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Diferença ontológica e círculo hermenêutico
Antes do conceito ser explicado por Hans George Gadamer, o diálogo no círculo hermenêutico de Heidegger parecia construído sobre bases idealistas, embora não fosse exatamente isto, pois o conhecimento na hermenêutica não se dá pela re-velação do objeto ao sujeito, como foi visto por Kant, nem é mera projeção do objeto sobre o objeto, é na verdade uma “aparição”.
Sujeito e objeto tem horizontes próprio, a diferença ontológica os explica, embora ambos sejam dotados de historicidade, a realidade ôntica conforme explica em posts anterior tem uma verdade lógica, nela há uma crítica e superação da fenomenologia subjetivista (objetivista) de transcendental de Husserl, assim ali já foi superado o idealismo de base dogmática.
Assim a ontologia fundamental de Heidegger ganhou destaque na questão do sentido do ser é colocada como uma questão privilegiada, assim o ser dos entes não “é” em si mesmo um outro ente (Heidegger, 2002, p. 32), assim o Dasein (ser-aí, pré-sença) é o ente privilegiado que compreende o ser e tem acesso aos entes, é parte e condição essencial do ser humano.
Dito por Heidegger: “esse ente que cada um de nós somos e que, entre outras, possui em seu ser a possibilidade de questionar, nós o designamos com o termo pre-senca.” (Heidegger, 2002, p. 33), mas não é subjetivo no sentido de ente (enti-dade), esta presença (ser-aí, dasein): “é um ente que, na compreensão de seu ser, com ele se relaciona e comporta.” (HEIDEGGER, 2002, p.90).
O círculo hermenêutico é explicitado e melhor desenvolvido por Hans-Georg Gadamer na obra Verdade e Método II (1959) que fala de manter um olha mais profundo para as coisas elas mesmas (fundamento da fenomenologia moderna), até o momento de superar as errâncias que atingem o processo de interpretação, quem quiser compreender um texto deve seguir este processo do círculo hermenêutico.
O intérprete tem de antemão um sentido do todo, tão logo se mostre um primeiro sentido no texto, o primeiro sentido somente se mostra porque lemos o texto já sempre com certas expectativas, na perspectiva de um certo sentido. A compreensão do que está no texto consiste na elaboração desse projeto prévio, o qual sofre uma constante revisão à medida que aprofunda e amplia o sentido do texto (GADAMER, 2002, p. 75).
A abertura do ser-aí, ou seja, o ser deste ser-aí é a preocupação (cura, sorge), é uma luz que dá claridade da pre-sença, isto é, aquilo que torna “aberto” e também “claro” para si mesmo.
É a cura que funda toda abertura do pré e da temporalidade que o ilumina originariamente, Heidegger afirma que somente partindo do enraizamento da pré-sença na temporalidade que se consegue penetrar na possibilidade existencial do fenômeno, ser-no-mundo, que, no começo da analítica da pré-sença, fez-se conhecer como constituição fundamental (HEIDEGGER, 2002, p. 150).
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II: Complementos e Índice. Tradução Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2002.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo: Parte I, Tradução Marcia Sá Cavalcante Schuback. 12ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
O não-pensamento na atualidade
O texto de Heidegger sobre a Serenidade, feito em 1949 em cerimônia de comemoração do centenário de morte de Conradin Kreutzer, em sua cidade natal Meßkirch,, que por ser também a cidade Natal de Martin Heidegger, este foi chamado a falar no evento, livro é parte desta seu discurso.
O texto da serenidade revela o quanto nós somos induzimos a um pensamento calcula que corre de oportunidade em oportunidade, é fundamental para se entender que isto que é atribuído ao mundo digital, já ocorria muito antes deste, e não está restrito ao universo digital: “este pensamento continua a ser um cálculo, mesmo que não opere com números, nem recorra á máquina de calcular, nem a um dispositivos para grandes cálculos” (pg. 13), mesmo muito anterior ao universo digital, fala dele e diz que não é dele que está falando.
A dinâmica, que muitos atribuem ao universo digital já era a muito presente no homem moderno: “o pensamento que calcula (rechnend Denken) nunca para, nunca chega a meditar. O pensamento que calcula não é um pensamento que medita (ein besinnliches Denken), não é um pensamento que reflecte (nachdenkt), não é o sentido que reina em tudo o que existe” (idem, pg. 13), isto é, do final da década de 40 e anterior aos computadores modernos.
Convém traduzir as palavras alemãs: ein besinnliches Denken (um pensamento contemplativo) e nachdenkt (pensar sobre) e das rechnend Denken (pensamento calculista).
Assim para o filósofo existem duas formas de pensamento: o que calcula e o que medita, e pode-se pensar que o segundo não se apercebe da realidade, “não contribui em nada para levar a cabo a práxis” (pg. 14), pode levar a pura reflexão, a meditação persistente ser “demasiada “elevada” para o entendimento comum” (idem).
O autor diz que a única coisa correta é que a verdade de um pensamento que medita surge tão pouco espontaneamente quanto o pensamento que calcula, ambos requerem esforços.
O fato que o homem contemporâneo está vinculado a uma forma de pensar é porque é esta a forma atual em que o pensamento foi elaborado e treinado, ligado a logos racional e ideal.
Porém pondera que cada um pode seguir os caminhos da reflexão dentro de seus limites e a sua maneira: “Não precisamos, portanto, de modo algum, de nos elevarmos às “regiões superiores” quando refletimos. Basta demorarmo-nos (verweilen) junto do que está perto e meditarmos sobre o que está mais próximo: aquilo que diz respeito a cada um de nós, aqui e agora; aqui, neste pedaço de terra natal; agora, na presente hora universal” (pg. 14).
Claro Heidegger refletia sobre a comemoração em sua cidade Natal, mas isto vale para todos os eventos que vivemos em nossas vidas.
Heidegger, M. Serenidade. Trad. de Maria Madalena Andrade e Olga Santos. Lisboa: Instituto Piaget, s/d.
O sócio e o próximo
A relação concreta de amizade social só é efetiva em cada próximo, a ideia de generalização de atitudes sociais pode ser inserida em uma cultura, mas ela somente será efetiva se na relação com cada um com quem relacionamos ela se torne efetiva, senão é discurso e ideologia.
O texto do Paul Ricoeur “O sócio e o próximo”, que faz parte do livro ¨História e Verdade” não só modifica o conceito de verdade histórica como desvela que só há relação social concreta na medida em que inserimos em nossos diversos círculos sociais e a cada relação pessoal concreta.
O contínuo egoísmo, preconceito abre a alma em abismos de separação com o Outro, faz dela um contínuo de separação, exclusão levando a incredulidade no amor e na solidariedade social.
Mudar de atitude, transformar o egoísmo em gestos de bondade e viver em cada relação específica um amor até mesmo sobre humano que dá dignidade e respeito a cada ser que passa ao nosso lado, não é um altruísmo ou uma forma de ignorar os conflitos sociais, é também elevar a alma a um estágio de felicidade com os outros, e espalhar a esperança.
Enquanto a relação de sócio é apenas de um interesse pessoal, a de próximo ultrapassa esses limites e dá uma elevação no nível de confiança, inclusão e aproximação diferente do sócio:
Ao discorrer sobre a diferença entre estas relações, discorre sobre a caridade: “A caridade não precisa estar onde aparece; também está escondida na humilde e abstrata agência dos correios, a previdência social; muitas vezes é a parte oculta do social ”, Paul Ricoeur em Le socius et le Prochain (1954), e está traduzido no livro História e Verdade de 1968.
O texto nos lembra que assim como as instituições podem ter apenas relações de societárias, pode-se passar por elas também relações interpessoais, de afeto e de solidariedade e que tornam elas menos frias e menos burocráticas, onde se vê não um cliente ou um serviço a mais, mas um próximo pelo qual pode-se interessar.
Não por acaso é um capítulo de História e Verdade, porque a verdade só é estabelecida entre amigos verdadeiros e que são próximos, e se são sócios serão apenas para estarem mais próximos, enquanto manter a aparência social, mesmo com espírito de empatia não é ainda a verdadeira relação humana se a pessoal não se realiza de modo concreto.
Assim a amizade social, deve necessariamente passar pelo amor verdadeiro a cada pessoa que passa ao nosso lado.
Ricoeur, P. História e Verdade, trad. F. A. Ribeiro. Companhia Editora Forense: Rio de Janeiro, 1968.
O próximo e a amizade social
O texto de Paul Ricoeur “Le socius et le prochain” (o sócio e o próximo) já foi explorado neste blog, salientando a diferença entre uma relação temporal limitada de sócio e uma relação de filia e amizade que pode se estender por toda vida: o próximo.
Queremos agora reler o comentário feito por Henri Bergson sobre este texto, no qual ele articula que o “eu” parte de um “nós” que construímos como um “eu”, mas que não é addeste, então cabe a pergunta que “nós” é esse?
Designa essas outras pessoas que encontramos todos os dias nos nossos ambientes familiares e profissionais, ou esta presença difusa dos outros, de “todos” que, por exemplo, alegamos quando tentamos fazer alguém compreender?
Significa que agimos de modo compatível ou incompatível com a vida em sociedade: “o que aconteceria se todos gostassem de você?” na verdade, existe, para dizer o mínimo, duas relações muito distintas com os outros: outros como estrutura e outros como práxis.
Pelo primeiro termo, entende-se esta base como eficiência das leis, das instituições, e mais ainda, a consciência que temos da nossa incessante visibilidade aos olhos da sociedade: o que se faz é feito com base na possível existência de outros, mesmo quando ninguém está fisicamente “lá”, pela noção de outro como práxis, devemos entender as ações através das quais outro de alguém, no entanto, esta distinção corresponde exatamente àquela que Paul Ricoeur escreveu em seu livro “História e Verdade”, escrito para diferenciar entre “sócio e o próximo”, porque não só no mundo dos negócios, mas também na política e nos grupos sociais o que é verdade pode estar relacionado a alguma narrativa da “sociedade” pertencente.
Podemos falar da presença o Outro como estrutura no sentido de que o socius designa este lugar, esta ponderação simultaneamente implícita e legal de um outro invisível, anônimo, quase abstrato, mas ao mesmo tempo omnipresente, um pouco como condicional, que nunca deixaria de se manifestar para nós no Presente, de se tornar presente, mas nunca fisicamente (e sim mentalmente, constitucionalmente).
Por “próximo”, Paul Ricoeur designa a presença física imediata, pontual, de outra pessoa que conheço, temos boas experiências de estar próximos nas grandes cidades, pois ali vivenciamos muitas situações promíscuas (metrô, filas, etc.), mas, ao mesmo tempo, essa multidão com a qual sou obrigado a compor não é composta de “próximos”, já que não os conhecemos.
Se ativamos a práxis com o próximo sempre passando pela estrutura do “socius”, a relação supõe uma margem de escolha, de eleição, de desejo de aproximação ou rejeição, como se o nosso salário bruto e o nosso salário líquido, aquilo que é retirado do nosso salário pago, através de uma supervisão de uma autoridade administrativa, a “organização”, o Estado, a segurança social, etc.
Assim o sócio está vinculado a uma “práxis” social, enquanto o próximo depende só de uma escolha de relação humana independente da relação estrutural a qual está sujeito.
RICOEUR, Paul “O socius e o próximo”, in História e Verdade, trand. F. A. Ribeiro. Companhia Editora Forense: Rio de Janeiro.
Clareira e a iluminação da consciência
Existem diferentes experiências de consciência diferentes do racional, claro elas não estão livres da autossugestão e de certa forma todas são, porque algum nível de permissão damos a uma experiência que extrapola nossos sentidos, a musical é a cultural mais aceita e comum, a espiritual mais rara e sujeita a falácias e manipulações, mas todas tem algum sentido.
A clareira de que Heidegger fala partindo do mito da caverna de Platão não está presa ao nível racional, já que sua ontologia é a de volta ao Ser, e a experiência mais profunda do ser nunca deixará de ter um toque espiritual e cultural, porém esta clareira está ligada fortemente não há uma ideia coletiva, mas ao Ser interior e profundo de cada homem.
Seria possível uma iluminação da consciência de modo coletivo, aquilo que em termos cristãos se chama de “pentecostes”, avivamento, repouso no espírito e outros nomes, sim e não.
Sim é se de fato é uma tomada de consciência que leva a uma elevação humana e espiritual, não se é apenas autossugestão por técnica emocional e sugestão coletiva, é preciso que não haja uma falsificação da verdadeira consciência e não se confunda com fanatismo.
A crescente tensão mundial política, cultural e bélica pode levar a um estado de fanatismo, ódio e stress social jamais imaginado, porém é possível que as mentes fiquem alertas e uma nova visão cultural e espiritual evolua para um caminho diferente, uma espécie de “socorro”.
Walt Whitman foi um poeta, ensaísta e jornalista do século XIX, mal compreendido é hoje lido e reinterpretado por muitos autores, embora ainda pouco compreendido, diz em suas poesias:
“Como num desmaio, um instante, Outro sol inefável me deslumbra,
E todos os orbes conheci, e orbes mais brilhantes desconhecidos,
Um instante da futura terra, terra do céu.”
Tanto pode ser lido no plano social, uma mudança cultural, no plano espiritual (novos céus e nova terra diz a leitura bíblica) como até no plano político.
Os apóstolos de Jesus tiveram este momento propiciado pelo próprio Mestre, sobem ao monte Tabor e lá o veem iluminado com outras duas figuras (diz a leitura: Elias e Moisés, não seria a Trindade) e o êxtase de consciência é tão elevado que os apóstolos Pedro, Tiago e João querem ficar ali.
Foi o iluminismo uma iluminação
Para analisar o iluminismo a luz da filosofia ocidental é preciso ler, claro com um espírito aberto a metafísica ontológica, a partir de Cassirer, sua crítica e análise a partir do apogeu do idealismo no século XVIII, “que se auto intitulou orgulhosamente de ´Século da filosofia’” (CASSIRER, 1992).
Esta filosofia considerava-se que “abriu caminho até aquela ordem mais profunda donde jorra, com o pensamento puro, toda a atividade intelectual do homem, e onde essa atividade deve encontrar seu alicerce, segundo a convicção profunda do iluminismo” (CASSIRER, 1992).
O autor observa que Hegel considerado “o primeiro a enveredar por esse caminho” como filósofo e historiador da filosofia, fez uma esquecida (Cassirer a chama de curiosa) retificação, que diverge do veredicto que “a metafísica do mesmo Hegel proferiu a respeito do Iluminismo” (Cassirer, 1992), reconhecendo seu papel e fazendo uma conciliação com esta (na foto o frontispício da L’Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences).
Tendo como principal influência Kant, Cassirer também sofreu influência de Herman Cohen (grande expoente do neokantismo no início do século 20) e Paul Nartop (um dos fundadores da escola de Marburg) e assim permaneceu preso no idealismo do neokantismo, porém não deixou de haver influencias nos pensamentos de Heidegger, Hans Georg Gadamer e Hartmann.
A questão científica no século XVIII encontrava-se em encontrar “uma fronteira determinada entre o espírito matemático e o espírito filosófico” (Cassirer, 1992, p. 34), começava assim uma dúvida que iria até o princípio do século XX quando David Hilbert numa Conferencia de Matemática anuncia 23 problemas que a matemática deveria resolver para considerar-se completa, entre eles o segundo problema era da consistência dos axiomas da aritmética, ou seja, que a aritmética podia resolver qualquer problema que fosse enumerável.
Foi Kurt Gödel quem demonstrou que este problema da prova finitista da consistência da aritmética é comprovadamente impossível, em seu segundo teorema da Incompletude, o que ficou conhecido como Paradoxo de Gödel, o sistema ou é completo ou finito, nunca os dois.
Para ajudar este desmoronamento do racionalismo cientificista, a física quântica também propôs através de Werner Heisenberg o princípio da incerteza, que anunciava que não se podia afirmar a posição de um átomo ou uma partícula atômica em determinada situação.
O idealismo é uma corrente forte ainda, mesmo nos meios científicos, mas suas bases tanto lógicas, como física e matemáticas já foram desmontadas pela própria ciência, filósofos da Ciência como Karl Popper, Tomas Kuhn e Imre Lakatos já anunciaram novos postulados.
O consenso é que o pensamento humano necessita de uma visão mais ampla, uma cosmovisão que não se limite as chamadas ciências exatas, recupere a importância da linguagem, do estudo do Ser e de uma visão transdisciplinar que libere os limites estreitos de cada área do saber, sem deixar de admitir os mistérios, as crenças e as culturas originárias.
CASSIRER, E. A filosofia do iluminismo. Trad. Álvaro Cabral, Campinas: Editora Unicamp, 1992.
Jonas e a resistência do espírito
Ao nos aproximarmos de grandes tragédias, a alegoria Bíblica de Jonas é interessante de ser lembrada, até mesmo o filósofo Peter Sloterdijk a destaca, ainda que não seja cristão, é bom lembra que Jonas também está no Alcorão e é personagem importante para o judaísmo.
A curiosa passagem Bíblia em que Jonas deveria evangelizar a cidade de Nínive para ela não perecer, uma das maiores de seu tempo, acredita-se que por medo dos Assírios, conhecidos por sua crueldade, Jonas tentou fugir num navio para Társis, que sofrendo uma forte tempestade, descobrem que o motivo é Jonas que é lançado ao mar.
No mar, Jonas teria passado três dias e 3 notes no ventre de uma baleia e depois seria lançado na cidade de Nínive para que retornasse a sua missão, ali ele pregou e Nínive se converteu.
Sloterdijk não usa os termos dualismo ou polarização, usa mesmo antes da atual polarização mundial que provoca guerras sangrentas e grandes polêmicas, o filósofo usa os termos díade, uma relação entre dois ou mais diferentes que não há centro e sim um policentrismo.
Isto é básico para entender quem é Jonas para o filósofo alemão, ele o vê como um profeta e adorador do Deus dos judeus, que tem como dever estabelecer a relação entre no divino e o humano, e que para os humanos habitarem o divino precisam conhecer e rejeitar as perdições do humano no mundo.
A pergunta central de Sloterdijk em Esferas I – as bolhas, é onde estamos quando estamos no mundo? E na língua alemã há uma palavra específica para estar no mundo e estar COM o mundo, a palavra é “vorhandensein”, que quer dizer “ser-no-mundo”, que embora signifique outra coisa para Heideggeer que seria apenas “dasein”, ela adquire um significado maior.
Para Sloterdijk os únicos corpos que estão fora desta díade ou deste policentrismo “os únicos corpos que são localizados sem dualidade no mundo são os dos mortos” (Esferas I), ou seja, toda vez que você se encontra em um lugar você está nele e com ele, você o vê e o reconhece.
Onde Jonas estava quando estava no mundo? Dentro da baleia. A baleia é parte da consciência de Jonas que lhe provoca a pensar no exterior a partir de um interior. Heidegger já havia pensado neste puro interior de que todos somos vítimas, um espaço radical e intrínseco, nossa habitação única e primeira por onde permeiam todas as nossas impressões, pensamentos e afetos.
A relação com o exterior é então de “tensão”, não é só filtro do externo, mas também é lente para entender tudo, até mesmo o próprio interior, assim estar na “baleia” foi preparação para Jonas enfrentar, vejam que antes há uma tempestade no navio que está “no mundo” e ele é jogado para fora.
O nosso caminho interior deve “ajudar”, iluminar e nos conscientizar do que somos “no mundo” e sermos como mundo outra coisa quando temos esta luz.
SLOTERDIJK, P. Esferas I : bolhas. Tradução José Oscar de Almeida Marques. Sáo Paulo : Estação Liberdade, 2016.
A clareira e a verdade
O conceito de verdade na filosofia grega não surge da lógica, da matemática ou da física, a alegoria da Caverna em Platão, onde aqueles que estão na caverna veem apenas as sombras e não a verdade como ela é, na interpretação de Heidegger, ele vai demonstrar que o esquecimento do verdadeiro Ser das coisas produzidas pelo pensamento moderno (Kant e Descartes) nada mais é do que o resultado necessário de uma forma de pensar metafísica.
Esta metafísica sofreu uma mudança na determinação da essência do conceito de verdade: nesta passagem ocorreu uma transformação da noção de verdade como desvelamento para a noção de verdade como correção ou correspondência do pensamento como a coisa.
Esta interpretação começa pela correção da palavra grega eidos e ideia (Ideia) por “aspecto”, este aspecto de um ente não é a sua mera aparência tal como percebida de forma imediata pelos sentidos, é aquilo como o ente se mostra mediante aquilo que ele se apresenta.
É nesse automostrar-se no seu aspecto que o ente aparece e pode ser captado pelo intelecto (Heidegger, 2007, p. 3), assim como o olho vê os objetos sensíveis em sua aparência externas graças à luz do sol, o homem “vê” o ser à luz das ideias, assim as Ideias iluminam o ser dos entes, tornam visíveis a sua essência (na terminologia de Heidegger: o entitativo do ente), e permitem que a alma a contemple.
Como afirma Heidegger (2007, p. 6): “Os aspectos dos quais as coisas mesmas são, ou seja, as eidee (as ideias no sentido grego), constituem a essência em cuja luz todo ente particular, este ou aquele, se mostra em cujo mostrar-se o que aparece chega a ser recém desoculto e acessível”.
Heidegger afirma numa passagem do Ser e o Tempo, que a concepção tradicional de verdade (de Kant e Descartes) baseia-se na premissa que a essência da verdade reside na concordância do juízo com o objeto (adequatio intelectos et rei) uma correspondência (ou omoiosis) sem explicar o que é a noção de correspondência.
A proposição ontológica de mostrar o que e descobrir o que ele é (Heidegger, 2005, p. 288) é assim algo que “descobre o ente em si mesmo, propõe, mostra permite ver (apofánsis) o ente em seu estado de descoberto”, desvela o ser em si mesmo, porém o Ser foi esquecido.
Como afirma Heidegger: “O ser verdadeiro do lógos como apofasis é o aletheien”. A alethéia, o desvelamento, portanto, é “o fundamento do fenômeno original da verdade” (Heidegger, 2005, p. 288).
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2005. vol. 1.
HEIDEGGER, M. La doctrina de Platón acerca de la verdad. Eikasia, Revista de Filosofía, v. 12, Extraordinário I, 2007
Ética e resistência
O formalismo idealista hegeliano estabelece uma eticidade, uma vez que vê na finitude do homem uma fatalidade, no dizer de muitos pensadores sua mundaneidade, entretanto as categorias usadas na fenomenologia, onde se volta a coisa em si nela há a essência do Ser.
Foi Emmanuel Levinas que abriu esta essência para a relação com o Outro, e a chama de uma resistência ética, declara-a como uma epifania, no sentido filosófico de aparição, que é uma abertura a exterioridade ao ser infinito, onde esta resistência pode se manifestar.
Assim diferente da ideia da abertura do Ser ou da transcendência idealista, relação do sujeito com o objeto, sua exterioridade é aquela que o Ser interior manifesta-se diante do infinito, sua abertura ao Outro requer um exame de consciência: amamos ou odiamos, perdoamos ou nos ressentimos diante do diferente, favoreço a ética e ao comportamento moral, ou a relativizo.
O professor brasileiro Brüseke esclarece: “É curioso a freqüência com a qual está sendo levantada a preocupação ou até o receio de que a mística enfraqueça a moral social” (Brüseke, 2000).
Assim a transcendência de Levinas é uma verdadeira abertura do Ser ao mundo exterior e a vida de maneira ampla e totalitária (claro não no sentido autoritário da palavra), ela pode dar ao Ser uma verdadeira ascese, um reencontro consigo mesmo diante de uma metanóia, uma mudança completa de mentalidade.
Aberto a vida, não significa aberto aos prazeres e circunstâncias momentâneas, mas encontrar um caminho para nossa “ascensão”, um crescimento cotidiano ainda que com obstáculos e percalços, a falsidade de caminhos “fáceis” é que eles não fazem o “exercício” da ascese verdadeira, apenas o contornam com paliativos (ler a Sociedade Paliativa de Byung Chul-Han).
A resistência, categoria também usada por Edgar Morin para o mundo contemporâneo, é mais que um opor-se ao “mal”, ou uma resiliência interior, é uma resistência da esperança, de crer que um caminho alternativo é possível, que a guerra não é uma saída, e que teremos futuro.
A filosofia e a ciência não são opostas ao crescimento espiritual da humanidade, em certa medida até podem ser complementos saudáveis para uma fé equilibrada e uma ciência que seja de fato humanizada, não se trata de dominar a natureza e sim de cooperar com ela.
Deve partir de atitudes e decisões pessoais, colocadas em reflexão e vivida socialmente.
Brüseke, F. A ética da resistência. Cadernos de pesquisa interdisciplinar em Ciências Humanas. Florianópolis, SC, v. 1, n. 8, 2000.
Fragilidade humana diante do Infinito
Uma das obras importantes para entender a viragem linguística do ponto de vista da ontologia é a obra de Emmanuel Levinas, destacando aqui uma obra que toda a questão da impossibilidade de objetivação do Outro e da limitação humana diante de debilidades como os vícios, as dificuldades éticas e a guerra.
Levinas tira parte de sua experiência do que viveu na segunda guerra mundial, onde foi mantido preso pelo regime nazista, além de ter seus pais e irmãos executados, viu as atrocidades da então dita “razão esclarecida” que se mostrou violenta e totalitária, estas experiências estão em tensão em seu pensamento, e são importantes num contexto de ameaça de uma nova guerra mundial.
A ontologia tem seu papel dentro da metafísica segundo o autor, mas não seu primado como o de filosofia primeira, a transcendência do âmbito do “si” e do “ser”, uma vez que este movimento desvelou-se (as categorias de re-velar é um novo velamento) retornando o movimento ao si mesmo, ao idêntico, ao ser e e sua preservação, não ao reconhecimento do Outro.
Em contraposição a Heidegger, para quem a relação do ser com outrem é subordinada a uma relação com o ser em geral e nada interfere no surgimento do eu, Levinas entende que o eu não se deve ao Ser, mas ao Outro, e assim esta relação é fundamental como em Paul Ricoeur.
O autor propõe em Totalidade e Infinito uma nova escolha para a compreensão do ser em que a exterioridade não seja sacrificada, assim a relação com o Outro e com o “mundo” exterior é reflexo e caminho para a interioridade, nela encontra uma relação com o todo e infinito.
Esta relação do eu com o rosto do Outro que apresenta uma resistência ética, para o autor, é pela sua epifania, pela sua “aparição” (categoria fundamental na fenomenologia), que a exterioridade do ser infinito pode se manifestar como resistência.
O seu pensamento é mais complexo, mas podemos entender que a debilidade e limitação do eu, se mantida em tensão com a exterioridade e com o Outro, desvela o infinito e nossa relação com ele, que não pode ser outra que o reconhecimento de sua “transcendência”.
Levinas, E. Totalidade e infinito. Lisboa : 70, 1988.