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Arquivo para a ‘SocioCibercultura’ Categoria

Razão e divisão

16 mai

Como dito no post anterior, o sujeito do idealismo “não tem medo”, afirma Byung-Chul “neste espaço sem sombras de transparência, evacuado pelo raio da certeza, não há surpresa nem medo” (pg. 263), o autor relê também Descartes que “projetou a partir de sua necessidade insaciável de segurança é estéril, fantasmagórico e inabitável” (pg. 263) e essa “compulsão pela segurança” conduz ao obscuro, e mesmo a correção de Kant que se salva ao “repelir” e “reinterpretar” a imaginação (pg. 266).

Mas lembra Byung-Chul que Kant na sua Fundamentação da Metafísica olhou para a dimensão desconhecida da existência humana, o “desconhecido inquietante” embora esteja preso na “dedução subjetiva” que conduz ao obscuro, e reconhece “que nos sintoniza com os terrores do abismo” (Han citando Kant, pg. 267) e que no “horror interior” “que todo mistério carrega consigo” (pg. 267) e que é nesta “nudez da angústia” que transforma a vulnerabilidade do sujeito.

Em Ser e tempo, explica Han, “a angústia não leva o ser-aí à proximidade da amplitude extática que vê no Heidegger tardio”, nem a proximidade da “alienação” a partir “da coragem para o abismo”, e conclui Han: “a angústia arranca a existência da ordem doméstica da “completude relacional”, levando-a para a “região”, para o “mundo como tal”, mas em seu centro reside o si mesmo” e aqui explica a angústia: “A angústia só conduz a hipertrofia do si mesmo” (Han, pg. 268).

Heidegger fez uma descoberta ontológica essencial, onde está a ruptura do sujeito “o ser-aí é o que chama e o chamado a um só tempo […] o que chama é o ser-aí que […] se angustia por seu poder ser” (Han citando Heidegger, pg. 269), nisto acontece “um solilóquio de negociador”, mas é conduzida entre dois eus, ou seja, entre o si mesmo impessoal e o seu autêntico” (pg. 269), esta divisão ocorre tanto no interior do ser-aí como na reação com os outros, “por angústia perante a voz do outro, o ser-aí tapa os ouvidos” (pg. 269).

Assim esta divisão ou desunidade surge no interior do homem, e é nesta “estranhez do estar em suspenso, em que o ser-aí pode se aproximar de uma crescente carência de fundamento” (Han citando Heidegger, pg. 270), é “na angústia que ocorre certa epoché”, a suspensão de juízo fenomenológica de Husserl professor de Heidegger, nela a rede de referências, tecida pela finalidade do “para quê”, a totalidade relaciona e sua implicação intersubjetiva desmoronam, em minha conclusão aqui, nela nasce e vive a unidade.

Esta conclusão que não é de Heidegger nem de Byung-Chul é possível porque escreve este último: “elas são de certa forma “postas entre parênteses”, o Impessoal “neutro” e sua “ditadura” são “inibidos”, este “desmoronamento do mundo” (Han, pg. 270), reduzem o “ser-aí a uma esfera solipsista do ser, esfera do “puro ´fato de que …” da própria e isolada condição do estar lançado” (pg. 270), é “o resíduo do epoché, o eu autêntico, marca o centro de gravidade do ´aí, do qual o mundo que escorreu deve ser recuperado do nada ou deve ser preenchido explicitamente com a “estabilidade do eu” (Han, pg. 271).

Esta divisão fruto da razão impede uma verdadeira ontologia, veja que Heidegger chega a usar a palavra “ditadura” da certeza, do si mesmo, do império da pura razão onde não há espaço para o enigma, a dúvida, o mistério e a completude do ser, aí ele fica reduzido a “angústia”, parte da vida, mas na qual o ser-aí não deve parar, nem “desmoronar”.

A razão ou a crítica da razão pura, não se esgotam em si mesmas, nela reside a angústia, elas precisam da incerteza, do mistério e da vida plena “interior”.

HAN, B. C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger (Heidegger’s heart: on the concept of affective tonality in Martin Heidegger). Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

Resistência do espírito: superar a angústia

15 mai

Apesar de ser escrito bem antes da crise atual, a leitura de Byung-Chul de Heidegger mostra um extraordinário conhecimento da atualidade e prova que de fato esta crise nasceu de uma profunda crise do pensamento, o capítulo central sobre “O coração de Heidegger” aponta para angústia e terror, falando antecipadamente da policrise atual.

Começa por aquilo é o foco central atual: “um princípio básico da economia é a segurança” (pg. 257), e como não poderia deixar de ser vai ao coração do pensamento atual que é o idealismo e seu ideólogo poli-ideológico Hegel, citando Bataille: “Hegel imagino, tocou o extremo. Ele ainda era jovem e pensava estar ficando louco. Eu até imagino que inventou o sistema para escapar. […] Por fim, Hegel regressa ao abismo visto para anulá-lo. O sistema é a anulação” (Bataille, apud Han, pg. 258).

“O sujeito hegeliano anseia pela posição de poder do autor consciente, que não é perturbado por nenhuma incerteza, nem ameaçado por nenhum destino” (pg. 260), a ideia de esperança e resistência espiritual (seu espírito é o gosto pelo poder), “não se curva pela presença rígida e indeclinável”, “a negatividade é bem-vinda como fermento da verdade”  (pg. 261) e assim trata-se mais de destruí-la do que afirma-lo como esperança e visão de futuro.

Nele o negativo se articula como o “sentimento de violência” (Han citando Hegel), que arrasta a consciência de uma morte para a outra (Han, 261), e a guerra é inevitável.

Não foram os donos do poder e sua articulação imperial que criaram sentimentos de guerra, a ideia de violência está inerente ao pensamento idealista, nela a “ interioridade subjetiva, que lhe sugere um conhecimento absoluto” (pg. 260), Hegel encontra a salvação no sistema, “mata” a “suplica insistente” e torna-se o “homem moderno” (pg. 261).

Aparentemente o “sujeito não tem medo”, “o enigma dá lugar a regra” assim não há lugar para o mistério, para o divino e para a vida eterna, estar no mundo significa estar sobre as regras da violência, da indiferença e da morte.

A resistência da esperança é estar na convivência com a realidade idealista, tendo uma ascese verdadeira que almeja a alegria verdadeira.

Han, B.C.  Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

Ascese e ascensão social

14 mai

Está ligada a ideia de ascensão o crescimento na escala social, porém este tipo de ascensão não se refere a ascese, aquela que moral e virtualmente (de virtude) alguém se eleva.

A ideia de acesso aos bens sociais e a visibilidade pública, também não está ligada a ascese, vivemos em tempo que a notoriedade social através dos modernos recursos de mídias digitais, a propaganda e a indústria cultural existem desde o início do século passado, não indica uma ascese espiritual e moral, sendo muitas vezes exatamente o oposto.

Os tempos da educação para a sociabilidade, a empatia e o bem-comum ficaram distantes, agora está em um cenário confuso onde se mistura visibilidade pública com sociabilidade, empatia com mitologia moderna, não há um espaço para profundidade do pensar, ou para espantar-se diante de fatos sombrios, tudo parece tornar-se meme e motivo de má política e má práticas de sociabilizada de polarização muitas vezes justificada apenas para o “nós contra eles”.

É quase impossível falar em ascese num universo tão estranho e exótico, para não dizer algo mais grave, não se trata de voltar a histórias infantis com lições de moral ou estórias fantasiosas de bondade e inocência de um mundo difícil e competitivo, isto também é inócuo, porém se não nos elevamos espiritualmente nos tornamos cada dia piores e menos humanizados, uma ascese que nos leve a um nível mais elevado civilizatória não é apenas desejável como é tornar o processo civilizatório possível e mais frutuoso para todos.

Ao falar de uma ascese desespiritualizada, Peter Sloterdijk ressalva a “sociedade de exercícios” que está mais destinada a tensão e a competição do que ao lazer e ao progresso humano e social para todos, também Edgar Morin quando fala de resistência do espírito, fala sobre uma postura de esperança contrária a policrise social que vivemos.

A leitura que estamos fazendo do Heidegger lido por Byung-Chul Han, penetra neste espírito: “O homem moderno”, o consumidor do ente, cambaleia por causa de sua “embriaguez de vivências” (pg. 243) de uma coisa inusual para outra, falta-lhe o olhar ascético do “espanto” (pg. 244), ou seja, não adquirir qualquer inusual como fato.

Este olhar de espanto que vem desde a filosofia de Aristóteles, capaz de prender nossa atenção no “espaço não pisado do entre” (pg. 246) que é capaz de rever o “meio” (na foto Filósofo em Meditação de Rembrandt, 1632).

Existe nisto um “sofrer” que é um aprisionamento do “não saber como entrar ou sair” (pg. 247) e em tal sofrimento há correspondência com o que deve ser captado, o que deve ser aprendido onde “o pensar é um captar que sofre” trabalhado por Heidegger para permitir ao homem um pensar no entre dos entes, aquilo que leva a tonalidade afetiva.

Ao criticar também o espanto da criança, que chama de primeiro começo, enfatiza que ele não está nesta casa primeira: “a respiração sustida pode significar o a priori trans- epocal do pensar”, (pg. 249).

Byung-Chul lembra que Lévinas dedica sua “obra principal” (assim a considera): autrement qu´etre ou au-delà de essence (além do ser ou além da essência) ao espanto, que liberta o aprisionamento do eu ao em-si (categoria cara a Hegel), que põe o eu em “uma passividade que é mais passiva que a passividade da matéria” (pg. 250, citando Lévinas).

Embora reconheça que há este espanto no pós-modernismo, lembra Lyotard (Das inhumane, pg. 163) citando Boileau em “O sublime e a vanguarda”, o “sublime é, estritamente falando, nada que possa ser provado ou mostrado, mas algo maravilhoso que agarra, que sacode e que mexe com a sensibilidade”.

Finaliza este capítulo, que chamou de “A respiração sustida”, que “o espanto impõe silêncio ao sujeito e ao seu trabalho de síntese”, e conclui: “É um sopro de pensamento que persevera antes da síntese, sem parar de pensar” (pg. 252).

Han, B. C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

A um fio de um desastre civilizatório

13 mai

Apesar dos imensos estragos já causados pelas guerras, destacamos aquelas que envolvem diretamente as potencias imperialistas, mas não deixamos de olhar “guerras menores”, o tom do discurso das forças envolvidas, em especial, da Otan e da Rússia, aumentou na semana passada.

A Rússia se diz pronta para um confronto direto com a OTAN, acusando-a de já estar presente na Ucrânia, o que praticamente foi confirmado pelo primeiro ministro da Polônia Donald Tusk, ao declarar: “A Otan hoje está ajudando o tanto quanto pode. Sem a ajuda da Otan, a Ucrânia não seria capaz de se defender por tanto tempo”, e acrescentou aos jornalistas: “Bem, e há algumas tropas lá [na Ucrânia], quero dizer, soldados. Existem alguns soldados lá, observadores, engenheiros. Eles estão ajudando-os”, o que é uma confirmação.

A Rússia realizou recentemente exercícios militares com armas nucleares, Rússia e EUA possuem juntas mais de 10.600 das ogivas nucleares do mundo, das 12.100 existentes, seguidos por China, França e Reino Unido, uma provocação deste tamanho é perigosa.

No Oriente Médio, Israel ameaça invadir Rafah (na foto acima), última fronteira dos refugiados palestinos, com mais de 1 milhão de pessoas ali e pode-se dizer que agora metade da população de Gaza está lá, diversas forças políticas e diplomáticas tentam dissuadir Israel de realizar a invasão.

As conversas diplomáticas para um cessar fogo acontecem a meses sem nenhum resultado, Egito e os EUA estão à frente de forçar um acordo, ainda que tropas americanas apoiem Israel, o desastre humanitário seria imenso uma vez que atinge em cheio os refugiados.

Há diálogos, pronunciamentos de forças pela paz, entretanto aquelas que se posicionam de modo unilateral devem entender que aumentam a força do conflito e não há neutralidade, sim não há neutralidade no sentido humanitário (sempre defender a vida), mas a política é polarizadora.

Edgar Morin fala em resistência do espírito, outros autores falam de trégua, postamos na semana passada sobre a “tonalidade do afeto”, aquele que não é nem plural, nem polifônica.

 

A ascensão e a não-presença

10 mai

A leitura deste livro de Byung-Chul Han, “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva” é diferente dos demais “ensaios” do autor, revela uma primeira incursão no mundo filosófico, longe de ser um tratado, já há conotações de um pensamento original.

Em tempos tão escassos de pensamentos autênticos, estamos sobre o fogo cruzado do novo e velho idealismo Hegeliano, e o autor demonstra isto não pela análise crítica histórica, mas pelo que vai mais no fundo de pensadores como Kant, Hegel, Derridá e seu mestre P. Sloterdijk.

Diria que o ápice, pelo meu víeis de leitura, está na análise de Lévinas, ao citá-lo na página 68: “A ´destruição imaginária de todas as coisas´, a Epoché de Lévinas, não é seguida por uma ausência total do ser” … “contra todos imperativos formais lógicos” (pg. 68), o que lembra o terceiro incluído de Barsarab Nicolescu, em alusão à física quântica, é um novo limiar lógico.

E segue adiante “Não existe mais isto, nem aquilo; não existe ´alguma coisa. Mas a ausência universal é, por sua vez, uma presença, uma presença absolutamente inevitável” (pg. 69 citando novamente Lévinas: “A existência da existência”).

Lévinas chega a sugerir a real experiência deste “Il y a” (ser* em francês, sua língua natal), este nada não indica um substantivo e como tal é um “não algo” (lembra as não coisas de Han), esta presença “fantasmagórica” (Einstein chamou assim o terceiro incluído da física quântica), “o ser permanece como um campo de força … regressando ao seio do mesmo da negação que o afasta, e a todos os graus desta negação” (novamente citando Lévinas, pg. 70).

O potencial sugestivo do “Il y a” é elevado pela dissonância lógica: “A obscuridade – enquanto presença da ausência – não é um conteúdo puramente presente. Não se trata de um ´algo’ que permanece, mas da atmosfera mesma de presença, que certamente pode aparecer muito depois com um conteúdo …” (pg. 70 citando ainda a obra de Lévinas).

A ascensão de Jesus (foto Painel de Azulejos, Portugal), festa mundial nesta semana em muitos países cristãos é até feriado, a luz desta visão ontológica pode revelar uma reformulação teológica, porque na leitura bíblica sua partida e ausência corresponde a vinda de uma terceira pessoa da Trindade: o Espírito Santo.

Assim em João 16,13 se lê: “No entanto, quando o Espírito da verdade vier, Ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos revelará tudo o que está por vir”, e assim desvelará a verdade.

Esta verdade onto-teo-teleo-lógica deve incluir uma lógica trinitária: o Terceiro Incluído.

* ser em gera.

Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

A ontologia e a tonalidade afetiva

09 mai

Como um bom oriental, embora radicado na Alemanha, Byung-Chul Han parte sua análise não da perspectiva objetivista, materialista e substancialista dos autores clássicos da filosofia ocidental, mas na perspectiva daquilo que vai chamar de “tonalidade afetiva” em Heidegger.

Seu livro, diferente de outros que considero ensaios, analisa “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger” (Ed. Vozes, 2023), com esta análise nova, humana e diria até mesmo espiritual do cerne da filosofia ocidental.

Parte de um conceito caro a civilização judaico-cristã, que é o da circuncisão, porém da circuncisão do coração e não do órgão falido (a pele presa no início do pênis), é preciso lembrar que embora órgão masculino ele é emblema do poder, da autoridade e do desejo, foi culturalmente numa cultura bélica.

A parte de sua visão religiosa, ele tem um sentido espiritual para toda a sociedade, contrário ao que Han vai desenvolver que é a circuncisão do coração, aquela que modula e rege o afeto.

Começa por aquilo que é raiz da cultura eurocêntrica, começando pela hipocondria de Kant que confessa em seu texto “Conflito das faculdades”: “por causa de meio peito chato e estreito, que deixa pouco espaço para o movimento do coração e dos pulmões, eu tenho uma predisposição natural para a hipocondria, que em anos anterior beira o tédio da vida” (Han, 2023, pg. 8), e daí desenvolve o “anseio expande o coração, o faz definir e esgota as forças” (pg. 9).

Este anseio dirá não é também indolor para Heidegger, mas de acordo com este autor (foi tese de doutorado de Han), o anseio é a “dor da proximidade da distância”, o feitiço do “sempre-igual”, porém num movimento de sair do em-si existe uma “Dor da costura” com o Outro.

Assim, dirá Han, a “costureira” (Näherin] de Heidegger, “trabalha na proximidade”, é também uma circuncidadora do coração (pg. 10), desenvolve-se convertendo-o “em tímpano hétero- auditivo” (pg. 10), “o coração do ser-aí” palpita no horizonte transcendental, assim segundo Han no Heidegger tardio, “a constrição penetra mais profundamente” e o ser-aí separa-se do ser do aí: Da-Sein (Han, pg. 11).

Assim, “esta circuncisão liberta o coração da interioridade subjetiva” (Han, Idem), e há uma conclusão preliminar surpreendente em Heidegger: “O coação de Heidegger, por outro lado [confronta com Derridá], escuta uma só voz, segue a tonalidade e gravidade do “uno, o único que unifica”, para ele é um “ouvido do seu coração” porém há algo forte de espiritual nisto.

Espiritualmente há uma voz interior que fala aos nossos corações se estão circuncidados.

Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

Pluralidade, polifonia e tonalidade

08 mai

Embora Byung Chul Han em sua leitura de Heidegger e sua tonalidade afetiva, descreva apenas de passagem a democracia plural, ao comentar a “polifonia” que Derrida opondo-se à “totalidade não exclui a tonalidade. A justaposição de notas seria equivalente à monotonia de um coração perturbado, que certamente seria distinto do coração atonal” (Han, 2023, pg. 16).

Para desenvolver melhor a questão do estado e de sua pluralidade, aproxima Heidegger da “arte de viver … limitada onde o mundo começa a se povoar com os corações dos outros, onde não nos encontramos mais na proximidade do estético” (pag. 17).

Vai explorar o conflito dos corações de Hegel que pretendia resolver dialeticamente e não aparece em Heidegger (pg. 18), sua “poética” não se identifica “à política do coração” (idem).

Após o fracasso do sujeito do prazer faustiano (Hegel cita Fausto de Goethe), Hegel ao opor o particular com o universal não se reencontra na “ordem universal”, esta abertura imediata do coração para o universal, a universalização do coração faz que a autoconsciência “enlouqueça” e causa uma colisão frontal entre o universal e o particular que fende a consciência (pg. 18).

Gerar esta “singularidade da consciência, que quer imediatamente universal” resultam em esquizofrenia (pgs. 18-19), é um trecho fundamental de Byung-Chul Han capaz de explicar até mesmo as grandes guerras e o momento bélico mundial.

Ela mostra o que acontece com os corações com o “pulsar do coração” para o universal, que se transforma em “fúria de uma presunção desvairada”, postula “o desvario da ordem mundial” (pg. 19), o coração efetivado é repressivo, se efetiva ao reprimir outros corações.

A circuncisão do coração do particular por parte do “espirito” (reivindicado por Hegel), suprassume o particular em favor do universal, “saber a lei do coração como lei de todos corações, e a consciência do Si como a ordem universal reconhecida” (Han citando Hegel, pg. 20).

Heidegger opõe a lei da casa (oikos), do fogo doméstico para além da economia dialética, ela “não deve pisar no palco dos discursos” (Han, pg. 21), esta “disputa sem guerra” (na visão de Hegel) não tem nenhuma semelhança familiar com o conflito dos discursos (pg. 21).

“O coração de Hegel, que na terceira parte da Enciclopédia se torna a sede das sensações, carece de toda objetividade e universalidade” (Han, pg. 22), nela o “coração cego de Hegel só sabe expressar algo “singularizado, contingente, unilateralmente subjetivo” … “é uma reação meramente subjetiva a sensação externa” (pg. 22), e Han dá o antídoto, chamando-o de dom.

O Ser com dom é o “singular por excelência, que, na sua singularidade, é unicamente o uno unicamente unificador, antes de todo o número”, a impossibilidade do número anula a economia da troca (pg. 25).

O que deve ser retomado deve ser dado como um dom, é preciso manter este dom afastado da economia da troca, soltá-lo do circulo econômico da troca”, isto é princípio do afetivo.

Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023

 

A ontologia, Kant e a tonalidade afetiva

07 mai

Como um bom oriental, embora radicado na Alemanha, Byung-Chul Han parte sua análise não da perspectiva objetivista, materialista e substancialista dos autores clássicos da filosofia ocidental, mas na perspectiva daquilo que vai chamar de “tonalidade afetiva” em Heidegger.

Seu livro, diferente de outros que considero ensaios, analisa “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger” (Ed. Vozes, 2023), com esta análise nova, humana e diria até mesmo espiritual do cerne da filosofia ocidental.

Parte de um conceito caro a civilização judaico-cristã, que é o da circuncisão, porém da circuncisão do coração e não do órgão falido (a pele presa no início do pênis), é preciso lembrar que embora órgão masculino ele é emblema do poder, da autoridade e do desejo, foi culturalmente numa cultura bélica.

A parte de sua visão religiosa, ele tem um sentido espiritual para toda a sociedade, contrário ao que Han vai desenvolver que é a circuncisão do coração, aquela que modula e rege o afeto.

Começa por aquilo que é raiz da cultura eurocêntrica, começando pela hipocondria de Kant que confessa em seu texto “Conflito das faculdades”: “por causa de meio peito chato e estreito, que deixa pouco espaço para o movimento do coração e dos pulmões, eu tenho uma predisposição natural para a hipocondria, que em anos anterior beira o tédio da vida” (Han, 2023, pg. 8), e daí desenvolve o “anseio expande o coração, o faz definir e esgota as forças” (pg. 9).

Este anseio dirá não é também indolor para Heidegger, mas de acordo com este autor (foi tese de doutorado de Han), o anseio é a “dor da proximidade da distância”, o feitiço do “sempre-igual”, porém num movimento de sair do em-si existe uma “Dor da costura” com o Outro.

Assim, dirá Han, a “costureira” (Näherin] de Heidegger, “trabalha na proximidade”, é também uma circuncidadora do coração (pg. 10), desenvolve-se convertendo-o “em tímpano hétero- auditivo” (pg. 10), “o coração do ser-aí” palpita no horizonte transcendental, assim segundo Han no Heidegger tardio, “a constrição penetra mais profundamente” e o ser-aí separa-se do ser do aí: Da-Sein (Han, pg. 11).

Assim, “esta circuncisão liberta o coração da interioridade subjetiva” (Han, Idem), e há uma conclusão preliminar surpreendente em Heidegger: “O coração de Heidegger, por outro lado [confronta com Derridá], escuta uma só voz, segue a tonalidade e gravidade do “uno, o único que unifica”, para ele é um “ouvido do seu coração” porém há algo forte de espiritual nisto.

Espiritualmente há uma voz interior que fala aos nossos corações se estão circuncidados, aqueles que agora se comovem com a tragédia do Sul (foto).

HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

Os impérios medievais e o ocaso

02 mai

A civilização romana já existia, porém como império inicia-se em 27 a.C. quando o Senado e o Povo de Roma proclamaram Otaviano príncipe, que no significado original é “primeiro cidadão”, e como tal deveria ser venerado e iniciam-se a conquista de diversos territórios.

O Império Romano foi até o ano de 476 a.C., quando Rômulo Augusto foi destronado pelos hérulos que são os germânicos, porém vindos de mais ao norte, segundo alguns historiadores, teriam origem na Escandinávia.  

Um dado histórico pouco conhecido é que foi após a morte e crucificação que Roma finalmente domina e submete o povo judaico, as tropas do general Tito tomam a cidade de Jerusalém em 8 de setembro de 70, o Templo que havia sido construído por Salomão (970 a.C.) é incendiado e os habitantes deportados como escravos.

Nos subterrâneos do império romano viviam diversos povos que apesar de submetidos mantinham sua cultura e seu ânimo, e entre estes povos estavam os cristãos que cresciam em número e os apóstolos eram estimados por toda comunidade.

O que ligam os povos e das suas culturas que são próprias, eram a solidariedade e o espírito de amor que existiam entre eles, diferente do que acontece nos dias de hoje que há divisão entre os próprios povos, a unidade entre as comunidades eram fortes, e também crescia a ideia de estados a partir da visão republicana de Platão e Aristóteles, porém a visão imperial e as guerras permaneceram.

Se estes impérios e guerras podem ser pensadas realmente como um tempo obscuro, nos mosteiros e nas pequenas comunidades agrárias onde a vida continuou a florescer tanto o processo civilizatório como a preservação de suas culturas originárias, é também do final deste período o império turco-otomano, além de extenso um dos mais longos da história, de 1299 a 1923, período que tiveram outros impérios na Europa como o Carolíngio de 800 a 888.

Todos tiveram o ocaso por suas contradições internas, o espirito sempre opressor e bélico que pode parecer o motor da história, mas é justamente o contrário, a culturas sobreviveram apesar destes desejos de submissão e opressão de povos diferentes.

Há sempre esperança e vida para aqueles que permanecem no sentido de civilização humana.

 

Impérios modernos e o trabalho

01 mai

O início da modernidade marcou por uma ruptura entre o mundo prática, objetivo da razão, chamado pelo idealismo de objetivo, e um mundo sensível, do amor, da esperança e da vida equilibrada, onde a natureza humana pode se expressar e se desenvolver, chamado de modo incorreto de subjetividade (o que seria próprio do sujeito).

Não foram poucos autores que a partir do início do século XX passaram a questionar esta divisão do homem em vita activa e vita contemplativa, Hannah Arendt e atualmente Byung Chul Han são os mais lembrados, porém a ideia da contemplação vem da antiguidade, de estóicos e de alguns místicos estudados na Patrística, como Gregório de Nazianzo, (329-390) um dos mestres da contemplação sendo citado por Chul Han.

A palavra trabalho vem de tripalhium, surge de torturas medievais que fazem alusão a tirar as “tripas” ao esforço contínuo sem descanso que vai mercar o início da revolução industrial até a conquista do limite de horas de trabalho e algumas leis mínimas de respeito a vida humana.

Na idade média, é nos mosteiros que nascem os primeiros ofícios, as técnicas de culinária (como os embutidos feitos para preservar a carne), e também as bibliotecas e os copistas que iniciam uma do trabalho humano contemplativo (não é subjetivo), como o lema entre monges beneditinos: ora et labora (medita e trabalha).

É bom lembrar que o trabalho pesado até o surgimento dos mosteiros eram feito por homens “livres” e que muitos monges tinham origens nobres e iam para o mosteiro aprender a trabalhar e também a ler e escrever porque grande parte da humanidade daquele tempo era analfabeta, e também deve-se lembrar o impedimento da miopia e hipermetropia, já que os óculos e as lentes são do final da idade média.

Depois da concepção da moderna indústria e do estado, que também é patrão de empresas estatais, monopólios em países socialistas, que não diferente em exigir eficiência e esforço máximo encarcerando o homem na “vita activa” sem espaço para serem e elaborarem sua vida plena, com espaço para a meditação e o lazer.

Já na revolução industrial inglesa, o Gin (que é a pinga lá) movimentava a capacidade máxima dos modernos escravos industriais privados da vida doméstica, do lazer e da cultura.

O que será a sociedade pós-industrial, pós-modernista ainda é uma incógnita, por hora, os impérios querem o monopólio das forças produtivas para garantir o poder sobre a força de trabalho e não dar liberdade para o pleno desenvolvimento humano, a vida plena é adiada.

O grande dom divino que é a vida e vive-la em abundancia dependerá de grandes mudanças, os impérios lutam para garantir que isto não acontecem, embora digam que é pela liberdade.