Arquivo para a ‘Método e Verdade Científica’ Categoria
Diversas reações ao pensamento dominante
Em países que foram colônias da Europa, emergiu o termo decolonização que se diferencia de descolonização porque penetra justamente no pensamento e na epistemologia dominante (alguns autores chamarão por isto de epistemicídio) que não é a simples liberação de dominação, mas também o ressurgimento de culturas subalternas.
Assim apareceram autores na África (como Achiles Mbembe), na América Latina (Aníbal Quijano e Rendón Rojas y Morán Reyes), além de autores de cultura originária como os indígenas (Davi Kopenawa e Airton Krenak), porém é possível um diálogo com autores europeus abertos a esta perspectiva como Peter Sloterdijk (fala da Europa como Império do Centro) e Boaventura Santos (fala do epistemícidio e também alguns conceitos de decolonização), há muitos outros claro.
Deve-se destacar nestas culturas também a cultura cristã, vista por muitos autores como colaboradora do colonialismo, não se pode negar a perspectiva histórica e também de doutrina que é a libertação dos povos e uma cultura de fraternidade e solidariedade, ela é também minoritária hoje na Europa e perseguida em muitos casos.
Entre os europeus que defendem um novo humanismo, ou um humanismo de fato já que o iluminismo e as teorias materialistas não conseguiram contemplar a alma humana como um todo, e são por isto um humanismo de uma perna só, entre os europeus destaco Peter Sloterdijk e Edgar Morin, o primeiro que defende o conceito de comunidade como um “escudo protetor” capaz de salvar nossa espécie, e o segundo, um humanismo planetário, onde o homem seja cidadão do mundo e as diversidades sejam respeitadas.
Ambos consideram as propostas populistas, é bom saber que elas existem a esquerda e a direita, devem perder com a crise atual e o consumismo global depende de uma atmosfera de “frivolidade” ou de superficialidade que a humanidade será obrigada a repensar, não voltaremos aquilo que consideramos estável, os próprios escritores originários, como Davi Krenak destaca em várias entrevistas, o que queremos voltar não era bom, não havia uma felicidade e bem estar real naquilo que era considerado normal.
Como aspecto de construção do pensamento, em Sloterdijk destaco a antropotécnica, para ele a modernidade foi uma desverticalização da existência e uma desespiritualização da ascese, enquanto o conhecimento e a sabedoria proposta na antiguidade sair do empírico e do enganoso para ir em direção do eterno e do verdadeiro, como para ele não existe a religião, seria um movimento de sabedoria e conhecimento, e não apenas uma ascese de exercícios, onde a alma imortal foi trocada pelo corpo.
Já na perspectiva de Edgar Morin é o hologramático que pode dar ao homem uma visão do todo agora fragmentada pela especialização e pela particularidade de cada ramo da ciência, paradoxo do complexo sistema no qual o homem é uma parte que deve se integrar ao todo, onde “não somente a parte está no todo, mas em que o todo está inscrito na parte”, a pandemia nos ensinou isto, mas a lição ainda foi mal aprendida, em plena crise pandêmica resolveu-se que está tudo liberado e não há protocolo de proteção de todos em cada um (cada parte), e não há co-imunidade.
A verdade científica e a humildade
A partir da revolução copernicana, com a descoberta de Galileu e com os avanços científicos deveria estar mais claro, ainda mais agora com as descobertas de forças desconhecidas do universo e com o novo telescópico James Webb, deveria estar cada vez mais claro que o homem não é o centro do universo, embora seja capaz de muito estrago se não deixar de lado a visão antropocêntrica e iluminista que o coloca como um “todo-poderoso”.
Nessa linha seguiu também Schopenhauer um dos primeiros a critica a “coisa-em-si” kantiana e seu sistema metafísico de colocar em seu lugar uma “Vontade” (que é a mesma coisa de quanto o homem foi colocado com centro do universo e a terra onde habita o seu centro), abriu uma perspectiva filosófica nova onde nada existe de propósito, tudo e todos somos consequencias de um sistema sem fim, com determinações e objetivos, e que somos responsáveis por um destino ferindo ao outro, estamos nos ferindo.
Desta forma Schopenhauer quis representa de maneira compassiva que pode representar em si a dor de outro, e isto nos valeria um grande passo para paz, embora seja capital a frase deste filósofo: “O homem é propriamente falando, um animal que agride” (Arthur Schopenhauer), que volta ao “homem lobo do homem” e justifica um estado agressor.
O conhecido fundamento da ética kantiana é o imperativo categórico (age de tal forma a ser modelo para os outros) que serve para orientar o agir dos sujeitos, e este por sua vez é princípio de um “factum” da razão, que faz parte do mundo numêmico, o qual consegue influenciar (não sentido princípio) o mundo fenomênico, de maneira a orientar as ações do sujeito racional de forma universal e necessária, Schopenhauer neste ponto faz uma crítica importante, embora não seja suficiente para uma crítica profunda desta ética.
Numérico refere-se àquilo que é conhecido sem fazer parte dos sentidos, é uma crítica ao empirismo porém não reconhece o fenomênico (que se manifesta como coisa).
Para ele, o programa ético kantiano é desprovido de sentido porque possui como fundamento último da ação um aspecto metafísico que desqualifica ações que vem de qualquer outra instância que não seja a razão, a relação que existe entre a razão e a metafísica (veja que a metafísica de Kant não faz parte do mundo, mas não é teológica nem divina), é que os sujeitos racionais (transcendentais em relação aos objetos) partilham do incognoscível, uma vez que conseguem pensar em coisas metafísicas, mas não conhece-las.
Esta lacuna onde não existe o mistério, é natural que tenha se distanciado da transcendência divina e teológica, porém é uma razão objetivada, sem aspectos subjetivos, ou seja próprios do sujeito, e Schopenhauer aponta corretamente para a dor do outro que é capaz de conceber, porém este princípio de compaixão não terá um desenvolvimento, outros autores fenomenológicos trata da questão do Outro, e este sim é um princípio para a crítica da razão.
Língua, linguagem e cultura originária
Na obra de Heidegger: Hölderlin e a essência da poesia, vista em Heidegger (1992) fala da essência da poesia como um tipo de linguagem primordial, uma fala originária que precede e possibilita a linguagem comum, a comunicação, isto remete a uma fusão de horizontes inédita em língua e linguagem, classicamente define língua como: “é um conjunto organizado de elementos (sons e gestos) que possibilitam a comunicação de determinada nação ou cultura”, enquanto linguagem abarcaria um conjunto mais amplo que inclui a capacidade dos seres humanos de desenvolver e compreender a língua, como se fosse possível dissocia-la de contextos, culturas e formas de comunicação ligada a cultura.
A linguagem comum na qual se comunica determinada cultura originária, guarda formas próprias de um código linguístico que é necessário a cada linguagem originária e se desenvolva de modo criativo de forma a preservá-la, diz-se desta fala (ou palavra) que é aquela que nomeia os deuses, e o faz para responder a um apelo cultural.
Se no passado as narrativas incluíam mitos, símbolos e ganchos poéticos para dar conexão a narrativa, hoje não é diferente, há sempre na fala alguma crença e alguma fantasia, sem a qual a linguagem poética seria mero exercício de retórica, e não o é, e este apelo a fantasia, a imaginação e ao transcendente é parte do humano e do divino.
Desejar que toda fala seja pragmática e objetiva é reduzi-la ao contexto da pura lógica formal, também o exercício científico muitas vezes precisa de algum exercício no além, no imaginário para encontrar respostar que não estão ali apenas como uma equação lógica.
Não é puro devaneio, crenças e imaginários sempre fizeram parte da história do humano, é um justo desejo de ir além, de buscar voos mais altos e de imaginar como possível algo além do enfadonho e pesado dia a dia, ainda que ele possa conter alegrias e sabores, o limiar de abertura a diversas culturas originárias não pode estar apenas ligado ao realismo objetivo e simplório.
Na foto acima uma igreja sincrética construída em Kazan, iniciada em 1992 portanto no pós soviético, capital do Tartaristão (república russa, mas de cultura totalmente diferente) onde mesmo com o predomínio do islamismo seguido pela igreja ortodoxa, é ao mesmo tempo um símbolo de resistência ao complexo linguístico russo e capaz de construir uma obra de tão grande significado onde diversas religiões podem se expressar, uma obra eclética do arquiteto Ildar Khanov.
HEIDEGGER, M. Arte y poesía. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1992
Verdade e linguagem
É possível falar de verdade? ou para fazer uma pergunta mais contemporânea é possível negar a verdade sem cair no relativismo? Só a verdade lógica aquela que vem de Parmênides “o ser é e o não ser não é”, se expressou até muito recentemente como verdade única, porém ela é o fundamento do positivismo e da lógica dualista, a ideia da consideração da historicidade e a circularidade hermenêutica coloca sujeito e objeto no âmbito de uma relação com a linguagem.
Neste âmbito da linguagem da linguagem, a verdade é ressignificada, deixando de ser concebida como única, como descrição fiel, e passando a ser vista como uma redescrição parcial, criativa porém limitada das coisas, como uma interpretação possível em determinado contexto e determinação situação cultural, para isso é preciso compreender a linguagem como algo anterior à linguagem do cotidiano, aquilo que Heidegger chamou a atenção à poética de Hölderlin como a essência da poesia como um tipo de linguagem primordial, uma fala originária que precede e possibilidade a linguagem comum, a comunicação.
De que forma então é possível falar da verdade? Só é possível falar da verdade levando em consideração a historicidade e a circularidade hermenêutica de sujeito e objeto, que estão no âmbito da linguagem. Assim a verdade é ressignificada, deixando de ser concebida como única, como descrição fiel, passando a ser vista como uma redescrição parcial, criativa e limitada das coisas, como uma interpretação entre outras possíveis. Uma possibilidade de se falar em verdade é a partir da linguagem. Mas para isso é preciso recorrer a uma compreensão de linguagem que seja anterior à linguagem do cotidiano, da comunicação. Em Hölderlin e a essência da poesia, Heidegger (1992, p. 125-148) fala da essência da poesia como um tipo de linguagem primordial, uma fala originária que precede e possibilita a linguagem comum, a comunicação;
Sendo a linguagem a mediação da nossa relação com o ser, ela é a que estabelece esta relação, de forma mais clara aquilo que está dito em Heidegger: “aonde o homem assume a exigência de adentar a essência de alguma coisa? O homem só pode assumir essa exigência a partir de onde ele a recebe. Ela a recebe no apelo da linguagem … é a linguagem que, primeiro e em última instância, nos acena a essência de alguma coisa” (HEIDEGGER, 2002, P. 167-168).
Assim a verdade deve ser compreendida no âmbito da viragem (ou reviravolta) linguística, a redescoberta contemporânea da importância da linguagem e ela não pode estar separada da historicidade originária, aquela que remete a cultura dos povos e religiões do passado e do presente.
HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002.
Empatia e espiritualidade
Conforme apontamos no post anterior frônese não é uma virtude moral, mas intelectual na teoria de Aristóteles, então a empatia pode ser conforme elaborado ali, um componente de sentimento da frônese, o melhor exemplo para explicar isto é o da acrácia (em grego akrasia, ἀκρασία), ou do sentimento e frônese de um psicopata.
Embora acrásia possa ser traduzida ao pé da letra por “não ter comando sobre si mesmo”, está descrito no discurso de Platão em Protágoras, na verdade é uma situação de psicopatia onde o mesmo tem conhecimento de determinada ação, mas não tem exatamente o mesmo sentimento de uma pessoa normal perante algum sofrimento.
O que está errado neste contra-argumento para explicar a frônese é que o desejo de aliviar a dor do outro perante algum sofrimento deve estar de alguma maneira bloqueada, no entanto não impede que o psicopata cultive algum sentimento da situação da outra pessoa e o faz de tal modo sofisticado no que define a respeito de como e porque a pessoa em questão tem tal Sofrimento, e não se trata só de atitudes morais, no caso de um psicopata o que torna seus sentimentos e ações moralmente defeituosos podem ter raízes em seus hábitos (já dissemos que isto vem dos pensamentos tornados ações), se incluirmos as pessoas que tem compaixão ou misericórdia pelo Sofrimento alheio, então pode-se explicar.
Não é, portanto, apenas uma atitude moral ou ética, embora o seja também, mas alguma virtude espiritual praticada com insistência de tornar-se um hábito que o Sofrimento do outro, o exercício desta compaixão onde a ação torna-se hábito guiado para a disposição de agir de uma maneira boa que pode ser fornecida pelas outras atitudes morais que fornecem os meios para discernir sobre o sofrimento junto com a Empatia, assim tem-se que necessariamente expandir a lista das atitudes morais fornecidas por Aristóteles.
A frônese não pode ser exercida sem virtudes morais básicas e assim não pode ser iniciada sem a empatia, pode-se admitir que um psicopata tenha até mesmo empatia, muitos são carismáticos e podem influir muitas pessoas, mas lhe faltará uma virtude moral básica que complemente a sua ação, e isto é impossível sem alguma um exercício para tornar-se hábito a atitude empática completa de sentir o Sofrimento alheio, este exercício que torna-se um hábito é chamado aqui de Espiritualidade.
Enquanto não é hábito pode ser um exercício de ascese, uma simulação ou simplesmente um disfarce que em algum momento será desvelado.
É bom ressaltar que pode haver ascese (elevação do espírito parcialmente) sem uma verdadeira espiritualidade, chamo-a usando um termo de Peter Sloterdijk de “ascese desespiritualizada”, ou seja, sem uma raiz profunda que leve ao conhecimento amplo do que é a dor do Outro, se quisermos dar um nome uma frônese empatizada.
A espiritualidade é, portanto, um exercício que leva a uma ascese, porém o que é ascese não depende só da crença de cada um, mas aquilo que durante a vida torna-se hábito e caráter, quem não o tem pode praticá-lo por alguns dias, ou até mesmo alguns anos, mas sem raiz profunda logo a abandonará, como emagrecer, fazer dietas e outras tentativas de hábitos que nem sempre se mantém, para torna-los vida eles devem integrar o nosso caráter, a nossa personalidade.
Empatia e a convivência social
Embora em algumas áreas como a administração e a saúde já existam trabalhos sobre a empatia como melhoria do relacionamento social, está longe de ficar claro que não se trata de uma atitude apenas de simpatia, contágio emocional ou um relacionamento carinhoso (Pedersen, 2010), não se trata, portanto, de uma “tática” de construir relacionamentos.
Já delineamos o raciocínio que vai do pensamento até o caráter (a frase de Meryl Streep no filme “A dama de ferro”) e deve ser, portanto, um exercício de caráter ético.
O conceito de frônese (phronesis) traduzido como “sabedoria prática” ou “prudência” é desenvolvido em Aristóteles, no livro VI da “Ética a Nicomaco”, será que esta compreensão do ser empático e sábio em Aristóteles está correta ? E se assim o for isto significa ser sábio em questões práticas significa entender melhor o fenômeno da empatia?
Junto com a fronese na Ética a Nicômaco estão outras virtudes com a aretê (a excelência ou virtude suprema) e Aristóteles vai associar a cinco formas diferentes quando se trata de atividades humanas, poderíamos dizer sociais: a episteme (conhecimento científico organizado), a techne (conhecimento técnico), a frônese (sabedoria prática) e a sophia (conhecimento filosófico) e nous (“sacadas” intelectuais), claro todos estes conceitos devem ser contextualizados no mundo contemporâneo.
A sabedoria prática como Aristóteles a caracteriza é uma espécie de conhecimento de como agir em situações práticas (lembrem-se as palavras se tornam ações e as ações se tornam hábitos e vão definindo um caráter), mas ele também fala de perícia técnica, caso em que o objetivo da atividade deve ter de antemão algum conhecimento para realizá-lo, a ideia que basta a intuição ou a inspiração (nous) sem conhecimento técnico é inútil.
A empatia é desta forma um tipo de discernimento, uma maneira de ver o que está acontecendo no mundo a nossa volta com os outros seres humanos, neste sentido é preciso uma sabedoria (sophia) e atentar para diversos intérpretes que estejam de forma mais profunda tematizando-se, talvez a palavra filosofia esteja desgastada, então apenas sophia.
A filosofia contemporânea Martha Nussbaum mostrou como a noção aristotélica de sabedoria repousa na compreensão das emoções como contendo conhecimento sobre o mundo que compartilhamos com outras pessoas, e frônese não é desprovida de sentimento, ao contrário ela ajuda o “sábio” e entender e julgar a pessoa em dada situação.
Por causa do contexto ético, somos levados a colocar empatia no contexto da filosofia moral aristotélica, o que é um erro, como frônese é mais adequado, entretanto pode acontecer outro equívoco de considerar apenas como virtude “intelectual” e desconsiderar aspectos subjetivos (espirituais inclusive) que a empatia deve ser colocada.
A empatia é então um componente de “sentimento” relacionada a frônese, entretanto é fato que alguns filósofos negam que empatia seja essencialmente um sentimento (Coplan, Goldie, 2011), relembramos novamente que pensamento se tornam palavras, estas ações e depois hábitos e quando inseridos no caráter já fazem parte dos “sentimentos”.
Resolvemos esta querela, não é tão simples é verdade, entendendo que enquanto não são hábitos necessitam de exercício e depois inseridas no caráter, são sentimentos ou subjetividades (próprias do sujeito), porém fica claro que ela não é uma atitude natural, embora a empatia o seja, é preciso “treino”.
Assim detectamos em Aristóteles uma lacuna entre a sabedoria prática e a sophia, diríamos uma saudável espiritualidade ou uma capacidade de interiorização.
Referências:
Coplan, A., and P. Goldie. 2011. Introduction. In Empathy: Philosophical and psychological perspectives, ed. A. Coplan, and P. Goldie. Oxford: Oxford University Press.
Pedersen, R. 2010. Empathy in medicine: A philosophical hermeneutic reflection. Oslo: University of Oslo, Faculty of Medicine.
A empatia e a frônese
Frônese (phrónesis, do grego antigo: φρόνησις), na obra Ética a Nicómaco de Aristóteles, livro IV, distingue-se tanto de teoria como da prática por constituir-se de uma virtude da sabedoria do pensamento prático, entretanto uma adaptação moderna de Hans-Georg Gadamer situa-se entre o logos e o ethos, esta relação pode-se assim aproximar o amor “teórico” de uma ação prática empática.
Assim a frônese insere-se nas ações humanas como fenômenos mediante um exame hermenêutico de opiniões, não apenas para revelar os princípios imutáveis das causas dessa ação, mas sobretudo para entender que a partir da mera opinião (a doxa) do Outro, é possível auxiliá-lo mediante a empatia a chegar ao conhecimento (episteme).
Funciona como uma verdadeira ação de atração que leve o Outro a refletir. dentro do círculo hermenêutico trata-se de permitir uma leitura dos pré-conceitos do Outro e atentar para os próprios, assim as ações que decorrem daí poderão ser mais empáticas, explicando de maneira fronética (prática): ler o que o Outro de fato quer e pensa.
Esse conhecimento leva a uma nova episteme (concepção teórica dos novos horizontes) no qual é possível pensar em uma ação conjunta ou ao menos convergente, como já dissemos anteriormente, a empatia é uma relação originariamente natural, enquanto a desempatia (é diferente da antipatia que é oposto a simpatia) é o rechaço do Outro, sim algo que se tornou naturalizado, devido a ideologias e pré-conceitos herméticos impossíveis de fazer uma releitura.
A verdadeira lei de atração é a empatia, uma vez que ela pode reforçar ações positivas, colaborativas e socialmente coletivas, enquanto a simples oposição leva a repulsão do Outro e a criação de polos de opinião (doxa) e de conhecimento (episteme) não convergentes e não humanos, não se trata de lógica simples, mas de onto-lógica, lógica do Ser.
Porque isto tornou-se tão difundido e alargado é simples, um forte sistema de pensamento não humanista se desenvolveu com objetivo de poder e enriquecimento, não apenas colonizador e xenofóbico, mas sobretudo não ontológico, impróprio do ser.
A ideia do simples rechaço pode parecer natural, entretanto ela pode levar a outro sistema de dominação polarizado e estruturalmente autoritário e assim não empático e não fronético, novamente simples teorias que na prática se mostram desastrosas.
Caos pandêmico e negacionismo estrutural
As medidas de restrições deveriam ter continuado, mas o que se observa é uma liberação de aglomerações e ausência de protocolos claros, em todo mundo há um aumento de caos, aproximando-se dos 3 milhões diários, no Reino Unidos há uma explosão de casos (ver gráfico), estudos da França revelaram 46 variantes, a ômicron ainda é predominante, porém há o risco de novas mutações se a pandemia não for contida e a única arma disponível é a vacinação, entretanto, medidas sanitárias rigorosas já deveriam ter sido tomadas, aos poucos: voos, restaurantes e aglomerações voltam a ser proibidas (lá), mas sem a força necessária das autoridades públicas.
Não é diferente no Brasil, onde chegou-se a mais de 56 mil internações só na cidade de São Paulo, porém o discurso público é que são apenas pessoas que não tomaram vacina ou que os casos não são tão graves, porém a própria OMS alerta para a gravidade da ômicron, sendo o primeiro efeito imediato colocar o sistema de saúde em colapso, em São Paulo a ABLOS (Associação Brasileira de Lojistas Satélites) pedirá aos shoppings redução de horário de funcionamento pela falta de funcionários devido a covid.
Estudo da Universidade de Washington indica que o Brasil poderá chegar a um milhão de casos diários, em curto prazo, até o final do mês de janeiro, a influenza H3N2 avança, no entanto, a maioria dos casos ainda é da covid 19 com a variante ômicron. A China estoca alimentos não está declarado que seja apenas pela questão da ômicron ou há algo mais.
O líder indígena Ailton Krenak, do povo da região devastada do rio Doce, disse em entrevista no programa Bom para Todos da TVT que falar em novo normal é muito próximo ao negacionismo, aquilo que precisa ser mudado e não é significa que achamos bom o estado anterior de despreocupação com a vida e com a natureza, é a própria natureza que nos impele a uma mudança de hábitos, a um novo modo de viver, e se não aprendermos rápido ficaremos presos a novas pandemias e crises cíclicas.
É assim mesmo, não tem como mudar, diz o discurso conformista, ou pior aquele que deseja devastando vidas voltar a uma normalidade ainda impossível não apenas devido a pandemia, mas agora também por uma realidade social sofrida e com apagões e dificuldades de reestruturação, como alerta Krenak não há novo normal é preciso lidar com a realidade por mais dura que ela seja.
Mesmo com a ausência de dados claros, desde o final de dezembro o Ministério da Saúde vive um apagão de dados, causado por hackers, porém não conseguiu se reestruturar, também a testagem e controle em atividades coletivas foram suavizadas, basta ir a qualquer evento social, a restaurantes ou igrejas, já não há medida de temperaturas e as necessárias observações de distanciamento, é o que chamamos aqui de negacionismo estrutural.
Espera-se alguma medida, mas de cima para baixo, parece uma política intencional, há um descontrole em ações e uma relativização da gravidade pandêmica.
Empatia e a Verdade
A construção do conceito de verdade pode, grosso modo, dividir em três etapas como tendo uma elaboração ou uma narrativa, excluo o período de evolução natural do homem porque considero o início da linguagem oral elaborada por oráculos/profetas/mestres um marco importante, antes o que havia era o homem natural e sua “busca”, as três etapas então são: a mítica, a oralidade mista (retórica e escrita) e a linguagem escrita a partir da imprensa de Gutenberg.
Estamos numa quarta etapa que é chamada de pós-verdade, portanto não sua superação, mas sua crise, o iluminismo combinou experiência e lógica cartesiana (a kantiana é apenas a que mostra os limites da razão pura) e agora entendemos, é uma das possibilidades apenas, a fenomenologia filosófica, última etapa após Husserl, Heidegger e Gadamer.
O círculo hermenêutico pressupõe aquilo que argumentamos nos posts desta semana, uma relação com o Outro, propõe que há sempre pré-conceitos, ou seja, há verdades que até podem ter convenções, e reconhece-los ainda que diferentes, sendo possível após estas visões uma fusão de horizontes, é importante e não secundário que Gadamer e Heidegger pressupõe a existência do texto, isto é, uma linguagem escrita a qual seja referencia para a etapa seguinte que é ouvir o Texto, na oralidade entretanto, seria ouvir o Outro.
O que chamamos então de pós-verdade é o simples fechamento em uma verdade egóica, o ego transcendental, como desenvolvido no tópico V das Meditações Cartesianas de Husserl, e que sumarizamos no post anterior, assim é impossível a fusão de horizontes, prevalece a lógica dualista e/ou a ideia da experiência para se estabelecer um fato.
Também a filosofia antiga tinha estas ideias embrionárias, Sócrates afirmou (segundo Platão): “A verdade não está com os homens, mas entre os homens” e Aristóteles afirmou que a verdade é elaborada na relação da coisa com suas causas: Causa material: de que a coisa é feita? por exemplo uma casa construída. Causa eficiente: o que fez a coisa? A construção com materiais. Causa formal: o que lhe dá a forma? A própria casa. Causa final: o que lhe deu a forma? ou a intenção inicial do construtor ou arquiteto.
A diferença entre o princípio fenomenológico de dirigir-se a “coisa” e Aristóteles é que sua lógica é dual: só existe A ou não A, e de A para B é preciso passar por C intermediário, na fusão de origem é possível um T (a teoria do terceiro incluído e a física quântica também admitem isto) que não é A e nem não A, e pode-se ir diretamente de A para B.
A cosmovisão cristã estabelece como verdade a existência de uma realidade sobrenatural, acima dos dogmas e mistérios da ciência (eles mesmo descobertos são verdades provisórias) e há um critério ontológico para a verdade, uma pessoa, que é o Deus-terreno sua manifestação (epifania), o homem-Deus: Jesus.
João Batista, o último e o maior dos profetas, não há profetas hoje a menos de uma revelação direta do próprio Deus (assim todos os profetas atuais são falsos) e João Batista quando questionado em seu tempo afirmou (Lc 3,16): “Por isso, João declarou a todos: “Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do que eu. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias. Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo” ” e esta é a verdade na cosmovisão cristã.
Empatia vista pela filosofia
Discípula de Edmund Husserl, foi Edith Stein quem trabalhou mais profundamente o tema da empatia, entretanto o mestre tratou do tema em suas famosas Conferências de Paris ou Meditações Cartesianas no qual passa por revisão o método cartesiano, pode-se dizer que parte desta revisão é a descoberta da empatia, ou da relação como o Outro.
Como em toda filosofia deve haver uma questão fundamental a ser investigada e neste caso é a pergunta: “como de pode esclarecer isto, se permanece intocável o princípio de que tudo o que é para mim só na vida intencional pode adquirir sentido e confirmação intencional?”, é na solução desta questão que aparece o tema empatia, dito desta forma:
“Carecemos aqui de uma autêntica explicitação fenomenológica da operatividade transcendental da intropatia e, para tal, porquanto ela esteja em questão, de pôr-fora-de-validade abstrativo dos outros e de todos os estratos de sentido do meu mundo circundante que para mim crescem a partir da validade da experiência dos outros” (HUSSERL, 2013, p. 33).
Intencionalidade é uma categoria fundamental do método fenomenológico, é muito ampla por ser uma característica da consciência, significa o aspecto de ser consciência de alguma coisa.
O termo intropatia é uma primeira incursão fora do ego, significa introjetar um sentido ou sentimento que o outro possa gostar, neste sentido rompe com o sentido do ego transcendental cartesiano, validando a experiência do outro, assim dito por Husserl:
“Precisamente por isso se separa no domínio do ego transcendental, isto é, no seu domínio de consciência, juntamente o seu ser egológico especificamente provada, a minha peculiaridade concreta, como aquela a partir da qual, a partir das motivações do meu ego, capto o meu análogo na intropatia” (Husserl, 2013, p. 34).
Assim pode-se dizer que este termo ainda está entre as vivências intersubjetivas, ou seja, a valorização das vivências e relações subjetivas dos sujeitos em vida social ou comunitária, mas a empatia é um passo além, neste sentido é importante compreender o epoché fenomenológico, que coloca os nossos sentidos, nossos conhecimentos “entre parênteses”:
“Se eu, o eu que medita, me vejo reduzido pela epoché ao meu ego absoluto e ao que aí se constitui, não me tornei então no solus ipse, e não será assim toda esta filosofia de autorreflexão um solipsismo puro, se bem que fenomenológico-transcendental?” (Husserl, 2013, p. 34) então não é um solipsismo cartesiano e sim um refletir com a intencionalidade.
Como isto se clarifica, pois, permanece “inapreensível que tudo o que é para mim só possa obter sentido e comprovação na minha vida intencional?” (Husserl, 2013, p. 35) aqui esclarece o filósofo é necessária uma compreensão fenomenológica da empatia e penetrar na vivência do Outro, fora do seu âmbito egóico.
Assim essa superação da subjetividade transcendental alargada em intersubjetividade ela só “é co-experimentada em mim mesmo, portanto indiciada, num sentido secundário, no modo de uma peculiar apercepção de semelhança, comprovando-se aí de um modo consensual” (Husserl, 2013, idem) e é curioso que ali Husserl fala de “espelhamento do alter ego” (idem) muito antes da descoberta do neurônio-espelho (ver post anterior).
A ligação de Stein com Husserl na tradição fenomenologia é enorme, tendo sido inclusive sua assistente, ao apresentar sua tese com o tema: “O problema da Empatia” dá a entender que esta era uma lacuna na abordagem fenomenológica, escreveu Stein:
“No seu curso sobre a natureza e o espírito, Husserl havia falado de que um mundo objetivo exterior só podia ser experimentado intersubjetivamente, isto é, por uma pluralidade de indivíduos cognoscentes, que estejam situados em uma posição de intercâmbios cognoscitivo. … esta peculiar experiência, Husserl, seguindo os trabalhos de Theodor Lipps, chamava de “empatia” (Einfühlung); sem embargo, não tinha precisado em que consistia” (STEIN, 2017, p. 360, trad. livre).
O trabalho de Stein foi enorme, ela extrapolou com discussões sobre cultura, estética, arte, religião, psicologia e até mesmo ética para desenvolver seus estudos e seu trabalho ainda não é suficientemente lido, o fato de ser judia, depois ter se tornado freira e depois ser declarada Santa pela igreja católica, por preconceito, pode explicar algumas das razões de sua pouca leitura.
STEIN, E. Zum Problem der Einfühlung. Dissertation zur Erlanugng der Doktorowürde. Breslau: Bruchdruckercides Waisenhaauses, 2017.
HUSSERL, E. Meditações Cartesianas e Conferências de Paris. Ed. por Stephan Strasser, trad. Pedro M. S. Alves, Rio de Janeiro: Forense, 2013.