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Arquivo para setembro, 2020

No prazer do texto há um diálogo

02 set

No post anterior há as expressões de Barthes sobre literatura, escrita e texto, e já conceituamos a ideia de inscrição que se supõe um suporte, a escrita e o aspecto cognitivo e no texto o aspecto linguageiro, artístico e de “instalação”, e é aqui que analisa-se o seu livro “O prazer do texto”.

O livro apesar de aspectos teóricos é de fato um prazer ao ser lido, há diálogo e principalmente surpresas agradáveis, como por exemplo, um espaço semiológico, uma espécie de lugar entre duas margens: “uma margem obediente, conforme, plagiária (…) o estado canônico da língua e outra móvel, vazia (…) estas duas margens enceram, são necessárias” (pag. 40).

Cede a literatura mais clássica: “de Zola, de Balzac, de Dickens, de Tolstoi) traz em si mesma uma espécie de mimese enfraquecida: não lemos tudo com a mesma intensidade de leitura; um ritmo se estabelece, desenvolto, pouco respeitoso em relação à integridade do texto” (pag. 17)

Trata em uma única linha de rupturas Proust, Balzac e Tostói, “o próprio ritmo daquilo que se lê e do que não se lê que produz o prazer dos grandes relatos: ter-se-á algumas vez lido Proust, Balzac, Guerra e Paz, palavra por palavra?  (Felicidade de Proust: de uma leitura a outra, não saltamos nunca as mesmas passagens)” (pag. 18).

Recomenda como se deve fazer a verdadeira leitura: “Leiam lentamente, leiam tudo, de um romance de Zola, o livro lhes cairá das mãos; leiam depressa, por fragmentos, um texto moderno, esse texto torna-se opaco, perempto para o nosso prazer: vocês querem que ocorra alguma coisa, e não ocorre nada; pois o que ocorre à linguagem não ocorre ao discurso: o que “acorre”* , o que “se vai”, a fenda das duas margens .. “ (pag. 19).

Contrasta o texto com o teatro ou o cinema: “Na cena do texto não existe ribalta: não há por detrás do texto ninguém ativo (o escritor) nem diante dele ninguém passivo (o leitor); não há um sujeito e um objeto. O texto prescreve as atitudes gramaticais: é o olho indiferenciado que fala um autor excessivo (Angelus Silesius): ‘O olho com que eu vejo Deus é o mesmo olho com que ele me vê.” (pag.52).

Revela o segredo de outro livro seu: “Tradição antiga, muito antiga: o hedonismo foi repelido por quase todas as filosofias; só se encontra a reivindicação hedonista entre os marginais, Sade, Fourier; para o próprio Nietzsche, o hedonismo é um pessimismo” (pag. 74), o livro citado no post anterior que vai muito além do hedonismo.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad.   J. Guinsburg. SP: Editora Perspectiva, 1987. (pdf)

 

Autores e diálogos

01 set

Li um texto de 1968 de Roland Barthes “A morte do autor” no qual ele problematiza o conceito, propondo-o como “a destruição de toda a voz, de toda origem”, ele diria também do homem (de hoje) num momento conturbado de conceitos e de acontecimentos verdadeiramente e “estranhos” que estão se construindo “barricadas nos textos”, o que dizia de seus contemporâneos (Alain Badiou e Jacques Derridá afirmaram que sem este conceito não se pensa criticamente nenhum objeto), e o que diria hoje, certamente que sua tese estava certa, e hoje mais ainda.

É sabido que Foucault deu umas alfinetadas em Barthes, mas em Sade, Fourier, Loyola elas foram devolvidas ao inserir no jogo discursivo o leitor e reformula a questão da autoria em outra dimensão: o corpo, este objeto de consumo de tantas teorias hoje, somente em Barthes encontra alguma solidez (não líquida).

Para Barthes o texto é um corpo, um objeto de prazer dotado da capacidade de penetrar na vida do leitor em fragmentos, gerando coexistências entre leitor e autor, ou textualmente:
“O prazer do texto comporta também uma volta amigável do autor. O autor que volta não é por certo aquele que foi identificado por nossas instituições (história e ensino da literatura, filosofia, discurso da Igreja); nem mesmo o herói de uma biografia ele é … é um simples plural de ‘encantos’, o lugar de alguns pormenores tênues, fonte, entretanto, de vivos lampejos romanescos, um canto descontínuo de amabilidades, em que lemos apesar de tudo a morte com muito mais certeza do que na epopéia de um destino; não é uma pessoa (civil, moral), é um corpo.” (BARTHES, 2005).

Barthes propôs em 1977 (Leçon) uma distinção dos termos: literatura, escrita e texto, que é particularmente interessante conceitualmente, a escrita tem algo que é a manuscrição uma inscrição na qual se supõe um suporte, um utensílio, em segundo lugar (embora seja apenas de caráter didático) o sentido cognitivo, pelo qual se designa a instalação e o terceiro as formas “linguageiras” dotadas de significação que tomam um sentido artístico.

Para problematizar a questão da “pluridimensionalidade” proposta por Barthes para a literatura ele inicia a chamada “crítica genética”, problematizando o aspecto enunciativo do termo, tem como objetivo reconstituir uma história do texto em estado nascente, buscando encontrar nele os segredos de fabricação da obra, e assim é explicado o que é um texto e sua relação com a literatura.

É aqui que se estabelece o diálogo pela língua, sem a compreensão da genética de um texto, pode haver solicitude ou diálogo, mas não sairia da superficialidade e nem atingiria aquele nível desejável para muitos autores contemporâneos de assumir os pré-conceitos e estabelecer novos horizontes.

Barthes faz uma valiosa reflexão acerta da escuta distinguindo-a do ato fisiológico do mecânico de “ouvir”, dando-lhe um estatuto de ato psicológico que só se define por seu objeto e por sua intenção, categoria tão cara á hermenêutica embora não seja exatamente a mesma, guarda similaridades.

autor faz uma valiosa reflexão acerca da escuta, distinguindo-a do ato fisiológico e mecânico de “ouvir”, conferindo-lhe um estatuto de ato psicológico que só se define por seu objeto e por sua intenção.

É famosa a frase de Barthes: “Toda a recusa duma linguagem é uma morte” e um interprete deste autor explicita a diferença entre ouvir e escutar: “[…] uma escuta poiética (‘bruta’, como o quer Barthes) visa não aprisionar sons de uma maneira hierarquizante, como num insípido objeto de análise fria” (El Haouli, 2002), é este aspecto de diálogos hierárquicos que dominam muitos que julgam fazê-lo mas não o fazem, apenas desejam a submissão passiva do Outro às suas categorias.

 

BARTHES, R. Sade, Fourier, Loyola, Paris: Seuil, 1971. [tradução: Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

EL HAOULI, Janete. Demetrio Stratos: em busca da voz-música. Londrina: Gráfica e Editora Midiograf, 2002.