RSS
 

Arquivo para a ‘SocioCibercultura’ Categoria

A alegria em meio à crise

11 set

É possível manter a alegria em meio a crise, dificuldades econômicas e guerras que nos ameaçam ? Não se trata de ingenuidade ou mera alienação, outros preferem pensar em manter seus bens essenciais: alimentação, saúde e moradia segura.

Byung-Chul teoriza que apesar da “diferença” entre Derridá e Heidegger (vejam os posts sobre o livro do autor sobre O coração de Heidegger) há uma afinidade estrutural na visão de luto dos dois, está caracteriza pela renúncia da autonomia do sujeito em Derrida: “Por mais narcisista que nossa especulação subjetiva siga sendo, ela não pode mais se fechar a esse olhar, diante do qual nós mesmos nos mostramos no momento em que o convertemos em nosso luto ou podemos desistir dele [faire de lui notre dueil], fazendo nosso luto, fazendo de nós mesmos o luto por nós mesmos, quero dizer, luto pela perda de nossa autonomia, por tudo que nos fez a nós mesmos a medida de nós mesmos” (Han, p. 430 citando o texto de Derridá “Krafter der Trauer”, fortalecedor da dor), isto é, ambos tem em comum uma visão de renúncia a autonomia do sujeito, o “eu” do idealismo.

Aqui o importante é não deixar o luto trabalhar (lembremos o conceito já visto nos posts do “luto do trabalho”) ele é substituído em Derridá por um jogo do luto: “contudo quanto mais alegre a alegria tanto mais pura a tristeza que nela dorme. Quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria …” (Han, pg. 430-431), mas o luto de Heidegger, explica Han, não mata a morte, tentar matá-la resulta em algo ainda pior: “o querer ressuscitar, ultrapassar violenta e ativamente o limite da morte só os arrastaria (os deuses) para uma proximidade falsa e não divina e traria a morte em vez nossa vida” (Han, pg. 431-432 citando Heidegger).

Heidegger explica que é “não é um sintoma que posa ser eliminado pela contabilidade psicoeconômica. Ele não tem um traço deficitário que implique o trabalho (de luto).”.

Este “retirado” ou “poupado” para o qual bate o coração “santo e enlutado” de Heidegger não é submetido à economia, este “poupado” não se pode gastar nem capitalizar, é portanto aquele  que está e caracteriza a renúncia, Han não exemplifica, mas podemos pensar em ajuda humanitária em desastres e guerras, já que vai caracterizar a identidade de renúncia e agradecimento como concebível fora da economia, usando termos heideggerianos “suportar pesarosamente a necessidade de renunciar” e promete a “impensável doação”.

Diz uma frase profunda e sábia de Heidegger, a renúncia é a “forma mais elevada de posse”, parece contrário, mas só temos de fato aquilo que podemos dar pois do contrário é mercadoria de troca, e mais ainda renúncia se torna agradecimento e “dever de agradecimento”, esta dor aumenta aprofundando se torna alegria: “quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria que nela repousa”. (pg. 433), mas não se torna nem sublimação, que nos obriga “trabalhar”, pois é a “inibição de todo rendimento” e a “consciência do vazio e da pobreza do mundo”.

Elogio da miséria alguém poderia pensar, não é um elogio a alegria moderada e contínua, diferente da euforia e êxtase que é seguida de depressão, “a falta do divino acarreta o luto, remonta a um obstinado esquecimento do ser, no qual Heidegger inscreve o divino” (Han, p. 433-434), mas certamente não é ainda o divino bíblico, mas cerca-o.

A recompensa e a alegria do Divino inscrito no ser, é aquela que renuncia e doa, mas sabe que haverá recompensa de receber cem vezes mais não em bens, mas em alegria.

HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

O que é a crise do idealismo

10 set

O cenário do envolvimento mundial nas guerras é um cenário difícil, é preciso entender o que está por trás, antes tempos um confronto cotidiano entre mentes, almas e interesses econômicos que se digladiam diariamente.

Tratam no fundo de uma defesa da “sociedade livre” ou da defesa de uma “sociedade liberta do capitalismo” sem que a origem destes pensamentos e modelos sejam analisados a fundo.

Refletem a crise do pensamento contemporâneo que não é apenas filosófica, religiosa ou política, ela e uma perda de fundamentos do que é o humano, a natureza e a própria ciência.

A visão de Sloterdijk expressa em sua esferologia no volume I Bolhas, ele mostra que o tanto o fenómeno onto como antropológico são mais essenciais que a a relação entre sujeito e objeto, pois precedem a ela a experiência espacial do Ser-em (ainda que não seja exatamente o que Heideger chamou de In-Sein), esta é a principal crítica ao idealismo contemporâneo.

No campo religioso (e pode-se estender ao pensamento), o ensaísta Byung-Chul Han, reflete que o “pathos da ação, bloqueia o acesso à religião. A ação não faz parte da experiência religiosa. Em Sobre a religião Scheleiermacher eleva a intuição à essência da religião e a contrapõe a ação” (Han, Vita Contemplativa, 2023, p. 154) vale lembrar que Scheleiermacher reintroduziu a hermenêutica como método e influenciou a fenomenologia moderna.

Disse textualmente (citado por Han) Scheleiermacher afirma em Sobre a religião: “sua essência não é nem pensar nem agir, mas a intuição e sentimento. Ela quer intuir o universo, […] ela quer escutá-lo devotamente, ela quer apreendê-lo em sua passividade infantil e ser plenificada por suas influências imediatas” (apud Han, p. 154), e afirma também “toda atividade em uma intuição admirada do infinito” e afirma Han: “quem age tem um objetivo diante dos olhos e perde o todo de vista. E o pensar dirige sua atenção a apenas um objeto. Somente a intuição e o sentimento têm acesso ao universo, a saber, o ente em sua totalidade” (Han, 154, idem).

Esse desprezo pelo ente em sua totalidade, tomando apenas seus aspectos sociais particulares como os econômicos, os étnicos ou mesmo os religiosos é aquilo que Heidegger chamou de esquecimento do Ser, ainda que os gregos tenham trabalhado aspectos ontológicos.

Porém há duas convicções e diferentes visões do idealismo, ou idealismo de estado em duas propostas, o capitalista e o socialismo, não esquecendo que Marx é também hegeliano, ainda que tenha se nomeado seu grupo como “novos hegelianos”.

E a crise da democracia é uma crise de estado, modelo que foi corrompido por megalopatas e ditadores que pouco ou nada sabem dos interesses e de como vive a população simples.

A guerra atual é a crise deste modelo, ambos dispostos a provar sua superioridade através da imposição bélica, e bem disse o escritor Eduardo Galeano: “nenhuma guerra tem a honestidade de confessar, eu mato para roubar” e mais evidente ainda matam civis inocentes.

 

O céu pode falar

06 set

Sloterdijk supõe o tempo que através dos tempos os homens “fizeram deuses falarem”, assim diz também da “fala” de Jesus, e diz com propriedade histórica: “Por fim, esses que foram invocados em demasia também se deram a conhecer por meio da encarnação pessoal: algumas vezes tomaram a liberdade de recorrer a corpos aparentes que iam e vinham conforme lhes aprazia.” (pg. 22), é verdade e isto significa: Não usar o nome de Deus em vão.

Mas o raciocínio histórico ajuda melhor na outra alternativa do uso de “Deus”: “ … ou se condensaram “na plenitude do tempo”, em um Filho do Homem, em um Messias salvador. Depois que Ciro II, o rei dos persas famoso por sua tolerância religiosa, permitiu aos judeus que tinham sido levados em cativeiro para a Babilônia o retorno à Palestina no ano de 539 a.C., pondo fim a um exílio de quase sessenta anos … a elite espiritual dos judeus ficou muito mais receptiva a boas-novas de cunho messiânico — o Segundo Isaías deu o tom para isso.” (pg. 22).

Diz corretamente ao chamar “panegírico” (culto a um deus abstrato) de Ciro, ele não se converteu nem mesmo abandonou suas crenças em outros deuses, como “instrumento de Deus” ele libertou um povo, lembra o autor também Marcião que cultuava “o deus desconhecido” que vai fazer Paulo chamar os gregos de um povo religioso, porém afirma que o Deus conhecido é o que o apóstolo dos gentios (Paulo) o proclama na figura de Jesus, o Redentor.

A questão da redenção apontada por Sloterdijk do ponto de vista histórico, tem seu sentido pois são momentos que “céu se abriu”, mas o vê como um espetáculo onde “O estágio mais antigo de evidência de fontes sensíveis e suprassensíveis se mostra em forma de comoção dos participantes gerada por um “espetáculo”, um rito solene, uma hecatombe fascinante.” (pg. 24) e isto se repetiu através dos tempos, com grandes oradores e grandes “midiáticos”, mas será este o Deus verdadeiro, de Agostinho como o próprio Sloterdijk o cita (De Vera religione).

Ele também tem razão ao dizer sobre alguns que se julgam com dons “divinos”: “. Em geral, partia-se do pressuposto de que havia intérpretes capazes de associar um sentido prático aos símbolos codificados” (pg. 25), mas novamente não estes falsos oráculos que buscam holofotes.

Veja uma vez que Jesus pede a cura de um surdo/mudo de nascença (Mc 7,34-36): “Olhando para o céu, suspirou e disse: “Efatá!”, que quer dizer: “Abre-te!” Imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade. Jesus recomendou com insistência que não contassem a ninguém. Mas, quanto mais ele recomendava, mais eles divulgavam”, este pequeno detalhe que aparece em muitos milagres, não divulguem, ou seja, não é um espetáculo, não significa não fazer bem feito, no entanto, com sentido sagrado.

O sentido desta cura é mais profundo, além de fazer um mundo e surdo de nascença ouvir e falar, lendo trechos anteriores do evangelista Marcos encontramos a ideia absurda (presente em meios “religiosos” de hoje), usando a ideia mulher siro-fenícia cuja filha tinha um “demônio”, não é  a ideia que uma doença ou alguma ocorrência ruim seja “castigo do céu”, pois é do coração do homem que saem as coisas “impuras”: maldades, cobiças, etc.

O Efatá dito para cura de um surdo-mudo de nascença é porque não é uma doença comum, alguém cuja vida e sistema cognitivo não foram ensinados a ouvir e falar, o fez imediatamente, o que é bem complexo, é mudar a mente.

Tempos sombrios, é preciso que surdos ouçam e mudos falem, pois há quem queira calar.

SLOTERDIJK, P. Fazendo o céu falar: sobre teopoesia. Trad. Nélio Schneider. 1a. ed. – São Paulo: Estação Liberdade, 2024.

 

O universo foi criado

05 set

Seja válida ou não a hipótese da criação do universo pelo Big Bang (existe a hipótese do multiverso) em algum momento ele a-pareceu, é muito cara a categoria do dasein estar aí de Heidegger, mas isto é essencialmente o humano do Ser.

Sloterdijk vai entrar neste mérito escrevendo: “Trezentos anos após a morte do homem que foi venerado por seus seguidores como o Messias que chegara, o Concílio de Niceia estabeleceu o dogma de que o Senhor Jesus Cristo seria Deus de Deus e luz de luz, verdadeiro Deus do verdadeiro Deus, gerado e não criado — o que quer que isso signifique.” (pg. 31), se o nome de Deus incomoda (e faz sentido), a criação não o ser-aí foi criado.

As fotos recentes do telescópio James Webb intrigam cientistas porque aparentemente não houve uma criação lenta, galáxias inteiras complexas parecem estar já no início do Big-Bang, e a força que as movimento parece ser algo realmente extraordinário, impensada pela ciência.

Como dissemos no post anterior, além de Jesus, para Sloterdijk também Sócrates e Sêneca devem ser examinados, e são próximos historicamente, escreveu: “O que na linguagem comum se chama “vir a ser humano” designa, descontadas as extrapolações, um estado de coisas que o filósofo romano Sêneca (1-65 a.C), em parte contemporâneo de Jesus (4 a.C-30 d.C), durante algum tempo mentor do jovem Nero [vejam] e, mais tarde, forçado por ele ao suicídio, patenteou na seguinte sentença: sine missione nascimur — com o sentido de: nascemos com a perspectiva segura de morrer” (pgs. 31-32).

Assim, poderia se separar o mortal do importante, mas Sloterdijk pensa diferente e escreve: “A leviandade cotidiana é uma máscara do fantasma atemporal da indestrutibilidade; o pregador na Palestina e o filósofo em Roma tiram essa máscara para testemunhar que existe algo indestrutível que não é de natureza leviana e fantasmática.” (pg. 33), por isso sua descrença com algo “indestrutível”, e a diferença do pregador messiânico da Palestina é “ressuscitou”.

Para ele Jesus se distinguiu no falar: “mas talvez também apenas uma façon de parler [modo de falar] para “eu” —, veio ao mundo, como ele próprio foi levado a dizer, para assinar seu ensinamento com sua vida.” (pg. 33), mas sua vida era de outro modo como alguém que veio de outra realidade e a conhece.

Assim está preso a ver as realidades humanas como “ex machina”: “O homem que chamara a si mesmo de “Filho do homem” falou elementos essenciais de sua mensagem do alto da cruz, na qual ele terminou como deus fixus ad machinam [deus preso à máquina]” (pg. 33), mas não é, vai examinar os escritos de Inácio de Loyola (fundador dos jesuítas) e de Hegel, mas fica preso a noção de absoluto de Hegel, porque este não chega a admitir o universo complexo que agora vemos através do James Webb.

SLOTERDIJK, P. Fazendo o céu falar: sobre teopoesia. Tradução Nélio Schneider. – 1. ed. – São Paulo : Estação Liberdade, 2024.

 

A análise histórica da teopoesia

04 set

Ninguém se converterá lendo Sloterdijk, ele chama o termo religião de “nefasto”, mas o termo não a cultura a qual procura aprofundar, sobre o termo afirma: “… sobretudo desde que Tertuliano inverteu, em seu Apologeticum (197), as expressões “superstição (superstitio)” e “religião (religio)” contra o uso linguístico romano: ele chamou de superstição a religio tradicional dos romanos, ao passo que o cristianismo deveria se chamar “a verdadeira religião do verdadeiro deus”. Desse modo, ele produziu o modelo para o tratado agostiniano De vera religione [Da religião verdadeira] (390), que marcou época, mediante o qual o cristianismo se apropriou definitivamente do conceito romano” (pg. 20) e seu raciocínio e visão histórica é bem mais precisa que aquela que quer parecer que Constantino criou uma “religião”.

Histórico porque a influência sobre Agostinho dos neoplatônicos, em especial de Plotino, é não apenas razoável, mas forte o suficientemente para aquilo que vai escrever, não na Vera religione, mas em suas Confissões que é praticamente seu testamento e modelo de sua conversão, Agostinho deixa o maniqueísmo (dois polos opostos em disputa) para descobrir o Uno (categoria de Plotino), a religião do Amor, que valeu uma tese de doutorado de Hannah Arendt.

Entretanto não se nega a ação política da religião, Sloterdijk escreve citando Eneida de Vírgilio: “Nenhum imperialismo ascende sem que tenham sido interpretadas as posições atuais das constelações no céu temporal, tanto no caso de detentores do poder quanto de aspirantes a ele. Somam-se a elas conselhos do submundo: “Tu regere imperio populos, Romane, memento.” (pg. 26 citando Virgílio).

Ele está falando de comunidades culturais  e cita Constantino: “a integração simbólica ou “religiosa” e emocional de unidades maiores: de etnias, cidades, impérios e comunidades cultuais supraétnicas — sendo que estas últimas também podiam assumir um caráter metapolítico, ou melhor, antipolítico, como ficou claro no caso de comunidades cristãs dos séculos pré-constantiniano” (pg. 25-26), quando cristãos eram perseguidos e isto é história.

A igreja já se estrutura nesta época: “Os bispos (episcopoi: supervisores) eram, em essência, algo como praefecti (comandantes, procuradores) em trajes religiosos; suas dioceses (em grego: dioikesis, administração) se assemelhavam aos anteriores distritos imperiais após a nova subdivisão feita por Dioclécio em torno do ano 300; sobretudo através delas, o princípio da hierarquia chegou à organização eclesial em formação …” (pg. 26), assim Constantino ano 313 quando coloca a religião católica como religião “oficial” [por influencia da mãe Helena] pouco ou quase nada influenciou sua estrutura.

De fato na herança judaica, já havia consagrado muitos rituais: “O princípio mediológico apò mechanès theós, aliás, deus ex machina, próprio da técnica cênica ou então da dramaturgia religiosa, de fato já estava em uso em vários rituais do Oriente Próximo muito antes de surgir no teatro ateniense” (pg. 28), assim este “deus ex machina” já estava presente no judaísmo. (Na figura acima a representação de Medeia de Euripedes do deus ex machina).

O autor reconhece a virada religiosa de Jesus: “O homem-deus, que se chamou de “Filho do homem” inspirado em fontes persas e judaicas — possivelmente um título messiânico, mas talvez também apenas uma façon de parler [modo de falar] para “eu” —, veio ao mundo, como ele próprio foi levado a dizer, para assinar seu ensinamento com sua vida” (pg. 32), embora o compare com Sócrates e Sêneca que tinham “convicções irrenunciáveis”.

SLOTERDIJK, P. Fazendo o céu falar : sobre teopoesia. tradução Nélio Schneider. – 1a. ed. São Paulo : Estação Liberdade, 2024.

 

A teopoesia de Sloterdijk

03 set

Um dos maiores filósofos contemporâneos, de enorme influência em Byung-Chul Han, Sloterdijk está longe de ser um cristão ou algum tipo de religioso, mas é sábio o suficiente para saber a enorme influencia da religião na cultura através dos séculos e no nosso tempo.

De que céu está falando então, esclarece: “O céu de que se fala não é um objeto passível de percepção visual. No entanto, desde tempos imemoriais, ao olhar para o alto se impunham representações em forma de imagem acompanhadas de fenômenos vocais: a tenda, a caverna, a abóbada; na tenda ressoam as vozes do cotidiano, as paredes das cavernas repercutem antigas cantorias de magia, na cúpula reverberam as cantilenas em honra do Senhor nas alturas” (pg. 11), esclarece o autor na sua observação preliminar.

Deuses mitológicos, o autor a partir do papiro de Greenfield (século X a.C.), onde se vê: “Detalhe do papiro de Greenfield (século X antes da nossa era): “A deusa do céu, Nut, curva-se sobre o deus da terra, Geb (deitado), e do deus do ar, Shu (ajoelhado). Representação egípcia de céu e terra” (foto, Wikipedia Commons, pg. 12).

Porém não é também um ensaio mitológico, escreve: “O que se pretende, no que se segue, é falar de céus comunicativos, luminosos e que convidam a arrebatamentos, porque, correspondendo à incumbência do esclarecimento poetológico, eles constituem zonas de origem comum de deuses, versos e aprazimentos”.

Faz uma curiosa metáfora com Mt 13,34, trecho tão caro aos cristãos que diz: “Tudo isso Jesus falava em parábolas às multidões. Nada lhes falava sem usar parábolas, para se cumprir o que foi dito pelo profeta: ‘Abrirei a boca para falar em parábolas; vou proclamar coisas escondidas desde a criação do mundo'” (Mt 13,34-35), era necessário porque falava de céus “comunicativos, luminosos”.

Em sua metáfora diz Sloterdijk: “Deus ex machina, deus ex cathedra e sem parábolas nada lhes dizia” (sobre a realidade divina), e aqui o filósofo indaga o mundo contemporâneo, que idolatra esses deuses contemporâneos ex machina e ex cathedra.

Vai relembrar a teopoesias na boca de Homero, que tinha “deuses falantes”, mas também lembra a passagem em que Zeus repreende “as manifestações voluntariosas de sua filha Atena”, e diz a ela: “Minha filha, que palavra te escapou da barreira dos dentes?”(pg. 15).

É claro, não falamos como cristãos de deuses mitológicos, lembra a semiótica cristã onde os sinais são importantes: “zona de sinais cresce paralelamente à arte de interpretação. O fato de não estar acessível a todos se explica por sua natureza semiesotérica: Jesus já censurou seus discípulos por não entenderem os “sinais do tempo” (semaîa tòn kairòn).”  (pg. 25).

Não se trata de delírio nem de falsidades grosseiras sobre eventos escatológicos, se eles existem somente são portadores destes “sinais” verdadeiros oráculos e profetas, ou para usar o termo de Sloterdijk: teopoetas que dizem coisas do céu, como poesia e clareza, ainda que usem parábolas pela dificuldade de expressá-las na linguagem e realidade cotidiana.

Os sinais dos tempos, sombrios como as guerras e vivos como aqueles que resistem com o espírito da esperança e da paz, não fazem da tragédia como os gregos um sinal de vingança ou de intolerância, mas de ver além daquilo que a realidade crua e nua parece mostrar.

Sloterdijk, P. Fazendo o céu falar: sobre a teopoesia, Trad. Nélio Schneider, Estação Liberdade, 2024.

 

Vida interior e felicidade

30 ago

Vivemos a pura exterioridade, o homem moderno não conhece a vida interior, está projetado sobre as coisas e as ações, acredita que pode arrancar dela aquilo que falta interiormente.

Byung-Chul Han em seu ensaio “Vita Contemplativa” cita um conto de Walter Benjamin “Não esqueça o melhor” no qual lembra um rapazinho pastor, “a quem é permitido, em “um domingo”, entrar na montanha de seus tesouros, mas com a instrução enigmática: “não esqueça o melhor”. O melhor significa o não fazer.” (Han, 2023, pg 33).

Fazendo uma leitura do Ser na modernidade, Han escreve: “A crise do presente consiste em tudo aquilo que poderia dar sentido e orientação à vida e está se partindo.  A vida nãos e apoia em nada resistente que a sustente.” (pg. 87), lembra citando Hanna Arendt que afirma “encontrar incerto abrigo na escuridão do coração humano” que ainda tem a capacidade de dizer: “de recordar e dizer: para sempre” (idem) e lembra neste aspecto a imortalidade.

Ao contemplar o ser que tem uma dimensão temporal: “Ele cresce longa e lentamente. O curto prazo atual o desmonta.” (pg. 89) e cita Niklas Luhmann sobre a informação (atual): “Sua cosmologia é uma cosmologia não do ser, mas da contingência” (pg. 89 citando Luhmann).

Mas lembra a imortalidade traduzida nesta crise como: “A busca pela imortalidade, pela glória imortal, é, segundo Arendt, “a fonte e o centro da vita activa.” O ser humano conquista sua imortalidade no palco do político” (pg. 145), mas a verdadeira imortalidade é o eterno.

Então escreve Han: “Em contrapartida a vita contemplativa não é, segundo Arendt, o persistir e durar no tempo, mas a experiência do eterno, que transcende tanto o tempo como também o mundo circundante.” (idem pag. 145).

Arendt admira Sócrates, escreve Han, “que renuncia voluntariamente à imortalidade” (pg. 146) e assim lembra que mesmo o escrever torna-se vita activa, e cria uma imortalidade passageira, a qual Han lembra que também Arendt buscou ao escrever.

Mas não se trata de abandonar o complemento da vita contemplativa que é a vita activa, o que acontece é que o “animal laborans” (como Arendt chama o moderno): “está arruinando todas as capacidades humanas, sobretudo a ação” (Han, 2023, pg. 149).

Lembra que a capacidade de ação brota do pensamento “que não é irrelevante para o futuro humano, pois se considerássemos as diferentes atividades da Vita activa em relação à questão sobre qual delas seria a mais ativa e em qual delas a experiência do ser ativo se expressaria de maneira mais pura, então o resultado seria que o pensamento todas as atividades no que diz respeito ao puro ser ativo” (Han, 2023, pgs. 149-150).

Assim não é de nosso exterior que brota nossas más ações, mas antes estão no nosso interior.

Han, B.C. Vita contemplativa. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Ed. Vozes, 2023

 

A essência e a virada linguística

28 ago

O dualismo presente hoje nas relações humanas e sociais, concebe a essência apenas como analogia ao Ser, e isto ficou perdido na doutrina tomista, tornando-se uma onto-teologia até o século XX, isto é, uma visão teológica que só tem relação dual com o ser social, só com a variada linguística e a fenomenologia e com o reencontro do Outro, o não-Ser é retomado não como contradição, mas como essência do Ser.

A longa discussão do período medieval entre realistas e nominalistas, tinha como base um termo hoje pouco conhecido que era a quididade, que significa que coisa a coisa é, desde a hylé grega até os modelos modernos da metafísica de Heidegger, onde a coisa que pode ser material ou não, que já era pensado na linha de Husserl, seu antecessor e professor, que afirma que só existe consciência de algo, ou da coisa.

Existiu um filósofo na idade média, Duns Scotto (1266-1308) que não fazia distinção entre a coisa que existe (si est) e o que ela é (quid est), e teologicamente era complicado pois a tese de Tomás de Aquino (1225-1274) era pela analogia, ou seja, o significado de semelhança entre coisas ou fatos (dicionário Houaiss, 2009, p. 117),  e os religiosos sempre apressados cuidado porque no século XX Duns Scotto foi aceito dentro da doutrina cristã católica, tornando—se beato (João Paulo II o declarou).

Embora chamado de realista moderado, já era de certa forma, um linguista e um precursor da viragem linguística, também William de Ockham, seu discípulos trabalhou a questão da linguagem, com o famoso tema chamado de Navalha de Ockham, mais que a simplificação o uso da linguagem como forma de superação do dualismo nominalismo/realismo.

A sua teoria do conhecimento de Scotto, trás distinções conhecidas distinctio realis (distinção real) e existe entre dois seres da natureza, e a distinctio rationalis (distinção de razão) que se dá entre dois seres, mas na mente do sujeito que conhece, mas rompe o dualismo ao criar uma terceira possibilidade a distinctio formalis (distinção formal) que se dá no ente percebido e não é nem real e nem na mente.

Assim além de seu discípulo William de Ockham, famoso pelo princípio a simplificação chamado Navalha de Ockham, mas de certa forma Descartes, Leibniz, Hobbes e Kant tiveram sua influência.

Em tempos de pandemia foi muito mais importante a fraternidade de socorrer vítimas, que o debate ainda incerto da ciência e das “crenças” que este ou aquele procedimento é certo, em ambientes hostis quem venceu foi a morte, assim dogmáticos e autoritários só atrapalharam, porém isto também se perdeu.

Assim é fundamental para retomada da consciência do Ser que tenhamos presente o Outro, sem ele a sua essência e como ele é para cada homem fica preterida.

O que somos interior e exteriormente tem a ver com esta essência perdida.

 

A guerra e a ilusão do poder

23 ago

Seja qual a forma que definimos com poder, e isto não exclui o empoderamento dos fracos, é sempre uma forma de dominação de um ser sobre o outro, haveria então alguma forma de equilíbrio, ou no dizer da filosofia, alguma forma de simetria ou horizontalidade ? 

A resposta de Byung-Chul Han no livro No enxame parece direta e simples: o respeito, toda as outras formas supõem alguma hierarquia ou assimetria de poder.

É triste observar que muitas filosofias e espiritualidades contemporâneas também apontem para formas de poder: seja mais, seja o primeiro, como conquistar coisas a frente dos outros e milhares de formas “mágicas” para iludir e enganar gente inocente que embarca nestas falsas promessas.

Somos seres finitos e limitados, o equilíbrio e a vida social dependem de todos, e os ódios e as guerras são a manifestação mais cruel de formas de desequilíbrios e de assimetrias.

O igualitarismo é também uma ilusão, somos diferentes e com diferentes aptidões e isto não nos prejudica, a complementaridade humana nos ajuda a realizar diferentes tarefas e em diferentes contextos, alguns com mais talento e outros com mais dificuldades, porém não é preciso descartar ninguém, a vida social é composta pelo conjunto de ações individuais.

Porém o conjunto de valores e estímulos que temos interiormente dependem de uma ascese humana e espiritual, não um altruísmo idealista, mas um bom sendo de respeito e dignidade da qual todos somos portadores.

A sociedade moderna, desde o iluminismo e o idealismo resolveu que estes fatores “subjetivos” (na verdade é a interioridade humana, real e imaginária) deveriam ser descartados, e o resultado é uma sociedade violenta, sem equilíbrio e que depende da força bruta para equilibrar-se, nisto o Estado e a força policial acabam tendo um papel preponderante.

É rato optar-se pela não violência, pelo respeito ao diferente e aos valores morais, tudo isto parece duro e parece cerceador da liberdade, mas é a garantia de equilíbrio e serenidade.

Na bíblia, os discípulos diziam ao mestre Jesus: “suas palavras são duras” (João 6,60) e Ele respondia: “isto vos escandaliza”, “o Espírito é que dá vida, a carne não adianta nada” e alguns decidiram não caminhar mais com Ele, o que pomos na mente é que encaminha nossa vida.

 

Clareira e estar-no-mundo

22 ago

Uma leitura superficial da ontologia é aquela que imagina o ser como pura contemplação ou o que é pior como condição humana intransponível, a leitura da Condição Humana de Hannah Arendt diz outra coisa: diz respeito às condições que o homem impõe a si mesmo para sobreviver, aquilo que pode suprir a existência do homem e que não está ligado só a sua materialidade.

Seu tutor e do qual sofreu grande influência, Martin Heidegger afirma que o ser-no-mundo é um ser em determinada situação temporal (por isto Ser e Tempo), mas que deve sim sempre estar aberto a tornar-se algo novo, dando a vida uma característica existencial, mas como segundo traço, não como essência como na ontologia materialista ou nihilista.

Ao sistematizar a condição humana em três aspectos: labor, trabalho e ação, Arendt separa cada um de uma forma particular: labor é ligado ao processo biológico da vida humana, trabalho é a atividade de transformar as coisas naturais em artificiais, por exemplo, retiramos a madeira da árvore para construir camas, armários, mesas, etc. e finalmente ação sintetiza nossas atividades sociais e elas refletem em ultima instância como concebemos esta vida.

Assim Hannah Arendt vai dividir a vida humana em Vita Contemplativa e Vida Activa, tema também explorado e sintetizado do ponto de vista das ideias filosóficas por Byung-Chul Han.

Tanto labor, trabalho e ação estão fundidos naquilo que se torna nossa Vida Activa, tratamos no post anterior dos critérios de eficiência e produtividade que esta vida atingiu na Modernidade e seu questionamento, porém a vida contemplativa é complementar a esta, só no raciocínio da antiguidade clássica e que a modernidade explorou, é que relevamos a vida contemplativa como algo desnecessário ou até mesmo fantasioso.

No raciocínio de Sócrates se o homem é apenas para comer, dormir, fazer sexo então ele não é um homem, mas um animal, de onde se tira o raciocínio raso de Aristóteles: o homem é um animal político ou social, não é isto que caracteriza o Zoé de Aristóteles, é o fato de ser só animal.

A clareira de Heidegger portanto não é a possibilidade do homem apenas encontrar o seu Ser, aquilo que é no mundo do ponto de vista existencial, é também encontrar a clareira e nela o ser novo, que vive na luz e não na escuridão, é a caverna de Platão agora sobre o olhar de uma nuvem escura que abala a humanidade na modernidade.

Assim a glória, a luz e a verdade só resplandecem dentro da contemplação, não apenas a dos grandes místicos e sábios, mas daqueles que humildemente se abrem para o novo, para a luz.