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Heidegger e a tonalidade afetiva
A intencionalidade é inerente ao Ser, é uma manifestação da interioridade.
Como um bom oriental, embora radicado na Alemanha, Byung-Chul Han parte sua análise não da perspectiva objetivista, materialista ou substancialista dos autores clássicos da filosofia ocidental, mas na perspectiva holística daquilo que vai chamar de “tonalidade afetiva” em Heidegger.
Seu livro, diferente de outros que considero ensaios, analisa “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger” (Ed. Vozes, 2023), com esta análise nova, humana e diria até mesmo espiritual do cerne da filosofia ocidental.
Parte de um conceito caro a civilização judaico-cristã, que é o da circuncisão, porém da circuncisão do coração e não do órgão falido (a pele presa no início do pênis), é preciso lembrar que embora órgão masculino ele é emblema do poder, da autoridade e do desejo, foi culturalmente numa cultura bélica.
A parte de sua visão religiosa, ele tem um sentido espiritual para toda a sociedade, contrário ao que Han vai desenvolver que é a circuncisão do coração, aquela que modula e rege o afeto.
Começa por aquilo que é raiz da cultura eurocêntrica, começando pela hipocondria de Kant que confessa em seu texto “Conflito das faculdades”: “por causa de meio peito chato e estreito, que deixa pouco espaço para o movimento do coração e dos pulmões, eu tenho uma predisposição natural para a hipocondria, que em anos anterior beira o tédio da vida” (Han, 2023, pg. 8), e daí desenvolve o “anseio expande o coração, o faz definir e esgota as forças” (pg. 9).
Este anseio dirá não é também indolor para Heidegger, mas de acordo com este autor (foi tese de doutorado de Han), o anseio é a “dor da proximidade da distância”, o feitiço do “sempre-igual”, porém num movimento de sair do em-si existe uma “Dor da costura” com o Outro.
Assim, dirá Han, a “costureira” (Näherin] de Heidegger, “trabalha na proximidade”, é também uma circuncidadora do coração (pg. 10), desenvolve-se convertendo-o “em tímpano hétero- auditivo” (pg. 10), “o coração do ser-aí” palpita no horizonte transcendental, assim segundo Han no Heidegger tardio, “a constrição penetra mais profundamente” e o ser-aí separa-se do ser do aí: Da-Sein (Han, pg. 11).
Assim, “esta circuncisão liberta o coração da interioridade subjetiva” (Han, Idem), e há uma conclusão preliminar surpreendente em Heidegger: “O coração de Heidegger, por outro lado [confronta com Derridá], escuta uma só voz, segue a tonalidade e gravidade do “uno, o único que unifica”, para ele é um “ouvido do seu coração” porém há algo forte de espiritual nisto.
Espiritualmente há uma voz interior que fala aos nossos corações se estão circuncidados.
Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
Verdade, noética e o Mal
Nos prolegômenos do primeiro volume de Investigações lógicas, Husserl que havia recebido forte influência de Franz Brentano, pai da psicologia social, vê como problema o relativismo e suas bases na visão de mundo turbada, assim à relatividade da existência de um mundo não é objetiva nem subjetiva, mas “a unidade objetiva completa que corresponde ao sistema ideal de todas as verdades de fato, e dele é inseparável” (HUSSERL, 2005, p. 136).
Isto porque cada tipo de objeto tem desdobramentos próprios possíveis, por assim dizer, tem um método próprio prescritos a priori por leis de essência determinadas pelo eidos da objetividade em questão (Husserl, 2006, 309), isto quer dizer que é a essência da objetividade que pré-determina o tipo de desenvolvimento concordante que se tem da experiência dele.
Pode haver a vivência da evidência nesta experiência do objeto, e isto colabora com seu status de ente enquanto um “ser verdadeiro” (Husserl, 2006, p. 309), aquilo que Husserl chamava de “Lebenswelt”, uma lógica da vida, neste caso da vivência experimentada com o objeto.
Assim um objeto que é o “puro X” se mantém estável em meio à multiplicidade de caracteres noemáticos, que se perfilam no decorrer de uma experiência, o objeto visado no pensamento pela consciência humana, ele precede a primeira ideia intuitiva que é a noesis (pensar X).
Essa visão noética é uma síntese de identidade, conceito central para o estabelecimento do objeto “efetivo”, “verdadeiro”, a objetividade apreendida em doação evidente, numa síntese de identidade concordante, é efetivamente, escreveu Husserl:
A todo objeto “verdadeiramente existente” correspondente por princípio (no a priori da generalidade eidética incondicionada) a ideia de uma consciência possível, na qual o próprio objeto é apreensível originariamente e, além disso, em perfeita adequação. Inversamente, se essa possibilidade e garantida, objeto é o ipso verdadeiramente existente” (HUSSERL, 2006, p. 316).
As sínteses envolvidas no pensamento fenomenológica, para o estabelecimento do “ser” ou do “não-ser” dos objetos correlatos noemáticos são “intencionalidades de ordem superior”, é aquilo que Husserl retirou do pensamento neotomista de Franz Brentano, livra-se do psicologismo, do eidos que temos do bem e do mal ainda escolástica do pai da psicologia social.
A intencionalidade de doação evidente dos aspectos ainda não presentes do objeto formam um horizonte intencional, na visão de Husserl, traz por sua vez, suas potencialidades já pré-determinadas, assim são falsas as visões fáticas de guerra e paz, de demônio e do mal.
São as intencionalidades mal-formadas (no sentido que não tem uma verdade noética), a verdade enquanto “ser”, enquanto “o verdadeiro” nas leituras fáticas e idealistas, são para Husserl uma “efetividade” (Wirklichkeit) já que guarda coerência em seu núcleo.
Assim o pensamento tradicional pensa ser ortodoxo ao se referir ao outro como “mal” ou como “demônio”, quanto na verdade esconde a intencionalidade noética de seu interior.
Husserl, E. Investigações lógicas. Primeiro volume: Prolegômenos à lógica pura. Tradução de D. Ferrer. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2005.
Husserl, E Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Tradução de M. Suzuki. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006
Interioridade, verdade e conflitos
O abandono de concepções que levam a humanidade elaborar-se interiormente elevando os pensamentos e espiritualidades é apontado em inúmeras leituras contemporâneas, temos aqui postado aqui Heidegger, Hans-Georg Gadamer, Peter Sloterdijk, Edgan Morin e Byung-Chul Han, entre outros, é claro.
Porém queremos aqui partir da questão do método e retornar a fenomenologia de Husserl, um dos primeiros a questionar “A crise das ciências Europeias e a fenomenologia transcendental – uma Introdução a Filosofia Fenomenológica” (edição brasileira da Forense Universitária, de 2012) que aponta esta questão e que na terceira parte esclarece a questão transcendental e os equívocos da ciência contemporânea.
Assim aponta seus questionamentos dos conceitos de “experiência exterior” e “interior”: “O absurdo principial de querer considerar seriamente homens e animais como realidades duplas, como vínculo entre duas realidades de espécie diversas, equiparáveis quanto ao sentido de realidade, e querer, assim, pesquisar também as mentes pelo método científico-corpóreo, ou seja, de modo natural-causal existindo espaço-temporalmente como corpos – resultou na pretensa obviedade de um método a configurar de modo análogo ao da ciência da natureza” (Husserl, 2012, pgs. 177-178).
Neste sentido vai questionar tanto o dualismo cartesiano como o fundamento de uma ciência que cria um “paralelismo” onde: “a natureza físico-matemática é a natureza objetivamente verdadeira; essa natureza deve ser a que se anuncia nas aparições meramente subjetiva” (pg. 179), e sua questão levantada é porque “não é a natureza do mundo da vida, este mero elemento subjetivo da experiência exterior, mas esta é contraposta à experiência exterior ?
A interioridade na filosofia é um aspecto fundante desde que observemos a questão ontológica do Ser, já presentes em Platão e Aristóteles, e que em Santo Agostinho vai ter um papel central na sua visão de mundo, onde busca um sentido profundo de “beatitude” da alma.
Esta interioridade reduzida a interior e visões imediatas de mundo, separam o homem do mundo, dos outros e passa a se projetar excessivamente sobre os objetos, “as coisas” até o ápice do mundo digital, chamado por Byung-Chul Han de “não coisas”, para falar de algo em alta atualmente, diz o autor: “inteligência artificial não pensa”.
Assim nos movemos mecanicamente para interesses para conflitos externo e que nos levam a posicionamentos cada vez mais litigiosos sobre valores e não-valores que justificam a violência.
O problema que aponta Husserl, é que tudo isto parte de um “método” ou seja o modo particular como olhamos o exterior e exercemos nossa interioridade, contrapostos nas origens por Brentano e Dilthey: “como em geral no século XIX, no tempo dos esforços apaixonados para produzir uma psicologia rigorosamente científica, apresentável ao lado da ciência da natureza” (pg. 180), mas este psicologismo é superado pela crítica de Husserl a Brentano e depois por Hans-Georg Gadamer a Dilthey, como o vê como um historicismo romântico.
O que é o homem interiormente, porque esvaziou-se na modernidade, qual o retorno a vida ?
HUSSERL, E. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Trad. Diogo Falcão Ferrer. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2012.
A verdade e o Ser
Para Sócrates a verdade não estava com os homens, mas entre os homens, com isto se opunha a Protágoras que dizia o “homem é a medida de todas as coisas”, o relativismo dos sofistas.
Heidegger atualiza o conceito de verdade do ser (alétheia) e esclarece o mal entendido que o ser como presentar-se ao ser do homem, o equívoco trata-se que poderia ocorrer que seria tomar a abertura do ser (geschlosenheit) como elemento determinantes para a compreensão da verdade do ser (alétheia), a verdade não é do homem, mas do ser.
Esta relação dinâmica própria da re-velação do ser (re velar, ou seja, outros véus) não se trata da “função de sujeito transcendental” que tem poder das chaves para abrir o verdadeiro e o não verdadeiro, que fica no campo da lógica binária, mas sim o poder de desvelar o ser.
A ambivalência do jogo de tensões entre o Ser e Aparência fica no campo da re-velação, onde a verdade é também ambivalente, porém se pensada como Ser, ambas podem conduzir a uma nova re-velação diz, Heidegger: “o ser, como aparência, não é menos poderoso do que o ser, como re-velação e descobrimento (unverbogenheit)” (Heidegger, 1984, p. 254).
De certo modo, tanto para Descartes como para Kant, Heidegger os vê como olhando o mundo como algo simplesmente dado, como o mundo físico e material, visto que a ontologia tradicional se estrutura deste modo, o ser vive uma relação entre a coisa e o intelecto.
Já Tomás de Aquino via assim, e o que muda a partir de Franz Brentano é uma sub-categoria tomista da consciência, que é consciência de algo, e depois Husserl estende para uma volta a “coisa em si” (a natureza para Kant e Descartes) como intencionalidade e redução (aidética, nome que vem de ideia, mas para os gregos) que para ele é criar um objeto mental.
Heidegger desvela esta verdade do ser, ao perceber que há uma ser ek-sistente de um ser que se agita de um objeto para outro na vida cotidiana, desviando-se do mistério do Dasein.
Não há em Heidegger uma pura contemplação do Ser e sim uma relação entre o Ser e o Ente, entre aparência e essência, porém, a nosso ver, ainda permanece um velamento de sua finitude, de ainda permanecer um ser-do-ente, ou seja, uma coisa ainda que tenha relação ontológica, a transcendência permanece no objeto, o que somos além do ente?
Retorna-se a pergunta parcialmente respondida de Heidegger: “O que preserva o deixar-se nesta relação com a dissimulação?”, não quero forçar uma hipótese teológica, mas deixo no ar: o puro Ser pode entrar no Ente, sem perder sua essência, o que retornará desta finitude?
Heidegger, M. A tese de Kant sobre o ser. São Paulo: Abril Cultural (Col. Os Pensadores), 1984.
As guerras e as narrativas
Ésquilo escritos da Grécia antiga é o autor da frase: “a verdade é a primeira vítima da guerra”, o general russo aposentado Andrey Gurulyov, falou no canal Russia-1 apontando quais seriam os alvos da Rússia, que se preparava para uma grande guerra, a Jihad islâmica é um grupo de forte influência no Irã e que prega o fim de Israel, seu discurso é teocêntrico e não geopolítico.
São apenas algumas meias-verdades sobre a guerra, claro não escapam Israel e a Ucrânia que são aliados do ocidente na luta geopolítica econômica de preservar direitos de empresas e grandes capitais, por isso os dois lados tem dificuldades de entender a paz “civilizatória”.
No diálogo de Platão Teeteto, apontado com um dos primeiros na história sobre o relativismo, aparecem conjugadas as ideias de aparência, verdade e alma; a primeira exigência de Sócrates para iniciar o diálogo é que Teeteto abandone suas ideias iniciais, e ao perguntar sobre o que é conhecimento e obtendo a resposta sobre a Geometria e demais artes, Sócrates responde com ironia: “És nobre e generoso, amigo, pois te pedem algo simples e tu ofereces múltiplas e diversas coisas”.
A segunda questão é como chegar ao conhecimento, e a resposta de Teeteto é a “sensação” (ou percepção) que Sócrates indica que devemos abandonar a “familiaridade” que temos das coisas, diz no diálogo: “Parece-me que aquele que conhece algo percebe aquilo que conhece, e para dizer a coisa tal como agora ela se manifesta, o conhecimento nada mais é do que sensação.”
Assim são dois passos primários e essenciais para a verdade, a segunda resposta é um avanço sobre a primeira, pois assim os gregos as considerava: “Sobre isto todos os sábios, um atrás do outro, exceto Parmênides, devem concordar: Protágoras, Heráclito, Empédocles e, dentre os poetas, os que estão no topo de cada uma das composições, Epicarmo, na comédia, e Homero, na tragédia…”, citando os gregos até aquele período, os chamados pré-socráticos.
Assim até então, a verdade estava circunscrita a sensação, ao iniciar o diálogo sobre Protágoras chega a ideia do primeiro equivoco da verdade relativa: “O homem medida de todas as coisas não seria, ao fim e ao cabo, um homem confinado ao círculo restrito de sua experiência mais imediata e do que apenas a ele parece verdadeiro” e isto remete a aparência.
Usando esta ideia de “familiaridade” com as coisas, Platão abre uma crise na ideia dos gregos sobre conhecimento, e assim abrir um caminho novo ontológico sobre a alma, partindo de Homero “coração da alma” (194c), dificilmente haveria ocasião para erro, pois esta (a alma) prontamente faria a identificação correta da impressão atual, rompendo preconceitos.
PLATÃO. Teeteto. Trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
Totalitarismo e vidas inocentes
Na guerra a primeira vítima é a verdade, frase atribuída a Ésquilo da antiga Grécia, porém o trágico é a proporção de vítimas inocentes, almas puras e elevadas que a guerra consome por causa do pavor que líderes totalitários tem da liberdade, de pessoas livres e de humanismo verdadeiro.
São inúmeros os casos, desde hospitais e escolas que são bombardeados até casos de tortura e requintes de crueldade com pessoas que trariam grandes frutos para uma humanidade elevada e é exatamente por isso que mentes doentias as combatem.
Descobri entre estes vários nomes, através de uma aluna, uma judia de nome Etty (Esther) Hillesum, uma holandesa filha de pai holandês Louis Hillesum e mãe russa Rebecca Bernstein (Riva), professor de línguas antigas, de quem provavelmente nasceu o interesse por línguas, mas vai estudar línguas eslavas talvez inspirada na mãe, e depois tira mestrado em Direito.
Seus diários e cartas são escritos durante a ocupação Nazista em Amsterdá, entre seus primeiros livros que tomei contato estão “Une vie bouleversée” (Uma vida virada no avesso) e 15 dias de orações com Etty Hillesum (esta publicação em português pelas Paulinas).
Uma de suas frases “dentro de mim há um poço profundo”, onde dentro dele existe areia e pedras que impedem a chegar a algo mais límpido revela um caminho místico e a busca que há dentro dela de atingir uma interioridade mais profunda, é um refúgio, diria uma resistência espiritual ao nazismo e ao clima que era gerado a sua volta.
A relação com psicoquirologista Julius Spier (que tinha influência da Karl Yung), inicialmente para tratamento e depois há um envolvimento pessoal, desperta sua intelectualidade já que em março de 1941 começa a escrever seu primeiro de 8 diários.
Em junho e julho de 1942 aprofunda seu diálogo místico, escrevendo: “Deus se tornou um interlocutor …” e é neste contexto que se pode falar de seus escritos sobre a oração.
Escrito em “15 dias de oração com Etty Hillesum”: “Ele me tomava pela mão, por assim me dizer, e me falava: “Pronto é assim que se deve viver” sobre o primeiro dia, dirá sobre o segundo: “uma hora de paz, é preciso aprender … vou voltar-me para meu interior .. uma meia hora de ginástica e uma meia oração de meditação”, terceiro dia: “Hineinhorchen: escutar interiormente”, escutar a si mesma, aos outros e a Deus.
Assim vou seguinte o itinerário de Etty: quarto dia: “perdoar meus pais e seus limites”, quinto-dia: “entregue a si mesma e á própria guarda”, enfim de uma alma pura e inocente que indica não apenas um caminho de orações repetitivas e sem sentido, mas um caminho interior.
Uma das milhões de alma inocentes morreram em campos de concentração, ela encontra ainda jovem com 29 anos sua morte no campo de Auschwitz, seus escritos são puros e profundos, lembra a pureza das crianças e das pessoas que vivem uma humanidade humana.
FERRIÈRE, P., MEEÛS-MICHIELS, I. 15 dias de oração com Etty Hillesum. São Paulo: Paulinas, 2016.
O totalitarismo e a ontologia política
As guerras giram sempre em torno de governos totalitários, porque estes tem uma visão de mundo unilateral, que despreza culturas e visões de outros povos e assim querem submeter também seus povos, que em geral aceitam culturas diferentes, a uma univisão de mundo.
Hannah Arendt encarou estes regimes com sua escrita de 1951: “As origens do totalitarismo”, estava convencida que após o final da segunda guerra o problema não acabava ali, ali fala do inferno, do pesadelo, da Metamorfose de Kafka, da cebola e até da feiura de um omelete entre tantas outras coisas, quando chegavam às suas mãos as histórias de Auschwitz.
Ao tentar descrever a experiência totalitária, Arendt se deparava com o dilema que era como essa experiência não podia ser explicada, não pela filosofia política ou pelos conceitos tradicionais, não só pela culminação de um processo do desenvolvimento de algo a partir de um passado, mas naquilo que Heidegger chamou de “esquecimento do ser”.
Lembro uma frase impactante de Lygia Fagundes Telles, falecida em 16 de abril de 2022 quando completaria 99 anos, escreveu: “Não há coerência ao mistério nem peça lógica ao absurdo”, os ditadores e suas narrativas só tem lógica numa propaganda sistemática, e numa claque que de outros fanáticos que o apoiam e com ele se identificam, enfim uma narrativa parcial da realidade.
Esta forma de narrativa que Arendt escreveu encontrou oposição em um contemporâneo como Voegelin sobre o qual ela respondia à sua análise: “eu não escrevi uma história do totalitarismo, mas uma análise em termos históricos dos elementos que se cristalizaram no totalitarismo” (ARENDT, 2007, p. 403).
Escreveu também na “Crise da República”, que a primeira diferença fundamental entre o totalitarismo e as demais categorias presentes na história está no fato de que o terror totalitário “se volta não só contra os seus inimigos, mas também contra os seus amigos e defensores”; uma segunda diferença seria sua radicalidade, que o torna capaz de eliminar não somente a liberdade de ação dos indivíduos como faziam as tiranias através do isolamento político., eliminando não só opositores como também aliados pouco confiáveis, há um claro paralelo na guerra atual.
Em sua nota de número 81, Arendt escreveu: “O total de russos mortos durante os quatro anos de guerra é calculado entre 12 e 21 milhões. Num só ano, Stálin exterminou cerca de 8 milhões de pessoas somente na Ucrânia (ver Communism in action, U. S. Government, Washington, 1946, House Document n o 754, pp. 140-1”, novamente a semelhança com a Guerra atual não é por acaso, e depois de Butcha depois Mariupol teve drama semelhante ao de Gaza (foto), mas só há narrativas ideológicas parciais.
O último tópico do livro de Arendt é: “Ideologia e terror: uma nova forma de governo”, quem tem interesse em evitar totalitarismo é só ler, é provável que toemos consciência deste terror e paremos de alimentá-lo em nosso dia-a-dia e tracemos uma política de respeito às culturas, ao ser, enfim uma ontologia política.
ARENDT, H. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Acreditar na proteção divina e fazer o bem
Apesar do clima de guerra devemos desejar a paz, alertamos no post de ontem que uma escalada era eminente e aconteceu, o clima e discursos de ódio de ambos lados na atual polarização mundial avança e só estarão em paz aqueles que continuam a fazer o bem.
Parece heroico, inocente ou mesmo pueril continuar a desejar e fazer o bem, mas este é o único caminho para não cair na banalização do mal, na polarização e no discurso desumano.
Ontem na noite de segunda no Brasil e madrugada de terça em Israel, mais de 180 mísseis do Irã foram lançados sobre Israel, eram mísseis hipersónicos que viajaram em 12 minutos até atingirem o solo de judaico, o número de vitimas e alvos atingidos não foram divulgados.
O envolvimento do mundo árabe, a Turquia, Líbano e Síria já declararam apoio ao ataque, que teve comemorações palestinas em Gaza, leva o confronto a uma escala mundial, nos Estados Unidos, Biden pediu às forças na área a defesa de Israel, que promete retaliação ao Irã.
A possibilidade de fechamento do golfo de Omã afetará o preço do petróleo mundialmente e com isto o encarecimento de produtos que dependem do transporte e da logística mundial.
Somente aderindo ao bem, a paz e sua vida no dia-a-dia é que nós podemos nos manter num clima emocionalmente equilibrado e sereno, mesmo diante de circunstâncias adversas, onde todo cedem ao pânico, ao ódio e a banalização do mal.
Para a filósofa Hannah Arendt a banalidade do mal é o fenômeno que recusamos no nosso caráter à reflexão e a tendência de não assumir as consequências de iniciativas de atos que não assumem as consequências do mal, e com isto impedem a adesão ao bem.
Somente temos uma proteção em nosso espírito e alma quando resistimos a tentação ao mal, aquilo que também o filósofo e educador Edgar Morin chama de “resistência do espírito” em meio a polarização, ao ódio e a guerra, com o bem atraímos a paz a nossa volta e a proteção divina.
O bem e a ontologia política
Embora o discurso filosófico sobre o bem seja amplo e variado, a modernidade perdeu parte deste fundamento quando vinculado a questão do Ser, no diálogo político não aparecem, por exemplo, o desenvolvimento de Hannah Arendt e suas obras: “A banalidade do mal” e “A condição humana”, ou o “O mal estar da civilização” de Freud ou ainda: “A simbólica do mal” de Paul Ricoeur.
Estes três últimos podem reelaborar, em dimensões trágicas, aquilo que reivindicamos como a ausência de uma ontológica política, aquilo que Hannah Arendt busca em seus textos.
Paul Ricoeur, explicando a simbólica do mal escreveu, a partir de atitudes individuais, que buscam “consolar” as vítimas do mal como um motivo causal:
“Às pessoas que sofrem e que são tão prontas a acusar-se de qualquer falta desconhecida, o verdadeiro pastor das almas dirá: Deus, certamente, não quis isto; eu não sei porquê; eu não sei porquê…” (Paul RICOEUR, “Le scandale du mal“, op. cit., p. 60), olhando a origem de um mal, que a maioria não consegue explicar, embora sinta.
O discurso filosófico tradicional sobre o bem gira em torno ou do utilitarismo (o bem é o que maximiza a felicidade, em Stuart Mill), o deontologismo (o bem é agir de acordo com o dever moral) e eudaimonismo (o bem supremo é a felicidade, alcançada através da virtude).
Kant elabora que o bem supremo é a vontade boa, ou seja, agir por dever e não por inclinação, e assim na filosofia contemporânea (de fundamento idealista) o bem vai desde a ética da virtude até a do cuidado, mas a ausência de valores fundacionais sobre o mal, acabam por incorporar o relativismo e cai no discurso política do populismo e do sofismo moderno.
Embora os gregos tenham tocado a questão ontológica, a ideia do platonismo que o bem é a forma mais elevada de realidade, a causa do que existe e objetivo final do conhecimento, a modernidade está paralisada sobre a égide de um mal, que não é só estrutural, mas que atinge o ser: a banalidade do mal de Arendt e o mal estar civilizatório de Freud.
Arendt mostra que há uma lacuna fundamentalmente política no pensamento atual que se insere na categoria da pluralidade do pensamento filosófico, antes da ascensão de Hitler, a busca de Arendt seguia para outras questões filosóficas que iam também em direção ao bem, em sua tese de doutorado, orientada por Karl Jaspers, discorria sobre “O conceito de amor em Santo Agostinho”, mas depois revê a questão ontológica e vai analisar a questão do totalitarismo.
Sobre a questão do Amor (o ágape) feito em seu doutorado, fica inconcluso, segundo seu próprio orientador, porém ainda que o mal pareça prevalecer, é o bem que devemos perseguir e só ele nos livra da condição histórica onde parece o mal triunfar.
Verdade, linguagem e método
A compreensão de qualquer fenômeno passa necessariamente por uma linguagem e um método, a linguagem como meio de comunicação do fenômeno e o método como um caminho estratégico que a verdade pode ser alcançada sobre alguma questão.
Verdade dogmáticas e ideológicas conduziram a narrativas e distorções da realidade, mesmo aquelas que passam pelo imaginário, que não é necessariamente uma inverdade, mas muitas vezes uma analógica ou metáfora para dizer a verdade.
A linguagem como “morada do ser” é para a interpretação fenomenológica e ontológica da verdade, isto é, aquela que passa pela questão do “ser” do “ente” é a base para comunicar a verdade entre fonte e destino, porém não se pode confundi-la com emissor e receptor.
Quando temos um “ente” como meio de comunicação, seja ele analógico ou digital (outra confusão é dar categoria ontológica ao analógico) significa que ele está restrito a ser apenas “um meio” de comunicação, assim ele torna a mensagem codificada em um sinal, por exemplo uma onda acústica analógica (radio fm por exemplo) ou um sinal codificado em zeros e uns, neste caso digital, ambos não podem ser interpretados como “morada do ser”, mas apenas código, isto é, algo mais propício ao ente do que ao ser.
O sinal com vista a diminuição do ruído e autenticidade da mensagem que foi codificada não deve ser confundido com a própria mensagem já que ela provém do Ser e carrega em si não uma lógica, mas uma onto-lógica, ou seja, algo originariamente do Ser.
É nesta ontologia que podemos entender o significado de diálogo, mesmo entre mensagens opostas logicamente, já que ontologicamente elas podem compartilhar uma fusão de horizontes e podem a partir daí criar um método, desenvolvido por Heidegger e formalizado por Hans-Georg Gadamer.
A explicação do círculo hermenêutico em Gadamer é expressa como:
“O círculo não deve ser degradado a círculo vicioso, mesmo que este seja tolerado. Nele vela uma possibilidade positiva do conhecimento mais originário, que, evidentemente, só será compreendido de modo adequado quando a interpretação compreender que sua tarefa primeira, constante e última permanece sendo a de não receber de antemão, por meio de uma ‘feliz ideia’ ou por meio de conceitos populares, nem a posição prévia, nem a visão prévia, mas em assegurar o tema científico na elaboração desses conceitos a partir da coisa mesma”. (GADAMER, 1998, p. 401).
Por isto os estudos de Gadamer, intitulado de Hermenêutica Filosófica, perpassam muitos aspectos peculiares de estudos e escritos, com uma contribuição além da própria Filosofia, da Linguística e, de certo modo, da hermenêutica teológica, de onde partiu os trabalhos e estudos de Schleiermacher que falava de “esferas” e “círculos” em seus estudos sobre hermenêutica.
Somente nesta ideia da fusão de horizontes, de ir além do círculo vicioso é que podemos entender um raciocínio inverso ao de um contra todos, e entender a dialogia entre opostos, “quem não está contra nós, é a nosso favor” (Mc 9,40), diz o evangelista ao explicar o mal menor, é melhor cortar a mão ou o pé que o leva a pecar, do que ser condenado com ele.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.