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Por uma verdadeira ascese
Peter Sloterdijk mesmo sendo um agnóstico aponta um defeito “espiritual” da sociedade atual, vive uma ascese desespiritulizada, isto, é uma “sociedade de exercícios” que não levam a uma verdadeira “ascensão” interior, vivem agitados, procurando a “eficiência” caem na “Sociedade do cansaço”.
A falta de tempo para a meditação, para o exercício da mente e da alma, está levando ao “brainrot”, palavra do momento segundo a Universidade de Oxford, que a incluiu no dicionário, significa cérebro podre, não se trata apenas do consumo de má informação, o desconhecimento e o pouco exercício de uma “vita contemplativa” como pede Byung Chul Han cria um espaço na mente para este tipo de pensamento crescer.
Criamos uma cultura que não é nem contracultura num sentido de evolução civilizatória, é apenas algo podre, bombardeamos nosso cérebro de fragmentos de pensamentos, de fragmentos espirituais sem que eles se completem e formem dentro de nós uma verdadeira ascese espiritual.
É o ativismo vazio, para preenche-lo precisamos de mais narcóticos e alimentos que preenchem o vazio corporal enquanto a mente permanece vazia, este mesmo vazio que poderia servir para criar uma “vita contemplativa” que desse sustento a uma ascese e a um equilíbrio do círculo virtuoso.
Chul Han lembra também da pintura, citando a obra do francês Paul Cézanne: “Pintar não significa nada mais do que ´soltar a amizade de todas essas coisas ao ar livre’ ” (Han, 2023, p. 49), significa “encontrar a concordância das coisas, ou seja, da verdade” (idem) (na foto a obra Monte Sainte-Victoire de Cézanne), a perda da cultura (ou o que restou dela segundo Antoine Daniels) é isto incapacidade de ver o belo e a verdade.
É claro que uma verdadeira ascese, no sentido espiritual, não pode deixar de se encontrar com o divino, e quantos “exercícios” inúteis que depois de um “banho de espiritualidade” caem no vazio e sem encontrar o ser, como afirma Han: “nas camadas profundas do ser, eles são suspensos” (Han, 2023, p. 49).
Lançar-se sobre o divino, para a espiritualidade cristã lançar-se em Jesus, em sua sabedoria e não apenas em discursos sobre ideologias, consumo, riqueza e todas superficialidades modernas, não é apenas a cultura midiática que faz isto, é a ausência de valores estruturais da virtude e da moral.
“A paisagem da inatividade”, escreve Byung Chul-Han sobre Cézanne, “rompe com a natureza tornada humana e restaura uma ordem não humanizada das coisas, na qual elas podem se encontrar” (Han, pag. 50).
Ainda citando Cézanne: “Ah! Nunca se pintou a paisagem. O ser humano não deve estar aí, mas sim ter encontrado inteiramente na paisagem” (pg. 51), deve-se “fazer silêncio” ao “eu barulhento”.
Quantas pessoas participam da “sociedade de exercício” apenas para rir e se emocionar, sem ter “entrado na paisagem”, sem o menor contato com o divino, precisam do barulho, da comida e da bebida para empanturrar-se do vazio que possuem na alma e não no estomago e nos nervos.
Somente um exercício de verdadeira ascese podem nos conduzir ao Amor, síntese das virtudes, mas sem esquece-las: nos introduz em equilíbrio, coragem, escuta e sincera relação social.
HAN, B. C. Vita Contemplativa: ou sobre a inatividade. Trad. De Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
As vozes no deserto
Em tempos de crises há um reduzido número de vozes que vê além das forças em embate, não são nem os apocalípticos nem os integrados (diria Umberto Eco), mas aqueles que entendem o panorama e as raízes das crises temporais e vem além do temporal, veem o civilizatório divino.
A figura do idiota de Dostoiévski é uma destas figuras que via na sociedade da época, um feudalismo decadente na Rússia, uma crise e imaginava uma sociedade com ética e moral, não apenas uma mudança estrutural, mas uma mudança no modo de ver a sociedade e o Outro.
Os integrados que vivem sobre o domínio de ideias já comprovadamente ultrapassados, quase todas oriundas do idealismo europeu, que imaginou uma paz eterna (Kant) sem entender a base dos conflitos que era uma visão de estado bélico e intercessor na vida cotidiana.
Também um quadro parecido é tratado por David Flusser ao analisar o quadro social da época de Jesus no primeiro século da era cristã, seu livro Jesus fala dos conflitos sociais, políticos e religiosos da época, como judeu traça um quadro visionário de Jesus na época.
Uma verdadeira profecia se realizava, e o profeta Isaias falava bem antes daquele tempo sobre um profeta que viria (o último e o maior, por isso verdadeiro) conforme Marcos (Mc 1,2-3): “Eis que envio meu mensageiro à tua frente, para preparar o teu caminho. Esta é a voz daquele que grita no deserto: ‘Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas estradas! ”.
João Batista era o “idiota” de seu tempo, poucos compreendiam claramente o que dizia da vinda do messias, alguns queriam interpretar politicamente como um guerreiro salvador e outros como um louco que vivia no deserto se alimentando de mel e gafanhotos.
A vida ascética de João Batista, era uma verdadeira ascese, os religiosos e apocalípticos de nosso tempo são incapazes de compreendê-lo e por isso são fariseus e falsos profetas, em meio a crise anunciam riquezas e abundâncias inatingíveis para o povo simples que por eles é explorado.
Salvadores da pátria são diferentes de salvadores que preparam um caminho divino para um futuro pós-guerra, pós-crise e pós-religiosidade belicista e de “sócios” (em referência a Paul Ricoeur citado em posts anteriores), é preciso uma visão de mundo que veja com clareza as virtudes cardeais e não separe delas a justiça e sabedoria.
O outro e o narcisismo
O brain rot tem uma face que não é facilmente detectável, é a do narcisismo, o mito grego que deu origem ao nome a esta patologia, é que Narciso se julgava tão belo que desprezou diversas pretendentes até apaixonar-se pela própria imagem e morre de fome e sede à beira de um rio que refletia a própria imagem (na foto, desenho encontrado em Pompéia).
Ao ficarmos presos as próprias convicções, aos próprios valores e costumes vamos elaborando narrativas que justificam nossa visão de mundo, nossa posição ou mesmo a desprezar outras que possam parecer até razoáveis, mas prefiro seguir minhas próprias orientações.
O Outro é assim uma negatividade para o narcisista, na filosofia não é apenas pessoas ou ente distinto em relação a si mesmo, pode ser também a diversidade de experiências, culturas, crenças e hábitos, enfim tudo o que sintetiza uma nova visão de mundo, diferente do Narciso.
Assim trends midiáticos que enfatizam determinado comportamento e forma de pensar são um perigoso instrumento de brain rot, criam narrativas e verdades que parecem verdadeiras, mas em geral abusam do marketing, do uso de sons e imagens que prendem o seguidor.
A base de tudo, na raiz está o idealismo e a ideia de “modelos” a serem seguidos, porém já em estágio mais avançado com uso de mídias, fixar ideias e conceitos dependem de certa habilidade de marketing e de uso de coisas confiáveis, as vezes até inteligentes, mas fragmentadas, por isto já abordamos um pouco atrás, a ideia da simplicidade e dificuldade de compreensão do complexo é que permitem esta metodologia.
O Outro resumindo em poucas palavras é tudo aquilo que não é espelho, tudo aquilo que está longe de ser o que temos como modelo quer seja para a minha visão de mundo, quer seja para a minha crença e o que é mais complicado, para diferentes posições políticas.
O fato de ser necessário uma nova metodologia, como o círculo hermenêutico que propõe a fusão de horizontes antes do “diálogo”, uma nova epistemologia que escape da bipolaridade do Ser é e o não Ser não é, criando um terceiro incluído, como aquele já apontado na física quântica moderna.
Assim não é um diálogo necessariamente convergente, mas que parte de um ponto em comum, há uma inicial fusão de horizontes inicial, isto é, parte-se de uma certa “convergência” inicial.
Considerar o Outro é essencial para fugir da bipolarização e dos sensos-comuns de explicações simplistas para questões que são complexas, também aqui pode-se fazer necessário uma certa simplicidade: o Outro embora não seja um espelho, tem algo em comum, no mínimo o fato que co-dividimos o mesmo momento histórico, a mesma época e o mesmo desejo de paz.
Amor: o sócio e o próximo
Um dos capítulos mais duros da queda civilizatória é a transformação do conceito de amor, há até patologias que vivem do cancelamento desta relação, porém a base é a transformação em interesse, importa mais os interesses do que qualquer tipo de empatia ou afetividade.
Paul Ricoeur foi o filósofo que abordou diretamente esta questão em seu livro “História e Verdade”, que diria é um complemento do livro de Hans-Georg Gadamer: Verdade e Método”.
O egoísmo, o fechamento em círculos viciosos, abrem separação de abismos com o Outro, não há outra palavra que defina melhor, exclusão, é ela que leva a incredulidade do amor ao próximo e abre caminho para as relações de interesses, em poucas palavras relação de dinheiro.
O que outro poderia parecer impensável, agora relações econômicas criam círculos concêntricos, estruturas de poder e até mesmo gangues urbanas relacionadas ao dinheiro, e são elas que deterioram a base social, destroem relações empáticas e criam relações de disputa e ódio entre grupos, na base do “brain rot” está o conjunto destas relações sociais.
Para explicar isto, Ricoeur discorre sobre a caridade: “A caridade não precisa estar onde aparece; também está escondida na humilde e abstrata agência dos correios, a previdência social; muitas vezes é a parte oculta do social ”, Paul Ricoeur em Le socius et le Prochain (1954), e está traduzido no livro História e Verdade de 1968.
Já no livro de Gadamer o que vamos encontrar é como fazer estas relações na leitura de um texto, ou no diálogo contínuo sobre determinado tema, é preciso uma “fusão de horizontes”, antes do diálogo, aquilo que primariamente os gregos chamavam de époque, ou seja, fazer um vazio para ouvir e dialogar com o Outro.
Este exercício é difícil, para não dizer quase impossível na sociedade polarizada e qualquer discurso sobre o amor não passa de mera retórica, na base está “segregar” o Outro.
Assim quem permanece na caridade, no diálogo e na compreensão, tem propriedade para falar do Amor.
Quatro livros para ler em 2025
Feliz 2025 para todos que me leem, e acompanham as minhas preocupações sociais, espirituais e intelectuais, ao meu ver é preciso ler e reler o Outro, o contraditório, o que ignoramos.
É bom fazer um propósito para o ano que se inicia, considero a leitura algo importante e agora mais do que nunca devido a um certo esfriamento cultural e espiritual deste hábito.
Todo ano me proponho a ler 4 livros, acabo lendo mais ou lendo algum dos propostos parcialmente, se considero o livro muito aquém do que esperava, mas isto é raro.
Em 2025 três livros me chamam a atenção o primeiro, ainda encontro poucas referências sobre ele, é o livro “Liberty” um romance sobre um casal apaixonado e uma intrusa, três mentes doentias, entretanto a autora Collen Hoover vem se destacando, também nas mídias sociais e uma série de TV.
O segundo livro é de dois ganhadores do Nobel em 2024, “Porque as nações fracassam” é escrito por Daron Acemoglu e James A. Robinson, que junto com Simon Johnson ganharam o Nobel de Economia em 2024, a sinopse do livro diz que eles defendem a tese original de que a probabilidade dos países desenvolverem boas instituições é quando contam com um sistema político e aberto, com disputa de cargas, eleitorado amplo e espaço para emergência de novos líderes, e isto parece explicar o cenário atual de decadência política e econômica.
O livro de David Flusser me chamou atenção desde que li a primeira sinopse, uma visão abrangente da Palestina do primeiro século quando Jesus viveu, as ideias religiosas que circulavam, as lutas políticas e antagonismos sociais do período, mostra um Jesus coerente com o Antigo Testamento (a Torah) e identificado com seu povo, o pouco que li surpreendeu.
O autor foi professor de cultura hebraica na Universidade de Israel e foi um judeu moderado e recebeu o prêmio Israel da Academia de Ciências e Humanidades de Israel, em 1980.
Li o primeiro volume da Obra Filosófica de Henrique Cláudio de Lima Vaz, que foi fruto da pesquisa relativa ao biênio 1988-1989 enviado ao CNPq quando era pesquisador-bolsista, seu projeto era: “A construção hegeliana: um paradigma da racionalidade sistêmica”, onde expõe com clareza o pensamento Hegeliano, o segundo volume é mais estruturado no cerne do pensamento Hegeliano.
Este volume conforme a sinopse vai da formação do pensamento de Hegel até a Fenomenologia do Espírito, e como Henrique Cláudio foi padre jesuíta (já é falecido) me interessa o quanto o pensamento contemporâneo religioso tem influencia do idealismo hegeliano.
Feliz 2025 a todos, façam um propósito de mudança, sejam resilientes (a felicidade não é fácil) e sejam solidários aos que precisam de você.
A crise do pensamento simplista e o complexo
A epistemologia da complexidade é um ramo da epistemologia que estuda os sistemas complexos e fenômenos emergentes associados, em alguns ambientes como na mecânica e na física construíram uma tendência a aprofundar o que até então eram apenas chamados de sistemas dinâmicos, e agora sistemas não lineares ou caóticos.
O processo de industrialização serviu de grande suporte para um desenvolvimento até então impensáveis das ciências naturais, depois a geração de tecnologias: o vapor e a combustão, depois a eletricidade, e tudo parecia mover-se numa engrenagem perfeita.
Tudo se caracterizou até um certo momento em um movimento que Edgar Morin chamou de disjuntor-e-redutor, tanto as ciências como nas artes a ideia de reduzir o que é complexo ao simples (por exemplo, buscar na menor parte da física até então, os átomos) uma realidade que aos poucos mostrou-se complexas (sub-partículas em dimensões cada vez mais microscópicas até chegar ao universo quântico).
As particularidades da física subatômica introduziram incertezas e mostrou os limites do reducionismo que estava levando a uma visão distorcida da realidade, mostrou suas incertezas e ingenuidades, a pretensão de captar uma realidade objetiva que poderia ser independente do observador, quanto o próprio observador faz parte do fenômeno.
Assim esta lógica redutora-reducionista da física ampliou-se para o universo social e pessoal, e mecanismos aparentemente simples poderiam resolver problemas que são complexos, e toda a problematização decorrente desta realidade não foi observada.
O pensamento complexo não se limita ao mundo acadêmico, ele transborda e está presente em diversos setores da sociedade, assim como o simplismo de raciocínios que não contemplam a complexidade e a diversidade da vida social.
Também no mundo espiritual (ou subjetivo como poderia pensar quando vemos os objetos foram da realidade do sujeito) este equívoco nos conduz a uma porta larga, onde os valores básicos do humanismo podem ser ignorados e a vida fragmentada.
Assim a porta por onde passam lógica simplistas e triviais conduzem a grandes e problemáticos enganos, enquanto a complexidade de um caminho socialmente justo e verdadeiro não se reduz às formas ideológicas simplistas e pouco humanas.
Passar pela porta estreita nunca será um caminho fácil, porém o único que pode conduzir a humanidade a um futuro sustentável e realmente humano, de paz, de fraternidade e de valores sociais de respeito a dignidade humana.
A ausência de equilíbrio e do Ser
Uma análise da cultura ocidental não pode ficar sem a compreensão da Ira, diversos autores analisaram a questão, Byung-Chul Han lembra que uma das primeiras palavras na Ilíada de Homero que começa assim: “Aira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades”, mas não é só.
Aristóteles define raiva como: ““um desejo, acompanhado de dor, de vingança percebida, em razão de uma desconsideração percebida em relação a um indivíduo ou seu próximo, vinda de pessoas das quais não se espera uma desconsideração” (2.2.1378a31-33) escreveu sobre Retórica, porém Peter em seu ensaio Ira e Tempo ressignifica esta visão psicanalítica que reduz o sentimento a uma mera válvula de escape para desejos não realizados e a redescobre como um conceito político do século XXI (imagem parte da capa).
Diz o autor “Enquanto a ligação entre espírito e ressentimento era estável – a exigência por justiça para o mundo – seja para além da vida terrena, seja na história que acontece – pôde se refugiar em ficções que foram aqui minuciosamente tratadas: na teologia da ira de Deus e na economia timótica mundial do comunismo” (Sloterdijk, 2021), que toma um tema polêmico.
O certo é que há ira dos dois lados, e não nelas não reside o “já” mas “não ainda” que tratou-se no post anterior, porque ambos pensamentos se acham filiados ao idealismo moderno, e esta é a critica central a Kant e ao idealismo alemão de Hegel, não apontam para uma justiça.
Nela há uma ausência da dor, que antecede a com-paixão, mais que ato de misericórdia (miseri cordis, do coração), é um ato de adesão e justificação das periferias existenciais, onde a dor da justiça reside, mas como existencial também reside nos corações desiludidos e cansados.
A contemplação e o já e não ainda, que atinge tanto a esfera terrena como a divina, exige uma vita activa que é aquele do equilíbrio psicológico, familiar e social que não exclui o outro, não raramente aqueles que defendem a justiça apenas terrena ou apenas divina, não tem uma ação pró-ativa que leve ao encontro da dor, amplamente analisado na “Sociedade paliativa” de Byung-Chul Han, eliminados a dor pela transferência ao “paraíso” terreno ou divino, sem nossa com-paixão.
O equilíbrio do Ser, que se já se realiza, mas não ainda (completamente), tem algo a dizer do justo, do bem comum e da paz.
SLOTERDIJK, P. Ira e tempo. Trad. Marco Casanova. São Paulo: Estação Liberdade, 2021.
Ontologia, idealismo e a verdade
O pensamento de Heidegger deve partir da questão do Espírito em Hegel, lido por Byung-Chul em Introdução à Fenomenologia do Espírito “em termos do esquecimento do ser” (questão central de Heidegger), ele a vê como um “eu árido” que encontra “sua limitação ao ente que lhe sai ao encontro” (Han, pg. 334 citando Hegel).
Embora recupere Hegel, em parte, na epígrafe do último capítulo: “a verdade é o todo”, ele rediscute a dialética e sua metafísica no idealismo: “em relação ao “apenas ser” que o esvazia até um nome “que não nomeia mais nada”, a consciência natural … quando se dá conta do ser, assegura que ele é algo abstrato. ” (Han, pg 336).
A consciência natural (vista assim) “se demora em ´perversidades” … “ela tenta eliminar uma perversidade organizando outra, sem se lembrar da autêntica inversão” onde “a verdade da essência do ser se recolhe ao ente” (pg. 336 com citações de Heidegger), que vê nisto um passo atrás e o “já” esquecido, incompreendido (pg. 337), não aparece completamente negado, aparece na forma de “ainda não” que não é uma negação, nem uma barricada, posto “ao lado do já impede que ele se apresente” (pg. 337).
Há todo um desenvolvimento em contraste com a dialética de Hegel, mais que um tópico poderia muito bem ser um livro, porém o diálogo que trava com Derridá e Adorno no capítulo sobre o Luto e o trabalho do luto, encaminha para sua visão do todo fora da abstração dialética, diz a preocupação com a imortalidade, com matar a morte, não é secreta apenas no coração de Platão ou Hegel (pg. 384), seria a principal preocupação com o arquivo “cardiográfico” da história da filosofia, nela o filósofo “trabalha” para reverter o negativo do ser.
Este é o que vai dar base ao seu “trabalho do luto”: “ser capaz da morte como morte”, isto é, ser capaz do luto, esta “tragédia” “se distingue radicalmente do ruidoso trabalho do luto da dialética hegeliana” (Han, p. 385).
“As lágrimas liberam o sujeito de sua interioridade narcísica … elas que o “feitiço que o sujeito lança sobre a natureza” (Han, p. 394) agora citando Adorno, e o autor afirma que a “Teoria Estética é o livro das lágrimas (idem) e que ao contrário de Kant, e que “o espírito percebe, frente à natureza, menos sua própria superioridade do que sua própria naturalidade” (p. 395).
“A experiência estética abala o sujeito narcísico que se julga soberano e faz desmoronar o endurecido princípio do “eu” … a lágrima do sujeito abalado e comovido prova ser capaz de verdade” (pg. 395).
Capaz da verdade, do infinito e para os que creem de Deus, não um Deus dos bens passageiros e de falsa alegria, mas aquela do já, mas não ainda, aquela além da dor e da transitoriedade das coisas temporais.
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
Verdade, noética e o Mal
Nos prolegômenos do primeiro volume de Investigações lógicas, Husserl que havia recebido forte influência de Franz Brentano, pai da psicologia social, vê como problema o relativismo e suas bases na visão de mundo turbada, assim à relatividade da existência de um mundo não é objetiva nem subjetiva, mas “a unidade objetiva completa que corresponde ao sistema ideal de todas as verdades de fato, e dele é inseparável” (HUSSERL, 2005, p. 136).
Isto porque cada tipo de objeto tem desdobramentos próprios possíveis, por assim dizer, tem um método próprio prescritos a priori por leis de essência determinadas pelo eidos da objetividade em questão (Husserl, 2006, 309), isto quer dizer que é a essência da objetividade que pré-determina o tipo de desenvolvimento concordante que se tem da experiência dele.
Pode haver a vivência da evidência nesta experiência do objeto, e isto colabora com seu status de ente enquanto um “ser verdadeiro” (Husserl, 2006, p. 309), aquilo que Husserl chamava de “Lebenswelt”, uma lógica da vida, neste caso da vivência experimentada com o objeto.
Assim um objeto que é o “puro X” se mantém estável em meio à multiplicidade de caracteres noemáticos, que se perfilam no decorrer de uma experiência, o objeto visado no pensamento pela consciência humana, ele precede a primeira ideia intuitiva que é a noesis (pensar X).
Essa visão noética é uma síntese de identidade, conceito central para o estabelecimento do objeto “efetivo”, “verdadeiro”, a objetividade apreendida em doação evidente, numa síntese de identidade concordante, é efetivamente, escreveu Husserl:
A todo objeto “verdadeiramente existente” correspondente por princípio (no a priori da generalidade eidética incondicionada) a ideia de uma consciência possível, na qual o próprio objeto é apreensível originariamente e, além disso, em perfeita adequação. Inversamente, se essa possibilidade e garantida, objeto é o ipso verdadeiramente existente” (HUSSERL, 2006, p. 316).
As sínteses envolvidas no pensamento fenomenológica, para o estabelecimento do “ser” ou do “não-ser” dos objetos correlatos noemáticos são “intencionalidades de ordem superior”, é aquilo que Husserl retirou do pensamento neotomista de Franz Brentano, livra-se do psicologismo, do eidos que temos do bem e do mal ainda escolástica do pai da psicologia social.
A intencionalidade de doação evidente dos aspectos ainda não presentes do objeto formam um horizonte intencional, na visão de Husserl, traz por sua vez, suas potencialidades já pré-determinadas, assim são falsas as visões fáticas de guerra e paz, de demônio e do mal.
São as intencionalidades mal-formadas (no sentido que não tem uma verdade noética), a verdade enquanto “ser”, enquanto “o verdadeiro” nas leituras fáticas e idealistas, são para Husserl uma “efetividade” (Wirklichkeit) já que guarda coerência em seu núcleo.
Assim o pensamento tradicional pensa ser ortodoxo ao se referir ao outro como “mal” ou como “demônio”, quanto na verdade esconde a intencionalidade noética de seu interior.
Husserl, E. Investigações lógicas. Primeiro volume: Prolegômenos à lógica pura. Tradução de D. Ferrer. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2005.
Husserl, E Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Tradução de M. Suzuki. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006
As guerras e as narrativas
Ésquilo escritos da Grécia antiga é o autor da frase: “a verdade é a primeira vítima da guerra”, o general russo aposentado Andrey Gurulyov, falou no canal Russia-1 apontando quais seriam os alvos da Rússia, que se preparava para uma grande guerra, a Jihad islâmica é um grupo de forte influência no Irã e que prega o fim de Israel, seu discurso é teocêntrico e não geopolítico.
São apenas algumas meias-verdades sobre a guerra, claro não escapam Israel e a Ucrânia que são aliados do ocidente na luta geopolítica econômica de preservar direitos de empresas e grandes capitais, por isso os dois lados tem dificuldades de entender a paz “civilizatória”.
No diálogo de Platão Teeteto, apontado com um dos primeiros na história sobre o relativismo, aparecem conjugadas as ideias de aparência, verdade e alma; a primeira exigência de Sócrates para iniciar o diálogo é que Teeteto abandone suas ideias iniciais, e ao perguntar sobre o que é conhecimento e obtendo a resposta sobre a Geometria e demais artes, Sócrates responde com ironia: “És nobre e generoso, amigo, pois te pedem algo simples e tu ofereces múltiplas e diversas coisas”.
A segunda questão é como chegar ao conhecimento, e a resposta de Teeteto é a “sensação” (ou percepção) que Sócrates indica que devemos abandonar a “familiaridade” que temos das coisas, diz no diálogo: “Parece-me que aquele que conhece algo percebe aquilo que conhece, e para dizer a coisa tal como agora ela se manifesta, o conhecimento nada mais é do que sensação.”
Assim são dois passos primários e essenciais para a verdade, a segunda resposta é um avanço sobre a primeira, pois assim os gregos as considerava: “Sobre isto todos os sábios, um atrás do outro, exceto Parmênides, devem concordar: Protágoras, Heráclito, Empédocles e, dentre os poetas, os que estão no topo de cada uma das composições, Epicarmo, na comédia, e Homero, na tragédia…”, citando os gregos até aquele período, os chamados pré-socráticos.
Assim até então, a verdade estava circunscrita a sensação, ao iniciar o diálogo sobre Protágoras chega a ideia do primeiro equivoco da verdade relativa: “O homem medida de todas as coisas não seria, ao fim e ao cabo, um homem confinado ao círculo restrito de sua experiência mais imediata e do que apenas a ele parece verdadeiro” e isto remete a aparência.
Usando esta ideia de “familiaridade” com as coisas, Platão abre uma crise na ideia dos gregos sobre conhecimento, e assim abrir um caminho novo ontológico sobre a alma, partindo de Homero “coração da alma” (194c), dificilmente haveria ocasião para erro, pois esta (a alma) prontamente faria a identificação correta da impressão atual, rompendo preconceitos.
PLATÃO. Teeteto. Trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.