar que, no que diz respeito ao mundo, os homens não o conseguem e é necessário que chegue o messias” (Aganbem apud Han, 2023, pg. 171).
É esta chegada, chamada parusia (uma nova vinda para os cristãos) que também se celebra no Natal (na segunda semana do advento).
HAN, Byung-Chul. Vita Contemplativa. Trad. Lucas Machado, Brazil, RJ: Petropolis, 2023.
A contemplação e a polis
O título do quinto capítulo do livro Vita Comtemplativa de Byung-Chul Han é O phatos da ação, começa descrevendo os dois conceitos sagrados da tradição judaica: Deus e Sabá, para a cultura judaica Deus é Sabá, ou seja, é redenção, o imortal (pag. 107), ontem o tempo é suspenso, ou seja, comparando com o conceito de Han é a inatividade.
A criação do ser humano não é o último ato da Criação, só o repouso do Sabá a consuma, o mundo é similar a câmara nupcial: “falta-lhe porém a noiva. Só com o sabá chega a noiva” (Han, 2023, p. 108), que é uma citação de “Der sabbat” de Heschel.
A analogia com a noiva será usada também nas parábolas das noivas, a chegada “daquele dia” em que o noivo vem busca-la e deve encontrar as lâmpadas acesas (desenvolvendo em torno do tema da prudência), Arendt vai modificar a ideia do repouso divino complementando-a com a liberdade princípio para um novo começo (ou recomeço, necessário em muitas etapas da vida), diz a citação de Han:
“com a criação do ser humano, o princípio do começo (que na criação do mundo estava nas mãos de Deus e, portanto, fora do mundo) aparece no próprio mundo e permanecerá imanente a ele enquanto houver seres humanos; o que, naturalmente, naturalmente, em última instância, não quer dizer outra coisa senão que a criação do ser humano como um ´alguém´ coincide com a criação da liberdade” (apud Arendt, Han, 2023, p. 109).
“O “sentimento de realidade” que se deve apenas a ação; ou seja, ao atuar e produzir um efeito, reprime completamente o sentimento de ser. O sentimento de festividade, no qual é possível experienciar uma realidade superior, é estranho a Arendt” (Han, 2023, p. 112).
Este conceito é o temenos da polis grega, que significa o espaço sagrado recortado do espaço público que é reservado às divindades; um peribolos (literalmente um cercadinho ou um cercado), ou seja, um espaço cercado, uma área do templo delimitado por muros. Temenos é um templum, um lugar consagrado e sagrado, a palavra contemplação remonta ao templum.
Assim o templum é parte da polis, na sua viagem à Grécia, Heidegger tem em mente a acrópole quando escreve sobre a polis: “ … essa polis não conhecia, assim, a subjetividade como medida de toda objetividade. Ela se submetia ao jugo dos deuses, que, por sua vez, estavam submetidos ao destino, à Moirá” (apud Heidegger, Han, 2023, p. 113-4) (na foto a Acrópole grega).
Ao apresenta-la apenas como liberdade e ação, Han critica Arendt, a dimensão cultural das festas, rituais e jogos não tem lugar em seu pensamento e elas eram integrantes da polis.
HAN, Byung-Chul. Vita Contemplativa. Trad. Lucas Machado, Brasil, RJ: Petropolis, 2023.