Arquivo para a ‘Ciência da Informação’ Categoria
A narrativa eletrônica
A rápida evolução da Inteligência Artificial, depois de uma séria crise até o final do milênio, trás no cenário da divulgação científica e às vezes até mesmo na própria investigação científica, tanto um aspecto mistificador que a vê além das possibilidades reais ou aquém do que é capaz.
Por isso apontamos no post anterior a evolução real e sofisticação dos algoritmos de Machine Learning e o crescimento da tecnologia de Deep Learning, esta é a evolução rápida atual, a evolução dos assistentes eletrônicos (já estão no mercado vários deles como o Siri e a Alexa) é ainda limitada e comentamos num post sobre a máquina LaMBDA que teria capacidade “senciente”.
Senciente é diferente de consciência, porque é a capacidade dos seres de perceberem sensações e sentimentos através dos sentidos, isto significaria no caso das máquinas terem algo “subjetivo” (já falamos da limitação do termo e sua diferença da alma), embora elas sejam capazes de narrativas.
Esta narrativa or mais complexa que seja é uma narrativa eletrônica, um algorítmica, com a interação de homem e máquina através de um “deep learning” é possível que ela confunda e até mesmo surpreenda o ser humano com narrativas e elaborações de falas, porem dependerá sempre das narrativas humanas das quais são alimentadas e criam uma narrativa eletrônica.
Cito um exemplo do chatGPT que empolga o discurso mistificador e cria um alarme no discurso tecnófobo e cria especulações até mesmo sobre os limites transumanos da máquina.
Uma lista de filmes considerados extraordinários, exemplifica o limite da narrativa eletrônica, devido a sua alimentação humana, a lista dava os seguintes filmes: “Cidadão Kane” (1941), “O Poderoso Chefão” (1972), “De Volta para o Futuro” (1985), “Casablanca” (1942), “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968), “O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel” (2001), “Um Sonho de Liberdade” (1994), “Psicose” (1960), “Star Wars: Episódio V – O Império Contra-Ataca” (1980) e “Pulp Fiction” (1994).
Nenhuma menção do japonês Akira Kurosawa, do alemão Werner Herzog ou do italiano Frederico Felini, só para citar alguns, sobre ficção não deixaria fora da lista Blade Runner – o caçador de androides, bem conectado as tecnologias do “open AI” ou o histórico Metrópolis (de 1927 do austríaco Fritz Lang).
A narrativa eletrônica tem a limitação daquilo que a alimenta que é a narrativa humana, mesmo sendo feita pelo mais sábio humano, terá limitações contextuais e históricas.
Uma chance para a paz
Ao contrário de tudo que se imaginava para um ano de guerra, completados neste fim de semana, o confronto Rússia x Ucrânia pode ter um desfecho diferente, finalmente há uma chance para a paz.
O Brasil fez uma proposta nova de moção na ONU, além de se oferecer para mediação das negociações, a China também parece disposta, mesmo que sobre desconfiança de uma possível ajuda militar à Rússia e tudo isto mudou o cenário de votação de uma nova moção na ONU, mais branda, de condenação da invasão russa.
A moção aprovada com alguma inclusão do texto brasileiro, teve uma votação foi muito significativa, votaram a favor 141 votos (mais países que a anterior), 32 abstenções, sendo a da China significativa, e sete contra: Coréia do Norte, Nicarágua, Eritréia, Belarus, Síria, Mali e a própria Rússia.
A Rússia diz que aceita eventual mediação do Brasil, e a China é óbvio seria bem, mas já neste caso há desconfiança do ocidente, pois o texto proposto pela China fala em “descanso” russo, se a China enviar armas a Rússia, mesmo com a ajuda da Otan a Ucrânia, esta estaria muito fragilizada.
Foram feitas propostas de emendas, a Belarus por exemplo queria retirar a parte do texto que responsabilizava a Rússia pelo início do conflito, porém o texto brasileiro mesmo sendo mais brando, deixava claro a agressão russa.
Assim agora há uma maior possibilidade de um bloco para negociações de paz bilateral do ponto de vista ideológico, e uma maior consciência do desgaste e dos prejuízos humanitários da guerra.
A paz começa finalmente a ser pensada de modo realista e por ambos lados em conflito.
Poder e interioridade
Esclarecido no post anterior a diferença entre alma e espirito, o conceito usado por Hegel para desenvolver a ideia (metafisica, para ele “subjetiva”) de poder usa uma analogia da digestão, que Byung Chul Han aproveita:
“O poder é, para Hegel, já efetivo no nível mais elementar da vida. A digestão, desse modo, é já o processo do poder no qual o ser vivo leva consigo, aos poucos, seu outro a identidade” (Chul Han, O que é poder?, p. 102), chega a dizer que o ser vivo gera identidade com o outro, porém ignora que em sua gênese há um processo metafísico.
Nietzsche vai desenvolver esta questão como vontade de poder, neste caso confundido com a dominação que já tratamos aqui e que é uma categoria sociológica, porém o poder como uma metáfora, a nosso ver mais adequada, é aquilo que geramos em nossa interioridade digestiva.
Como digerimos a imagem do outro como nossa identidade ou não, pois reconhecemos diferenças não só no genótipo, mas principalmente nas diferenças de sentimentos, julgamentos e decisões, de modo mais amplo de acordo com a nossa cosmovisão.
Assim o desejo de paz ou de guerra com o diferente, a tolerância ou intolerância em diversidades de pensamento sobre o mundo e as coisas não deve estar na categoria do certo e do errado, claro assim o errado deve ser punido, mas o que é errado deve estar circunscrito nos limites do humano, assim se matar é errado, a guerra é um erro grave onde um povo pode exterminar outro.
A renúncia a este poder metafísico, gerado em nossa interioridade ela nossa visão de mundo, deve sempre estar interiorizada (digerida) também como uma vontade, um comando, do tipo não-posso.
A lição bíblica sobre esta questão, descrita como as “tentações de Cristo”, estão na passagem Mt 4,1-11.
Na passagem após jejuar e renunciar ao poder de transformar as pedras em pães e disser que se lançasse sobre a cidade de Jerusalém, o diabo o tenta com o poder e mostra-lhe os reinos do mundo: “e lhe disse: “Eu te darei tudo isso, se te ajoelhares diante de mim, para me adorar”. Jesus lhe disse: “Vai-te embora, Satanás, porque está escrito: ‘Adorarás ao Senhor, teu Deus, e somente a ele prestarás culto’”. Então o diabo o deixou. E os anjos se aproximaram e serviram a Jesus” (Mt 4. 9-11).
O poder na concepção atual: finitude
Sem dúvida um dos livros mais esclarecedores sobre a questão do poder foi escrito por Byung Chul Han, não só por estar no contexto atual como ela excelente revisão filosófica que faz.
Embora passe por diversos outros autores: Nietzsche, Hegel, Heidegger e Luhmann, entre outros, é sua oposição a Foucault que estabelece a melhor relação, sua psicopolítica se opõe a biopolítica de Foucault, não há dúvida que a sociedade atual há (pela propaganda midiática) forte pressão.
No entanto, no início do livro ele usa uma definição de Max Weber que penso ser mais exata, e a desenvolve assim: “poder significa na oportunidade, no interior de uma relação social, de impor a própria vontade também contra uma resistência, não importante em que tal oportunidade esteja baseada” (Han, 2019. 22, citação de Economia e sociedade, de Weber).
Depois disto conclui que o conceito de poder é sociologicamente “amorfo”, então o substitui elo conceito de “dominação” (já postamos aqui algo sobre isto), que é “obediência a uma ordem, que é sociologicamente “mais preciso”.
Porem será quando recupera o conceito “espacial” (ou territorial) e “temporal” (um mandato por determinado tempo que de fato esta precisão é, ao nosso ver, realmente alcançada.
Para entrar na questão do poder do ponto de vista de religião retoma-a a partir de Hegel, e o que ele considera como “espírito”, e que na concepção do filósofo esta totalmente dominada pela questão do poder: “Deus é poder” (pg. 121), e o que define como espírito não é outra coisa senão a subjetividade humana (vem do dualismo idealista) e assim encerra-se também dentro da finitude do próprio homem, não há nada além e maior que a finitude tempo-espacial humana.
Diz Hegel que a religião baseia-se “no anseio por uma ausência de limites, por uma infinitude que, entretanto, não seria o poder infinito” (pg. 123), e o que lhe retira o pecado da ignorância é que ele afirma, dizendo dos seus verdadeiros limites não é uma vontade ilimitada por poder: “A religião é fundamentalmente profundamente pacífica. Ela é bondade” (pg. 124).
Entretanto vê isto como uma “pura concentração de poder”, quanto é o contrário, lembram várias leituras bíblicas “Lembra-te que és pó e ao pó voltaremos” (Genesis 3,19) e assim nem é difícil ver que Deus fez o homem do barro (claro, eram estruturas metabólicas capazes de duplicação, mas a água é elemento vital) e nem é difícil saber que ao retornar a um outro plano fisicamente voltamos a ser poeira inorgânica.
A quarta-feira de cinzas, no rito cristão, é para lembrar esta finitude humana e dar humildade ao poder que o homem julga ter, ele será sempre finito e espacial.
HAN, B.C. O que é poder. Trad. Gabriel Salvi Philipson. RJ: Petrópolis, Vozes, 2019.
A ira e a paz
É verdade que a história da humanidade está pontuada por guerras, porem o que aconteceria se fosse ao contrário e os homens buscassem em todas as circunstâncias encontrar um caminho mais solidário e menos tenebroso para seus conflitos.
Porem um conflito internacional neste momento seria uma tragédia que pode por em cheque o próprio processo civilizatório e cujas consequências seriam números inimagináveis de perdas de vidas humanas, de contaminação da natureza e de estragos materiais.
Enquanto isso o conflito no leste europeu vai tomando contorno cada vez mais internacional, uma fragata russa carregada de misseis hipersônicos imparáveis e com alcance de mil quilômetro caminha no atlântico sul em direção a costa leste americana.
O filósofo estoico Sêneca (4 a.C–65 D.C) que escreveu um tratado sobre a Ira, que ao contrário de muitos outros diz que não há sabedoria nela, escreveu em sua obra: “Nenhum homem se torna mais corajoso por meio da ira, exceto alguém que, sem ira, não teria sido corajoso: a ira, portanto, não vem para ajudar a coragem, mas para tomar seu lugar” (I.13).
Assim a guerra não apenas é má conselheira, ela toma o lugar da coragem e do verdadeiro heroísmo, aquele que conduz a humanidade â concórdia, â tolerância e a verdadeira civilidade.
Pode parecer altruísmo, mas o verdadeiro ensinamento cristão e que está presente em muitas religiões, lembre do hinduísmo de Ghandi que defendia intransigentemente a paz, então diz o a leitura atenta da Bíblica: “Vós ouvistes o que foi dito: Olho por olho e dente por dente! Eu, porém vos digo: Não enfrenteis quem é malvado! Pelo contrário, se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda!” (Mt 5,38-39).
Podemos evitar uma catástrofe civilizatória, mas não sem perdão e concessões. Ainda dá tempo.
Pestes, ira e guerras
Porque estes fenômenos são cíclicos e parecem estar relacionados, uma análise mais profunda do contexto do livro de Steinbeck as vinhas da Ira pode ajudar esta análise.
Além da grande depressão de 29, também as consequências da I guerra mundial e da peste negra influenciaram indiretamente a questão da exploração da mão de obra no Oeste os EUA, porém além destas questões sociais mundiais, um fenômeno natural aconteceu na região central americana, uma espécie de tempestades de poeira duradoura chamada “Dust bowls” que atingiu a região (foto).
Assim lembremos que a destruição da I guerra mundial e a gripe espanhola destruiu a economia europeia e os americanos foram os grandes financiadores da recuperação, isto gerou um boom de produção, consumo de matéria prima e riqueza nos EUA, porem a especulação financeira (pois eles financiavam a reconstrução da Europa) seguiu-se a uma enorme bolha que depois explodiu.
Assim os agricultores endividados em bancos dos estados centrais americanos, justamente onde o fenômeno Dust bolws ocorreu, se viram obrigados a deixar suas terras e bens penhorados e ir se oferecer como mão de obra barata e temporária no oeste americano, os boias frias americanos.
Este é o cenário de denuncia e ira de Steinbeck, e a desolação que o ex-presidiário Tom Joad encontra ao procurar sua casa e parentes, porém o pano de fundo é maior que o explorado por muitos críticos e comentaristas.
É de se perguntar o que faz um fenômeno tão estranho em meio a este cenário, teriam as causas naturais ligação com a maldade humana e também ela traria este tipo de consequências, é difícil analisar sem uma nenhuma crença em forças divinas superiores às humanas, porém sempre dependentes delas, por exemplo, sabe-se que as perfurações de minas, de petróleo influenciam as placas tectônicas, as agressões a natureza influenciam os climas, etc.
O importante é que não nos fixemos numa análise simplista por parâmetros exclusivos e alarguemos às análises para encontrar as verdadeiras raízes e causas de nossos problemas que a ira, as guerras e o ódio geralmente ignoram.
Assim a ira, a guerra e a análises simplistas e unilaterais não são apenas um erro políticos, mas fogem da racionalidade e das verdadeiras causas dos problemas onde se encontram as soluções.
STEINBECK, J. As vinhas da ira. Trad. Herbert Caro e Ernesto Vanhaes. 10ª. Ed. SP: Record, 2012.
Geopolítica da guerra e “viroses”
Nem o grave terremoto na Turquia e Síria, já com mais de 25 mil vítimas fatais, conseguiram aplacar o espírito de ira e vingança que sacode o planeta.
A guerra sofre uma escala em uma geopolítica mundial, o navio russo Almirante Gorshkov (apoiado pelo cargueiro de abastecimento Kama) passa pela costa da Europa e vai em direção aos EUA (lembra a crise de Pearl Harbour (1941) e mísseis em Cuba (1962)), depois de balões “espiões” agora há uma onda de Objetos Voadores não identificados abatidos, que não são alienígenas, mas apenas aparelhos não conhecidos.
No aspecto da pandemia, algumas mudanças de comportamento do vírus sincicial (nome complicado para massa multinucleada de citoplasma formada pela fusão de células originalmente separadas) que acontecem em viroses sazonais, agora parecem ter um comportamento atípico e fora de época, no hemisférico sul, por exemplo, ainda estamos no final do verão.
Voltando a guerra, a fragata Almirante Gorshkov navegava em direção a África, era acompanhada por um navio de abastecimento que seguiu este percurso, mas a fragata mudou de rumo e agora vai em direção aos Estados Unidos o que provoca um aumento de tensão na guerra que já não era só da Ucrânia e Rússia, também alguns mísseis russos ultrapassaram a fronteira sul da Ucrânia e foram em direção a Moldávia, cresce o sentimento de uma guerra total.
É bom lembrar que a fragata em direção aos EUA tem os temíveis e imbatíveis misseis hipersónicos Zircon, mesmo estando em aguas internacionais, pode chegar a uma distância para que a costa leste americana seja atingida com segurança, o que certamente agravará a crise internacional e eminente conflito.
Depois do evento dos balões, aquele acusado de espião no espaço aéreo americano, outros dois “objetos não identificados” (que não tem alienígenas) foram abatidos, e neste domingo (12/02) um destes objetos foi abatido na China, tudo indica espionagem e contraespionagem em curso.
No plano da Pandemia, estas viroses extra sazonais preocupam pela gravidade e volume, Marcelo Gomes coordenador do InfoGripe (da Fiocrus), afirma que estas viroses chamadas de VSR (Virus sincicial respiratório) podem ser atribuídas a dois fatores: a mitigação dos cuidados com a pandemia que também coibia outros vírus e a falta de controle em ambientes coletivos, que impedia maior contato e circulação de vírus socialmente.
Tanto na guerra crescem a preocupação tanto com a paz, como com a possibilidade de novas pandemias, o clima internacional segue tenso, recentemente houve toca de farpas entre o premiê francês Makron e a primeira ministra italiana Giorgia Meloni, que foi excluída da reunião com Zelensky.
A paz está ameaçada e o descuido com a pandemia (ou mesmo a pós-pandemia) pode gerar uma onda de viroses e efeitos colaterais.
Essência, o justo e a ética
Ao discutir a “vida boa”, conceito clássico que Paul Riocour retoma em sua reflexão sobre o justo, ele o liga a filosofia clássica onde “ é “o desejo de uma ´vida boa´ com e para os outros em instituições justas”, e há problemas nas instituições democráticas, porque abandonou-se o conceito do ser.
A reflexão que fizemos sobre a questão do Ser em Heidegger, deixamos um link para o que é essência pensada como agir, on se diferencia o universal concreto de universal conceitual ou representacional, o agir é uma questão e não se pode reduzi-lo ao conceito, então envolve uma interioridade, e não apenas uma subjetividade ou objetividade, como queria Hegel.
Assim a justiça depende do Justo, que questiona e corrigi seu agir, nisto consiste a dialética Platônica, vista como a arte de pensar, de questionar e de organizar as ideias (eidos grego), e isto implica em corrigir a ação pelo pensar, não apenas punir, mas modificar o pensamento sobre a ação.
Não podemos apenas questionar os aspectos legais da justiça sem que cada homem, incluindo aqueles que praticaram crimes, possa repensar e agir de forma nova na condução de sua própria vida e da vida com os outros, claro há reincidentes, mas tanto as normas para isto são claras, para a correção não.
O que há de fundo na eticidade de Hegel, e insto perpassa o pensamento de Rawls é que devemos sempre optar entre dois males, quando é possível corrigir tanto o mal menor (de onde se originam maus maiores) como o mal maior para repensar a sociedade e a justiça, inclusive na distribuição dos bens sociais.
O longo discurso de Jesus aos seus discípulos em Mt 5,17-37, ele explica que a justiça deles deveria ser superior a dos homens, começa explicando que não veio abolir a lei e os profetas, mas dar a ela maior amplidão, depois explica sobre não matar, e diz que mesmo quem se encoleriza contra os irmãos já está pecando, enfim vai dando a cada ensinamento “legal” maior profundidade, e assim não é mero legalismo, mas o pleno cumprimento do que é justo.
Aqueles que condenam a norma, e lembram apenas do fato dos fariseus não permitirem que Jesus curasse e fizesse o bem no sábado, sem dúvida uma hipocrisia, não podem esquecer que para Ele haviam “leis divinas”, que corrigiam a ação humana e que a sociedade moderna quer abolir.
A liberdade plena significa também a justiça plena, e não há sociedade justa sem homem justos, é preciso educa-los, isto se pensa desde Platão.
A eticidade e o justo
A compreensão do que é a ética, já vimos nos posts anteriores, é fundamental para compreender o que é justo, porém a ética grande se desenvolveu para o idealismo contemporâneo, e enquanto o neocontratualismo é só uma verdade, o conceito de eticidade é essencial para entender os valores idealistas.
O sistema hegeliano pode ser visto em três partes (apenas didáticas): a ideia, a natureza e o espírito, a ideia é o plano geral da filosofia moderna (a esquerda os novos hegelianos e a direita os velhos hegelianos), a natureza é parte essencial para discutir o contratualismo e suas vertentes, o espírito se divide em: objetivo, subjetivo e absoluto.
Enquanto o absoluto remete a ideia do “puro”, o dualismo objetivo e subjetivo são parte do dualismo contemporâneo, quanto a justiça o objetivo pode ser dividido em: o direito abstrato, a moralidade e a eticidade.
É um tema demasiado longo e profundo, como é próprio do pensamento hegeliano, mas como consciente ou inconscientemente ele domina boa parte do pensamento (pelo menos aquele que é elaborado, é comum agora não se elaborar e apenas dizer, tipo “simples assim”), a eticidade é essencial para lê-lo.
Em Princípios da Filosofia do Direito, no parágrafo 142 ele escreve: “que minha vontade seja posta como adequada ao conceito e com isto e com isto superada e guardada sua subjetividade”, como é próprio do pensamento idealismo, a objetividade se sobrepõe a subjetividade (que é própria do sujeito) e grosso modo pode-se dizer que aqui reside a diferença fundamental com Paul Ricoeur, pois este se debruça sobre o que é Justo (subjetivo) e não justiça.
A passagem suposta de uma subjetividade abstrata para um substancial e de um universal para um concreto é realizada assim a eticidade é a própria definição do que é o bem e o que é da vontade subjetiva, no método hermenêutico, há uma intencionalidade e não uma subjetividade.
Assim a moralidade se reduz a moralidade social, ou a moralidade objetiva, enquanto indivíduo ele só pode se realizar em comunidade e nega a interioridade ou subjetividade.
No entanto, não há justiça sem homens justos, e em muitos momentos da história os homens tiveram que romper com tiranos, com falsos valores que se escondiam em torno de propostas sociais aparentemente altruístas, mas cujo projeto era de dominação, já diferenciamos poder de dominação.
Na perspectiva hermenêutica tanto o inconsciente como o imaginário são relevantes para a compreensão de um contexto, e eles estão quase sempre fundamentados em pré-conceitos, e o indivíduo se pergunta como se inserir numa história, também se pergunta qual ação objetiva deve realizar.
Sobre a universalidade, a fenomenologia rejeita a ideia do abstrato “puro”, Ricoeur vê um conflito entre o particularismo solidário e que somente um aprofundamento sobre aspectos interculturais podem concluir quais pretensos universais serão universais reconhecidos em diversas culturas.
Ao tratar da questão da justiça sobre a perspectiva social dos bens, Ricoeur trata do problema analisando a concepção puramente procedimental feita em Rawls, para ele o problema desta concepção está no fato que ela não se dá conta da heterogeneidade dos bens que estão implicados quanto a sua distribuição e para quais instituições foram definidas, o uso político, o proselitismo e o condicionamento de deveres definem muitas instituições.
Ricoeur também analisa o conflito de deveres em no âmbito da solicitude, e usa o caso da Medicina no âmbito da Anistia Internacional, fosse escrito agora na pandemia ele teria um belo exemplo para questionar esta questão da distribuição dos bens, como foram os casos das vacinas.
O justo e o legal
A legalidade evidentemente baseia-se nas leis, mesmo que estranhas ou questionáveis, ela é uma espécie de “contrato social” para se viver em sociedade, por isto o tema do post anterior é relevante, ainda mais se for considerado que o ponto mais alto do que é legal hoje é o neocontratualismo.
Paul Ricoeur escreveu em dois volumes sobre o assunto, feito na forma de ensaios, no terceiro ensaio ele trata da Teoria da Justiça de John Rawls, não só atesta sua atualidade como também ele reivindica aquilo que quase todos nós dissemos em um momento da nossa infância: “isto é injusto” e então isto precede ao sentido do Justo como também dizem respeito não só ao direito, mas a todas as pessoas.
Ricoeur no prefácio de Justo 1 já atenta para o detalhe que o tema está conectado a ideia do que é ético, na filosofia clássica, é “o desejo de uma ´vida boa´ com e para os outros em instituições justas”, e aqui situa-se boa parte da crise civilizatória: a desconfiança que há nas instituições democráticas.
A expressão “vida boa” retomada de Aristóteles é um qualificativo de bom num sentido estrito do ético, assim o bem é inseparável do bem do outro, sob a pena de nada mais ser do que um egoísmo repreensível, que rebaixa o sujeito no sentido do plano moral.
Dito de forma mais clara a relação com o outro é constitutiva da consciência de si, e ela é em certa medida um ético além do legal e do meramente moral.
Onde apenas é determinante a obediência, mesmo com uma conformidade interior à Lei moral, podendo ela ser incontornável de toda vida ética, essa tem algo para além da Lei, nela o homem deseja o Bem, aspira o Bem para si e para os outros, num sentido que torna-se também consciência para o outro.
É obvio que isto encontra uma barreira em nossas falhas, os maus sentimentos, as más ações, a violência que marcam a sociedade desde os tempos mais primitivos, neste sentido é preciso despertar a consciência da culpabilidade, que encerra nela a própria concepção de julgamento, isto significa limitar-se.
Por isto o tema da liberdade é relevante, deseja-se tolher qual liberdade e a pretexto de qual concepção de justiça, assim é preciso “instituições justas”.
Assim esta é a formula de Ricoeur: “: « o desejo de uma vida boa com e para os outros em instituições justas », sem elas o legal torna-se revoltante.
Porém é preciso dizer que as “instituições” não se limitam ao aspecto jurídico, do mesmo modo que o justo não se reduz ao legal, é preciso analisar a fundo.
Para explicar isto Ricoeur diz o que é consciência da Lei: “Aplicar uma norma a um caso particular é uma operação extremamente complexa, que implica um estilo de interpretação irredutível à mecânica do silogismo prático”, ou seja, simples regras lógicas, há não uma subjetividade, mas uma transcendência.
Ao fazer uma palestra a Associação L´Arche (fundada por Jean Vanier) que cuida de excepcionais, ele abordou o tema e falou de respeito ao tratar da diferença entre o normal e o patológico, apoiando-se nas obras de Georges Canguilhem, que discute a epistemologia da biologia.
RICOEUR, Paul. O justo ou a essência da justiça. Trad. Vasco Casimiro. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.