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Arquivo para a ‘Redes Sociais’ Categoria

Violência, manipulação e resistência

04 jun

Edgar Morin pediu em entrevista que diante de uma situação de policrise enfrentemos ela com uma resistência do espírito, a força de caráter, de oposição ao ódio e de oposição a pequenos atos desonestos, mas o mais difícil é a resistência espiritual as narrativas que vão da política a religiosidade.

Esclarecendo como fizemos no post anterior, que ao usar Walter Benjamim que faleceu na década de 40, o que ele citava era sobre a imprensa preocupada com notícias quentes e nem sempre em pensar e digerir com profundidade a “lentidão” como propõe Byung-Chul Han os fatos da realidades, afirma Byung-Chul: “A digitalização põe em movimento o processo que Benjamin, devido à sua época, não podia prever … associa a informação com a imprensa. Á imprensa é um meio de comunicação que segue à narração e ao romance” (Han, pg. 27), lembrando que é a visão romântica que inicia um processo de morte da narração.

Já havíamos citado em posts anterior Karl Kraus (1874-1936), poeta e jornalista austríaco forte opositor da 1ª. guerra mundial, um espírito de resistência da época, alertava as ideias em ebulição nacionalista e militarista, da qual a imprensa era parceira, e via na guerra uma manifestação da loucura coletiva da humanidade.

Em época de vazio espiritual é muito comum o espirito bélico e passional crescer, não faltam espíritos exaltados e sem nenhuma reflexão em todas mídias, a ordem é promover a desordem, a moral é promover o imoral, desta loucura se alimentam espíritos bélicos e doentios, precisam da loucura coletiva para sua loucura da guerra prosperar.

Em um período ainda anterior, o regime da informação [desordenada] afirmava George Büchner (1813-1837), citando por Byung-Chul: “somos marionetes, cujos fios são puxados por poderes desconhecidos; não somos nada, nada nós mesmos” (Han, 2023, pg. 29), agora “os poderes estão se tornando mais sutis e invisíveis,, de modo que não temos mais consciência dele. Nós até confundimos isso com liberdade” (Idem).

A pobreza da experiência da narração, também apontada por Benjamim e citada por Han: “que foi feito de tudo isso ? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas ?” (Han, 2023, pg. 31), é certo não há neutralidade, mas entre duas forças bélicas é possível um poder de resistência que as denunciem.

É como na leitura bíblica os fariseus que querem colocar Jesus em posição favorável ao império romano, para vê-lo como traidor, ou em oposição para enunciá-lo como rebelde.

Em leitura bíblica, dai a Cesar o que é de Cesar (Mc 12,16-17): “ Eles levaram a moeda, e Jesus perguntou: “De quem é a figura e a inscrição que estão nessa moeda?” Eles responderam: “De César”. Então Jesus disse: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. E eles ficaram admirados com Jesus, pois não era um ato aliado e sim mostrar de que lado está o poder e de que lado estão os homens pacíficos e que querem de fato o bem comum de todos.

Depois de inúmeras alianças com os fariseus, no ano 70 d.C. o império Romano destruiu o segundo templo judaico e cuja reconstrução sonham até o dia de hoje, ambos perderam, também o império romano caiu no ano de 476 ao líder germano Odoacro (na foto os visigodos saqueando Roma), os bárbaros já haviam minado o poder político, financeiro e militar do Império.

HAN, B.C. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.

 

Narrativas, guerras e perigos

03 jun

Em um dos recentes ensaios de Byung-Chul Han, ao mesmo tempo que o autor lembra Hyppolyte de Villemessant, fundador do jornal francês Fígaro e de Walter Benjamin ensaísta e filósofo que faleceu na década de 40, o autor não deixa de associar a narrativa moderna associada as novas mídias, ao storytelling chamando de storyselling (produto para venda).

Assim ao invés de provocar uma reflexão sobre os grandes problemas da atualidade, entre eles a escalada das guerras, mas o problema é antigo: “o leitor do jornal moderno pula de uma notícia para à outra, em vezes de deixar seu olhar vaguear à distância, e demorar-se ali. O olhar longo, lento e demorado se perdeu” (Han, 2023, p. 17), ou seja, não há reflexão.

Assim trata-se de criar uma narrativa favorável a esta ou aquela visão ideológica, pouco importa a lógica e a humanidade, mesmo diante de tragédias estamos mais ocupados (não todos felizmente) em criar uma narrativa para justificar determinada posição do que para defender um princípio humanitário, há esta ou aquela guerra, mas todas matam inocentes, todas como disse Eduardo Galeano escondem desejos de poder e de exploração sobre a nação a ser dominada, mas grandes impérios sucumbiram apesar de toda a prepotência e genocídios.

O recrudescimento da guerra da Ucrânia, as ameaças ao último reduto de refugiados palestinos, as constantes ameaças a Taiwan, além de incursões na África e agora até a América do Sul, a Venezuela volta a ameaçar a Guiana com intenso movimento de tropas e as provocações entre os EUA e o Irã incendiam espíritos bélicos e até pessoas boas, mas inocentes, embarcam nestas narrativas, não há outro interesse nas guerras: saques, mortes de inocentes e desumanidades.

Os encontros entre nações no Brasil, na Europa e as tentativas de sensibilizar governos para os perigos desta escalada bélica não faltam no mundo todo, porém esbarram em narrativas parciais e partidárias, poucos são as mentes que se sensibilizam para o perigo grave e civilizatório desta escalada, em todo mundo o armamento é a única resposta que parece tocar os governantes, e assim crescem as narrativas de “atos heroicos” de fatos bélicos em todo mundo que deviam envergonham aqueles que invocam princípios humanitários, sendo a ONU as guerras e problemas ambientais levaram a fome mais de 700 milhões de pessoas.

Até mesmo para uma narração bíblica ou histórica, onde pretende-se construir um “todo” narrativo, há uma chamada para o humanitarismo, ao Caim matar o irmão Abel, a pergunta divina é “onde está teu irmão?” (Genesis 4,9)  e a narração sugerida por Byung-Chul Han é a do rei egípcio Psammenit que foi capturado pelo rei persa Cambises, e após a derrota faz o rei se humilhar ao ver sua filha transformada em escrava e o filho sendo levado para ser executado (Han, pg. 21), porém o rei egípcio só sentirá ao ver um servo idoso e frágil entre os prisioneiros e “bateu em sua cabeça com os punhos e expressou profunda tristeza” (pg. 22), assim a narração, diz Han, “dispensa qualquer explicação” (Han, pg. 22).

Se formos capazes de reflexões longas, lentas e demoradas não é difícil entender o perigo da escalada das guerras, das pessoas simples como o serviço de Psammenit que sofrem e morrem por questões que mal compreendem direito, e que as narrativas não explicam, apenas tentam justificar o injustificável: a morte, a pilhéria e a mentira.

Como afirmar o filósofo Morin, é preciso uma resistência do espírito, estamos aos poucos perdendo o sentido de amor, esperança e solidariedade e se lermos e investigarmos as notícias e fatos das guerras veremos que não houve nada nelas que não fossem grandes genocídios, roubos e situações de fome e miséria, é preciso resistir ao ódio e a violência.

HAN, B.C. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.

 

A narrativa e seu ocaso

31 mai

O pensamento moderno carece de um modelo para o Todo, diria que carece até mesmo de um pensamento sistemática, Peter Sloterdijk chega a afirmar que não é um tempo próprio para o pensar, é um tempo de trendings ditadas por hashtags, Stories, blogs e reels (mecanismos de difusão em massa com uso da mídia social).

Byung-Chul Han afirma que apesar do “uso inflacionário de narrativas revela uma crise da narrativa”, paradoxal, porém “há um vácuo narrativa que se manifesta como um vazio de sentido e como desorientação” (Han, pg. 9), antes as narrações nos ancoravam: “nos atribuíam um lugar e transformavam o ser-no-mundo em um estar-em-casa, dando à vida significado, apoio e orientação, isto é a própria vida era um narrar …” (idem, pg. 9), é ao mesmo tempo a desterritorialização e o desenraizamento.

Porém o próprio Byung-Chul deixa escapar, através da leitura de O narrador de Walter Benjamin (falecido em 1940) que isto é anterior as novas mídias, cita-o como “o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre os acontecimentos próximos” (Han, p. 17 citando-o), o leitor pula de uma notícia a outra, não se demora ali, “o olhar longo, lento e demorado se perdeu. “(pg. 17).

Ainda citando Walter Benjamin, diferencia a informação mais claramente o que é conhecimento: “a informação só tem valor no instante em que é nova. Ela só vive nesse instante, precisa entregar-se inteiramente a ele e, sem perda de tempo, tem que se explicar nele” (Han, pg. 18), curiosamente um pensamento anterior a década de 40.

Vai adentrar ao conceito de informação, tão caro em certas áreas como a Ciência da Informação, dizendo que ela [hoje] é “o meio do repórter, que vasculha o mundo em busca de novidades” (pg. 19), não há a necessária distância do fato que o digere e o torna conhecimento, “as informações retidas, isto é, as explicações evitadas, aumentam a tensão narrativa” (pg. 19).

A crise da narrativa, assim não se deve as novas mídias que as potencializaram, mas ao fato “de que o mundo está inundado de informações. O espírito da narração está sendo sufocado pela enxurrada de informações” (pg. 20), mas o que é então a narração ? Han citando Walter Benjamin invoca Heródoto, narrando a derrota do rei egípcio Psamenit ao rei persa Cambises, após sua derrota.

O rei persa humilha-o fazendo ver a filha tornando-se criada e o filho sendo executado, mas o rei Egípcio permaneceu imóvel olhando para o chão, porém quando viu seus escravos como prisioneiros, “bateu em sua cabeça com os punhos e expressou profunda tristeza” (pg. 22),  pois ao se lamentar pelos servos “destroem a tensão narrativa” (pg. 22).

Cita que para Benjamin, o primeiro sinal do declínio da narração é o surgimento do romance no início da época moderna (pg. 23), com sua condição de experiência e sabedoria a narração sabe aconselhar “sobre a vida” (pg. 24), a comunidade narrativa é uma “comunidade de ouvintes atentos” (pg. 25), há nela uma escuta cuidadosa.

As narrativas políticas e ideológicas modernas estão atrás de fatos curiosos, pitorescos e picantes, não há nela nada de sabedoria, move o público pelo impacto e pela pressa da informação “quente” e resumida, não há narração, não há escuta atenta e quando há é pelo êxtase ou pelo espetáculo promovido, é retirada do contexto de uma narração.

Aqueles que ainda existem em legalismos e moralismo, contraditoriamente com o cotidiano que vivem, presente na narrativa religiosa moderna, deveriam lembrar de fatos como o não julgamento da mulher adultera (que devia ser apedrejada pelo costume judaico da época) e Jesus “não a julga” (João 8,3), o testemunho do pecador que senta-se ao fundo enquanto o fariseu senta-se a frente e se sente orgulhoso porque “porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros” (Lucas 18,11-13), e ainda o desafio de Jesus ao curar um homem da mão seca em dia de sábado (Mc 2,4): “E perguntou-lhes: “É permitido no sábado fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou deixá-la morrer?” Mas eles nada disseram”, a narrativa bíblica sempre faz deste distanciamento um modo de pensar e repensar valores, não é o maniqueísmo e o moralismo moderno.

Também são narrações as históricas de piratas e as histórias impressionantes dos Vikings, anteriores ao período das navegações e do mercantilismo e ainda dos paraísos fiscais em ilhas espalhadas por todo o globo, com a complacência de “estados legais e morais”, onde se depositam o dinheiro público roubado das nações e dos próprios povos por políticos.

Han, Byung-Chul. A crise da narração, trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.

 

Renuncia, economia e alegria

28 mai

Byung-Chul teoriza que apesar da diferença entre Derridá e Heidegger (veja nosso post anterior) há uma afinidade estrutural na visão de luto dos dois, está caracteriza pela renuncia da autonomia do sujeito em Derrida: “Por mais narcisista que nossa especulação subjetiva siga sendo, ela não pode mais se fechar a esse olhar, diante do qual nós mesmos nos mostramos no momento em que o convertemos em nosso luto ou podemos desistir dele [faire de lui notre dueil], fazendo nosso luto, fazendo de nós mesmos o luto por nós mesmos, quero dizer, luto pela perda de nossa autonomia, por tudo que nos fez a nós mesmos a medida de nós mesmos” (Han, p. 430 citando o texto de Derridá “Krafter der Trauer”, fortalecedor da dor), isto é, ambos tem em comum uma visão de renuncia a autonomia do sujeito, o “eu” do idealismo.

Aqui o importante é não deixar o luto trabalhar (lembremos o conceito já visto nos posts do “luto do trabalho”) ele é substituído em Derridá por um jogo do luto: “contudo quanto mais alegre a alegria tanto mais pura a tristeza que nela dorme. Quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria …” (Han, pg. 430-431), mas o luto de Heidegger, explica Han, não mata a morte, tentar mata-la resulta em algo ainda pior: “o querer ressuscitar, ultrapassar violenta e ativamente o limite da morte só os arrastaria (os deuses) para uma proximidade falsa e não divina e traria a morte em vez nossa vida” (Han, pg. 431-432 citando Heidegger).

Heidegger explica que é “não é um sintoma que posa ser eliminado pela contabilidade psicoeconômica. Ele não tem um traço deficitário que implique o trabalho (de luto).”.

Este “retirado” ou “poupado” para o qual bate o coração “santo e enlutado” de Heidegger não é submetido à economia, este “poupado” não se pode gastar nem capitalizar, é portanto aquele  que está e caracteriza a renúncia, Han não exemplifica, mas podemos pensar em ajuda humanitária em desastres e guerras, já que vai caracterizar a identidade de renúncia e agradecimento como concebível fora da economia, usando termos heideggerianos “suportar pesarosamente a necessidade de renunciar” e promete a “impensável doação”.

Diz uma frase profunda e sábia de Heidegger, a renúncia é a “forma mais elevada de posse”, parece contrário, mas só temos de fato aquilo que podemos dar pois do contrário é mercadoria de troca, e mais ainda renúncia se torna agradecimento e “dever de agradecimento”, esta dor aumenta aprofundando se torna alegria: “quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria que nela repousa”. (pg. 433), mas não se torna nem sublimação, que nos obriga “trabalhar”, pois é a “inibição de todo rendimento” e a “consciência do vazio e da pobreza do mundo”.

Elogio da miséria alguém poderia pensar, não é um elogio a alegria moderada e contínua, diferente da euforia e êxtase que é seguida de depressão, “a falta do divino acarreta o luto, remonta a um obstinado esquecimento do ser, no qual Heidegger inscreve o divino” (Han, p. 433-434), mas certamente não é ainda o divino bíblico, mas cerca-o.

A recompensa e a alegria do Divino inscrito no ser, é aquela que renuncia e doa, mas sabe que haverá recompensa de receber cem vezes mais não em bens, mas em alegria.

HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

A diferença, as guerras e as calamidades

27 mai

Toda leitura nos posts recentes sobre “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger” de Byung Chul Han não é mero exercício filosófico, até porque a filosofia para ter retornado aos sofismas de modo mais sofisticado: a narrativa, é porque a ausência de percepção da dor exacerba a dificuldade em entender a dor do outro e a diferença.

Escreveu sobre a dialética de Hegel: “Heidegger usa a palavra ´diferir` para descrever o movimento trágico-dialético da diferença”, e abre aspas: “Mas, na verdade, em Hegel o ente não existe mais, pois todo ente se dissolveu no movimento do conceito absoluto” (pg. 414), e acrescentou: “A “diferença como diferença”, o “diferir”, é o ponto cego da metafísica” (pg. 415), e assim: “A différance é mais contenciosa do que a diferença de Hegel” (pg. 415) e isto explica como o pensamento idealista é mais aferrado a ressaltar sua diferença política do que capaz de entender o verdadeiro significado de tratar o diferente, em especial os excluídos, os inocentes nas guerras, e as dores de uma trágica enchente se torna mais um jogo no campo do poder, que atingir o coração daqueles que podem socorrer as pessoas atingidas.

A diferença “não se articula em “contradições” que existem no espaço da identidade, mas trabalham para manifestações da identidade” (pg. 415), assim trabalham a dor.

Byung-Chul opõe Hegel além de Heidegger também a Derridá, “a diffferance mantém a discórdia […] sem jamais formar uma terceira expressão”, “mantem o contencioso, “sem jamais dar motivo a uma solução nos moldes de da dialética especulativa” (Han, pg. 416 citando Derridá), e diz “o puro jogo da diferença não é nada, nem sequer se relaciona com seu próprio incêndio” (pg. 417), veja o destaque de Han para a cultura ocidental do “relacionamento”, mas a sagacidade do alemão-coreano chega lá: “A subjetividade se produz sempre em um movimento de ocidentalização” (pg. 417).

A busca da “dialética especulativa” é por uma síntese ontoteológica ou ontoteleológica, diria mais a última já que deus de Hegel é inventado, aquele de um absoluto abstrato, mas não distante do Deus triunfante do maniqueísmo, expresso não só nas justificativas de guerras e na différance, o deus ocidentalizado também julga, condena e exclui e faz das leituras sagradas um jogo de conveniência, o luto, a dor e o sofrimento não tem espaço, tudo é poder, alegria e consumo, o reino na mesmice proclamando differance.

“Em torno de que gira a dor de Derridá?”, pergunta Byung-Chul, “Em torno da falta de um nome sagrado?” (pg. 424), diriam os que sim pois nem mesmo o Absoluto, ou o Todo podem ter uma resposta ontológica, talvez entelógica (no sentido de puro ente), mas o autor aponta seu luto como “provavelmente” como a differance, é banal (Derridá diz banalidade).

É a nosso ver, a incapacidade de luto, de renúncia, de compreensão da dor que nos impede de uma visão completa do todo como sagrado, não nos causa luto as mortes inocentes das guerras, das catástrofes naturais e o respeito das diferenças, sem um Sagrado que referencie estes valores, criamos uma coisa, um ente que o substitua.

Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

O grande sono idealista

21 mai

O sono idealismo foi propor metas a serem alcançadas que se mostraram aos poucos contraditórias e algumas delas são parte fundamental na crise do pensamento atual, nela as razões de estado precedem a vontade popular, mesmo que atue em nome dela, na verdade a concentração de poder parece justa aqueles que julgam ter a palavra final, enfim a razão, para exercerem o poder, isto tem origem medieval, embora difusa.

Ainda que a literatura diferencie “idealistas” de “realistas” isto existe após o paradigma renascentista/seiscentista, onde em “O príncipe” de Maquiavel (1513) fosse entendido que é lícito ao governante todos os meios facultados pela força e pela inteligência, desde que empregados com habilidade e conforme as circunstâncias (MAQUIAVEL, 2001, p. 85), assim despontam e todo mundo e em todas as sociedades atitudes de força consideradas razoáveis quando exercidas pelo Estado.

Também o contratualismo, a partir de Thomas Hobbes, que viveu entre 1588 e 1679, o Estado é a instituição fundamental para regular as relações humanas, dado o caráter da condição natural dos homens que os impele à busca do atendimento de seus desejos de qualquer maneira, a qualquer preço, de forma violenta, egoísta, isto é movido por paixões.

Nas palavras de Hobbes, “se dois homens desejam a mesma coisa […] eles se tornam inimigos”. Todos seriam livres e iguais para buscarem o lucro, a segurança e a reputação, lendo o autor nacional Francisco Welfort, em sua obra Os Clássicos da Política (2006), a igualdade entre os homens, na visão de Hobbes, gera ambição, descontentamento e guerra”, mas foi o idealismo que dividiu o Homem, ou o Ser do ente, como prefere-se na ontologia, em duas metades opostas.

Ainda que o contratualismo tenha o empirismo de Locke (1632-1704), onde o estado deve ser um mediador dos conflitos, interferindo o mínimo possível na vida dos indivíduos, e finalmente Rousseau (1712-1778) que afirma que o homem é bom a sociedade que o corrompe (vejam que há contratualismo de esquerda e de direita).

Voltando ao aspecto ontológico, no sentido heideggeriano: “a batida do coração por aquela “chave mágica” que poderia “rebentar mil cadeados” não seria o traço fundamental” (Han, p. 280), nela não se encontra uma luz rígida e perene, cuja violência e presença desenfreada como causa e senhora pudessem penetrar, explicar e dominar todos os fenômenos” (Han, p. 281) onde há uma referência direta a República de Platão, e Byung-Chul o vê como o primeiro Heidegger.

O segundo Heidegger é aquele que vê a clareira, que “não oferece um cenário fixo com uma cortina constantemente levantada, onde se desenrola o teatro do ente” (Han, p. 283) citando Heidegger, onde ele substitui o paradigma físico da “luz” pela figura da clareira, para “reagir contra os mecanismos violentos daquela luz que permite que tudo se coagule em imagem” (Han, p. 283), embora não haja referencia direta ao iluminismo, é inevitável a esta visão “luminosa” de poder.

A presença evidente é substituída pelo não aparente, que não pode se traduzir como a contraparte de um encontro: “Aqui não há mais ´encontro´, nenhum aparecer para o homem já se fixa previamente e capta o que apareceu” (Han, 284), o mundo das sombras de Platão nunca pareceu tão real quanto nos dias de hoje.

Assim faz sentido tanto “desvelar” como “clareira”, como termos que não são “re-velar” e nem iluminar, são veredas ontológicas onde o Ser “vive”.

 

HAN, Byung-Chul. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Tradução de M. J. Goldwasser. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

 

A Ucrânia pode ser apenas um passo na guerra

20 mai

Crescem temores que o avanço russo no norte da Ucrânia consiga chegar e capturar a cidade de Kharkiv, a segunda maior da Ucrânia e de importância industrial e militar indiscutível, o cenário pode ser mais grave do que se pensa.

Não há conexão ideológica, mas uma análise tática da segunda guerra, a Alemanha antes de invadir a Polônia, anexou a Austria, país de muitas tradições comuns e com uma estrutura linguística muito próxima, o evento conhecido como Anschluss (conexão ou anexação) ocorreu de 11 a 13 de maio de 1938, a invasão da Polônia ocorreu em 1º. de  E

A base dos conflitos é sempre esta: determinada cultura, etnia ou povo se considera no direito de dominar outros povos devido sua “superioridade” por critérios quaisquer.

Os sinais que a Rússia não pararia aí, estão em vários discursos do Kremlin, recentemente Putin disse que a OTAN “está mexendo com fogo”, e também reivindica a posse das ilhas Svalbart atualmente da Noruega já foi desafiado por Putin que declarou: “O direito da Rússia sobre Svalbard não pode ser desafiado!”.

Do lado da OTAN, a França já havia declarado a possibilidade de um confronto direto da OTAN, as ajudas financeiras continuam sendo enviadas, recentemente a Estônia declarou que poderá enviar tropas de “retaguarda” para auxiliar a Ucrânia, porém o Ministro da Defesa do país, Hanno Pevkur, disse no dia 14 de maio ao meio de comunicação europeu ERR que tais conversações “não chegaram a lado nenhum” em Tallin, e que a Estônia não tomaria uma decisão sozinha, porém isto revela que houve “conversações”.

Os EUA continuam enviando ajudas milionárias a Ucrânia, porém com a proximidade das eleições isto enfraquece o governo Biden, as eleições acontecerão no início de novembro.

Outra notícia preocupante destes dias é que um helicóptero que transportava o presidente do Irã Ebrahim Raisi e o ministro das Relaçõe Exteriores do país, caiu neste domingo (19) enquanto atravessava uma área montanhosa sob forte neblina ao voltar de uma visita à fronteira do Azerbaijão, a informação teve origem na autoridade iraniana.

Aparentemente o acidente foi devido a neblina, Raisi desde que foi eleito em 2021 é conhecido por repressão violenta a protestos antigovernistas e pressionou as negociações nucleares com as potências mundiais, o Irã é também uma peça importante por sua oposição aos ataques israelenses na região de Gaza, agora num último reduto, que é a região de Rafah.

Sempre há esperança quando as pessoas de solidarizam com o sofrimento, as enchentes no sul despertou o povo brasileiro, porém não podemos parar aí há graves índices de enfermidades além do zika vírus que toma conta do país, sendo a CNN Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) vem alertado para o surto.

 

Razão e divisão

16 mai

Como dito no post anterior, o sujeito do idealismo “não tem medo”, afirma Byung-Chul “neste espaço sem sombras de transparência, evacuado pelo raio da certeza, não há surpresa nem medo” (pg. 263), o autor relê também Descartes que “projetou a partir de sua necessidade insaciável de segurança é estéril, fantasmagórico e inabitável” (pg. 263) e essa “compulsão pela segurança” conduz ao obscuro, e mesmo a correção de Kant que se salva ao “repelir” e “reinterpretar” a imaginação (pg. 266).

Mas lembra Byung-Chul que Kant na sua Fundamentação da Metafísica olhou para a dimensão desconhecida da existência humana, o “desconhecido inquietante” embora esteja preso na “dedução subjetiva” que conduz ao obscuro, e reconhece “que nos sintoniza com os terrores do abismo” (Han citando Kant, pg. 267) e que no “horror interior” “que todo mistério carrega consigo” (pg. 267) e que é nesta “nudez da angústia” que transforma a vulnerabilidade do sujeito.

Em Ser e tempo, explica Han, “a angústia não leva o ser-aí à proximidade da amplitude extática que vê no Heidegger tardio”, nem a proximidade da “alienação” a partir “da coragem para o abismo”, e conclui Han: “a angústia arranca a existência da ordem doméstica da “completude relacional”, levando-a para a “região”, para o “mundo como tal”, mas em seu centro reside o si mesmo” e aqui explica a angústia: “A angústia só conduz a hipertrofia do si mesmo” (Han, pg. 268).

Heidegger fez uma descoberta ontológica essencial, onde está a ruptura do sujeito “o ser-aí é o que chama e o chamado a um só tempo […] o que chama é o ser-aí que […] se angustia por seu poder ser” (Han citando Heidegger, pg. 269), nisto acontece “um solilóquio de negociador”, mas é conduzida entre dois eus, ou seja, entre o si mesmo impessoal e o seu autêntico” (pg. 269), esta divisão ocorre tanto no interior do ser-aí como na reação com os outros, “por angústia perante a voz do outro, o ser-aí tapa os ouvidos” (pg. 269).

Assim esta divisão ou desunidade surge no interior do homem, e é nesta “estranhez do estar em suspenso, em que o ser-aí pode se aproximar de uma crescente carência de fundamento” (Han citando Heidegger, pg. 270), é “na angústia que ocorre certa epoché”, a suspensão de juízo fenomenológica de Husserl professor de Heidegger, nela a rede de referências, tecida pela finalidade do “para quê”, a totalidade relaciona e sua implicação intersubjetiva desmoronam, em minha conclusão aqui, nela nasce e vive a unidade.

Esta conclusão que não é de Heidegger nem de Byung-Chul é possível porque escreve este último: “elas são de certa forma “postas entre parênteses”, o Impessoal “neutro” e sua “ditadura” são “inibidos”, este “desmoronamento do mundo” (Han, pg. 270), reduzem o “ser-aí a uma esfera solipsista do ser, esfera do “puro ´fato de que …” da própria e isolada condição do estar lançado” (pg. 270), é “o resíduo do epoché, o eu autêntico, marca o centro de gravidade do ´aí, do qual o mundo que escorreu deve ser recuperado do nada ou deve ser preenchido explicitamente com a “estabilidade do eu” (Han, pg. 271).

Esta divisão fruto da razão impede uma verdadeira ontologia, veja que Heidegger chega a usar a palavra “ditadura” da certeza, do si mesmo, do império da pura razão onde não há espaço para o enigma, a dúvida, o mistério e a completude do ser, aí ele fica reduzido a “angústia”, parte da vida, mas na qual o ser-aí não deve parar, nem “desmoronar”.

A razão ou a crítica da razão pura, não se esgotam em si mesmas, nela reside a angústia, elas precisam da incerteza, do mistério e da vida plena “interior”.

HAN, B. C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger (Heidegger’s heart: on the concept of affective tonality in Martin Heidegger). Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

Resistência do espírito: superar a angústia

15 mai

Apesar de ser escrito bem antes da crise atual, a leitura de Byung-Chul de Heidegger mostra um extraordinário conhecimento da atualidade e prova que de fato esta crise nasceu de uma profunda crise do pensamento, o capítulo central sobre “O coração de Heidegger” aponta para angústia e terror, falando antecipadamente da policrise atual.

Começa por aquilo é o foco central atual: “um princípio básico da economia é a segurança” (pg. 257), e como não poderia deixar de ser vai ao coração do pensamento atual que é o idealismo e seu ideólogo poli-ideológico Hegel, citando Bataille: “Hegel imagino, tocou o extremo. Ele ainda era jovem e pensava estar ficando louco. Eu até imagino que inventou o sistema para escapar. […] Por fim, Hegel regressa ao abismo visto para anulá-lo. O sistema é a anulação” (Bataille, apud Han, pg. 258).

“O sujeito hegeliano anseia pela posição de poder do autor consciente, que não é perturbado por nenhuma incerteza, nem ameaçado por nenhum destino” (pg. 260), a ideia de esperança e resistência espiritual (seu espírito é o gosto pelo poder), “não se curva pela presença rígida e indeclinável”, “a negatividade é bem-vinda como fermento da verdade”  (pg. 261) e assim trata-se mais de destruí-la do que afirma-lo como esperança e visão de futuro.

Nele o negativo se articula como o “sentimento de violência” (Han citando Hegel), que arrasta a consciência de uma morte para a outra (Han, 261), e a guerra é inevitável.

Não foram os donos do poder e sua articulação imperial que criaram sentimentos de guerra, a ideia de violência está inerente ao pensamento idealista, nela a “ interioridade subjetiva, que lhe sugere um conhecimento absoluto” (pg. 260), Hegel encontra a salvação no sistema, “mata” a “suplica insistente” e torna-se o “homem moderno” (pg. 261).

Aparentemente o “sujeito não tem medo”, “o enigma dá lugar a regra” assim não há lugar para o mistério, para o divino e para a vida eterna, estar no mundo significa estar sobre as regras da violência, da indiferença e da morte.

A resistência da esperança é estar na convivência com a realidade idealista, tendo uma ascese verdadeira que almeja a alegria verdadeira.

Han, B.C.  Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

A um fio de um desastre civilizatório

13 mai

Apesar dos imensos estragos já causados pelas guerras, destacamos aquelas que envolvem diretamente as potencias imperialistas, mas não deixamos de olhar “guerras menores”, o tom do discurso das forças envolvidas, em especial, da Otan e da Rússia, aumentou na semana passada.

A Rússia se diz pronta para um confronto direto com a OTAN, acusando-a de já estar presente na Ucrânia, o que praticamente foi confirmado pelo primeiro ministro da Polônia Donald Tusk, ao declarar: “A Otan hoje está ajudando o tanto quanto pode. Sem a ajuda da Otan, a Ucrânia não seria capaz de se defender por tanto tempo”, e acrescentou aos jornalistas: “Bem, e há algumas tropas lá [na Ucrânia], quero dizer, soldados. Existem alguns soldados lá, observadores, engenheiros. Eles estão ajudando-os”, o que é uma confirmação.

A Rússia realizou recentemente exercícios militares com armas nucleares, Rússia e EUA possuem juntas mais de 10.600 das ogivas nucleares do mundo, das 12.100 existentes, seguidos por China, França e Reino Unido, uma provocação deste tamanho é perigosa.

No Oriente Médio, Israel ameaça invadir Rafah (na foto acima), última fronteira dos refugiados palestinos, com mais de 1 milhão de pessoas ali e pode-se dizer que agora metade da população de Gaza está lá, diversas forças políticas e diplomáticas tentam dissuadir Israel de realizar a invasão.

As conversas diplomáticas para um cessar fogo acontecem a meses sem nenhum resultado, Egito e os EUA estão à frente de forçar um acordo, ainda que tropas americanas apoiem Israel, o desastre humanitário seria imenso uma vez que atinge em cheio os refugiados.

Há diálogos, pronunciamentos de forças pela paz, entretanto aquelas que se posicionam de modo unilateral devem entender que aumentam a força do conflito e não há neutralidade, sim não há neutralidade no sentido humanitário (sempre defender a vida), mas a política é polarizadora.

Edgar Morin fala em resistência do espírito, outros autores falam de trégua, postamos na semana passada sobre a “tonalidade do afeto”, aquele que não é nem plural, nem polifônica.