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Arquivo para a ‘Cognição’ Categoria

Ser grato não é tão simples

13 nov

Parece que ser grato e dizer obrigado por pequenos ou grandes gestos de amigos, parentes e mesmo desconhecidos seja uma atitude comum, mas não é, a cultura paternalista e de certa forma assistencialista tornou o que é uma atitude de bondade em quase uma obrigação.

Alguns filósofos e até mesmo cientistas colocaram sobre a atitude externa (dita objetiva) e interna (ter compaixão pelo outro) em campos distintos quase opostos.

Para o senso comum descreveu Popper não é então a simples objetividade ou subjetividade desenvolvida pela filosofia idealista, ou ainda a intersubjetividade que liga a subjetividade de indivíduos ou discursos, é a possibilidade de atingir o conhecimento de coisas, situações e pessoas que leve ao conhecimento de determinada forma de saber que tenha fundamentos culturais, sociais ou mesmo de crenças que os levem a atitudes pro-ativas.
Então leva atos feitos isoladamente a um circulo virtuoso de atitudes, é claro que Popper não falou de gratidão, mas Marcel Mauss escreveu nos anos 20 a teoria da dádiva, ou do “dom” que é tirar a simples remuneração ou recompensa por atitudes positivas, porém não há problema em haver remuneração, este é seu aspecto idealista, mesmo neste caso pode haver gratuidade se feito como dom a quem recebe o serviço.
O que leva a gratidão e não a recompensa é como está na origem etimológica da palavra a noção de gratuidade que deve acompanhar mesmo aqueles atos para os quais existem uma justa remuneração, sem seja uma forma instrumentalizada ou corruptora aquele ato.
Assim a colaboração, a cooperação e até mesmo ações totalmente gratuitas que possam envolver valores, como é o caso de salários pagos, que devem ser pensados como atos de fraternidade e compaixão como os que estão envolvidos naquele ato.
Assim como atos contínuos levam a uma atitude, também gratidão contínua pode levar a gratitude, pode e não deve porque há uma diferença em ambos casos que é o fato que se não se torna um ato e uma gratidão social, mesmo havendo atitude e gratitude pode perder-se e levar a descontinuidade de atos e gratidões, isto é um problema em determinadas culturas.

Ser grato é uma atitude interior de amor e externa de reconhecer e dizer obrigado.

 

As guerras e as narrativas

08 out

Ésquilo escritos da Grécia antiga é o autor da frase: “a verdade é a primeira vítima da guerra”, o general russo aposentado Andrey Gurulyov, falou no canal Russia-1 apontando quais seriam os alvos da Rússia, que se preparava para uma grande guerra, a Jihad islâmica é um grupo de forte influência no Irã e que prega o fim de Israel, seu discurso é teocêntrico e não geopolítico.

São apenas algumas meias-verdades sobre a guerra, claro não escapam Israel e a Ucrânia que são aliados do ocidente na luta geopolítica econômica de preservar direitos de empresas e grandes capitais, por isso os dois lados tem dificuldades de entender a paz “civilizatória”.

No diálogo de Platão Teeteto, apontado com um dos primeiros na história sobre o relativismo, aparecem conjugadas as ideias de aparência, verdade e alma; a primeira exigência de Sócrates para iniciar o diálogo é que Teeteto abandone suas ideias iniciais, e ao perguntar sobre o que é conhecimento e obtendo a resposta sobre a Geometria e demais artes, Sócrates responde com ironia: “És nobre e generoso, amigo, pois te pedem algo simples e tu ofereces múltiplas e diversas coisas”.

A segunda questão é como chegar ao conhecimento, e a resposta de Teeteto é a “sensação” (ou percepção) que Sócrates indica que devemos abandonar a “familiaridade” que temos das coisas, diz no diálogo: “Parece-me que aquele que conhece algo percebe aquilo que conhece, e para dizer a coisa tal como agora ela se manifesta, o conhecimento nada mais é do que sensação.”

Assim são dois passos primários e essenciais para a verdade, a segunda resposta é um avanço sobre a primeira, pois assim os gregos as considerava: “Sobre isto todos os sábios, um atrás do outro, exceto Parmênides, devem concordar: Protágoras, Heráclito, Empédocles e, dentre os poetas, os que estão no topo de cada uma das composições, Epicarmo, na comédia, e Homero, na tragédia…”, citando os gregos até aquele período, os chamados pré-socráticos.

Assim até então, a verdade estava circunscrita a sensação, ao iniciar o diálogo sobre Protágoras chega a ideia do primeiro equivoco da verdade relativa: “O homem medida de todas as coisas não seria, ao fim e ao cabo, um homem confinado ao círculo restrito de sua experiência mais imediata e do que apenas a ele parece verdadeiro” e isto remete a aparência.

Usando esta ideia de “familiaridade” com as coisas, Platão abre uma crise na ideia dos gregos sobre conhecimento, e assim abrir um caminho novo ontológico sobre a alma, partindo de Homero “coração da alma” (194c), dificilmente haveria ocasião para erro, pois esta (a alma) prontamente faria a identificação correta da impressão atual, rompendo preconceitos.

PLATÃO. Teeteto. Trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

 

Acreditar na proteção divina e fazer o bem

02 out

Apesar do clima de guerra devemos desejar a paz, alertamos no post de ontem que uma escalada era eminente e aconteceu, o clima e discursos de ódio de ambos lados na atual polarização mundial avança e só estarão em paz aqueles que continuam a fazer o bem.

Parece heroico, inocente ou mesmo pueril continuar a desejar e fazer o bem, mas este é o único caminho para não cair na banalização do mal, na polarização e no discurso desumano.

Ontem na noite de segunda no Brasil e madrugada de terça em Israel, mais de 180 mísseis do Irã foram lançados sobre Israel, eram mísseis hipersónicos que viajaram em 12 minutos até atingirem o solo de judaico, o número de vitimas e alvos atingidos não foram divulgados.

O envolvimento do mundo árabe, a Turquia, Líbano e Síria já declararam apoio ao ataque, que teve comemorações palestinas em Gaza, leva o confronto a uma escala mundial, nos Estados Unidos, Biden pediu às forças na área a defesa de Israel, que promete retaliação ao Irã.

A possibilidade de fechamento do golfo de Omã afetará o preço do petróleo mundialmente e com isto o encarecimento de produtos que dependem do transporte e da logística mundial.

Somente aderindo ao bem, a paz e sua vida no dia-a-dia é que nós podemos nos manter num clima emocionalmente equilibrado e sereno, mesmo diante de circunstâncias adversas, onde todo cedem ao pânico, ao ódio e a banalização do mal.

Para a filósofa Hannah Arendt a banalidade do mal é o fenômeno que recusamos no nosso caráter à reflexão e a tendência de não assumir as consequências de iniciativas de atos que não assumem as consequências do mal, e com isto impedem a adesão ao bem.

Somente temos uma proteção em nosso espírito e alma quando resistimos a tentação ao mal, aquilo que também o filósofo e educador Edgar Morin chama de “resistência do espírito” em meio a polarização, ao ódio e a guerra, com o bem atraímos a paz a nossa volta e a proteção divina.

 

Sofistas e o relativismo

25 set

A questão política e a polarização atual envolvem um problema milenar: o sofisma, sua origem na Grécia antiga é o que Platão iniciar uma escola de formação de filósofos para criar homens da “polis” que servissem não apenas a governo autoritários, mas as cidades-estados Gregas.

O discurso feito em Teeteto sobre a natureza do conhecimento, escrito em 369 a.C., é onde aparece, ao menos claramente pela primeira vez, explicitamente na Filosofia, o confronto entre verdade e relativismo.

Nele um personagem chamado de “o Estrangeiro de Eléa”, que seria tanto um companheiro de Parmênides quanto de Zenão”, elabora um tema acerca de três figuras importantes na escola platônica: o sofista, o político e o filósofo, porém nele somente não escreveu acerca da definição do filósofo que seria investigada em outros textos, porém o político para ele, por excelência, seria o filósofo, que entre outras coisas deveria ter “Aretê”, ou seja, virtudes.

A razão que há coincidência com o discurso político atual, e esta origem do relativismo, pode ser vista na explicação que ele dá sobre a realidade e a imagem que procuram representar, ambas não são aquilo que representam, no então, claramente, são alguma coisa, por exemplo a imagem de uma casa pode parecer e mostrar muito bem o que é uma casa, sem sê-la.

Assim como as imagens de um cão, se caracteriza por não ser realmente um cão, o conteúdo de um discurso falso caracteriza-se por não ser o que realmente de fato é, ambos dizem algo sobre a verdade, mas são em essência coisas diferentes.

Apesar disto no discurso permanece uma contradição ontológica, como anuncia emblematicamente o Estrangeiro: “tal afirmação supõe ser e não ser”, tese clássica de Parmênides, embora a raiz de seu pensamento seja lógica e não ontológica.

Assim a aparência e a imagem não coincidem com a verdade real, embora possa confundir um espectador pouco atento elas não são a mesma coisa, discerni-las é condição essencial para exercer a verdade, assim podemos não permanecer na verdade ao embarcar em “imagens”.

Há um dito popular, não se sabe quem falou isto pela primeira vez, mas na guerra a primeira coisa que morre é a verdade, e suas consequências mais que trágicas, levam a uma crise do que realmente somos como humanidade e com nossos direitos inalienáveis que são roubados.

 

A essência e a virada linguística

28 ago

O dualismo presente hoje nas relações humanas e sociais, concebe a essência apenas como analogia ao Ser, e isto ficou perdido na doutrina tomista, tornando-se uma onto-teologia até o século XX, isto é, uma visão teológica que só tem relação dual com o ser social, só com a variada linguística e a fenomenologia e com o reencontro do Outro, o não-Ser é retomado não como contradição, mas como essência do Ser.

A longa discussão do período medieval entre realistas e nominalistas, tinha como base um termo hoje pouco conhecido que era a quididade, que significa que coisa a coisa é, desde a hylé grega até os modelos modernos da metafísica de Heidegger, onde a coisa que pode ser material ou não, que já era pensado na linha de Husserl, seu antecessor e professor, que afirma que só existe consciência de algo, ou da coisa.

Existiu um filósofo na idade média, Duns Scotto (1266-1308) que não fazia distinção entre a coisa que existe (si est) e o que ela é (quid est), e teologicamente era complicado pois a tese de Tomás de Aquino (1225-1274) era pela analogia, ou seja, o significado de semelhança entre coisas ou fatos (dicionário Houaiss, 2009, p. 117),  e os religiosos sempre apressados cuidado porque no século XX Duns Scotto foi aceito dentro da doutrina cristã católica, tornando—se beato (João Paulo II o declarou).

Embora chamado de realista moderado, já era de certa forma, um linguista e um precursor da viragem linguística, também William de Ockham, seu discípulos trabalhou a questão da linguagem, com o famoso tema chamado de Navalha de Ockham, mais que a simplificação o uso da linguagem como forma de superação do dualismo nominalismo/realismo.

A sua teoria do conhecimento de Scotto, trás distinções conhecidas distinctio realis (distinção real) e existe entre dois seres da natureza, e a distinctio rationalis (distinção de razão) que se dá entre dois seres, mas na mente do sujeito que conhece, mas rompe o dualismo ao criar uma terceira possibilidade a distinctio formalis (distinção formal) que se dá no ente percebido e não é nem real e nem na mente.

Assim além de seu discípulo William de Ockham, famoso pelo princípio a simplificação chamado Navalha de Ockham, mas de certa forma Descartes, Leibniz, Hobbes e Kant tiveram sua influência.

Em tempos de pandemia foi muito mais importante a fraternidade de socorrer vítimas, que o debate ainda incerto da ciência e das “crenças” que este ou aquele procedimento é certo, em ambientes hostis quem venceu foi a morte, assim dogmáticos e autoritários só atrapalharam, porém isto também se perdeu.

Assim é fundamental para retomada da consciência do Ser que tenhamos presente o Outro, sem ele a sua essência e como ele é para cada homem fica preterida.

O que somos interior e exteriormente tem a ver com esta essência perdida.

 

O coração e a fé

02 ago

O coração é um órgão vital, irriga o sangue em todo o organismo chegando a todas as células do corpo humano, quando falamos de crenças (elas estão ocultas também em objetos do conhecimento humano, acreditamos que uma coisa é de certa “forma”) não falamos apenas da fé.

Byung-Chul Han ao fazer sua análise partindo dos autores clássicos da filosofia ocidental, aborda uma perspectiva daquilo que vai chamar de “tonalidade afetiva”, se concentrando de modo principal em Heidegger.

Seu livro, diferente de outros que são só ensaios, tem “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger” (Ed. Vozes, 2023), seu primeiro livro a meu ver, com análise nova, humana e a até mesmo espiritual do cerne da filosofia ocidental.

Parte de um conceito caro a civilização judaico-cristã, que é o da circuncisão, porém da circuncisão do coração e não do órgão falido (a pele presa no início do pênis), é preciso lembrar que embora órgão masculino ele é emblema do poder, da autoridade e do desejo, foi culturalmente numa cultura bélica.

A parte de sua visão com sua visão oriental e que tem um sentido espiritual para toda a sua questão filosófica, Han vai desenvolver que é a circuncisão do coração, aquela que modula e rege o afeto, a circuncisão tem um sentido diferente do que é comumente falado, a polêmica entre cristãos e judeus no início da era cristã, é a circuncisão do coração.

A circuncisão é o ato de retirar a pele do órgão sexual masculino, porém mesmo no sentido bíblico já era a do coração, em Deuteronômio se lê: “Circuncidai, pois, o prepúcio do vosso coração, e nãos mais endureçais a vossa cerviz” (Dt 10,6), citando na epígrafe do primeiro capítulo do livro: “Circuncisão do coração” (Han, 2023, p. 7).

Assim, “esta circuncisão liberta o coração da interioridade subjetiva” (Han, 2023, p. 11), e há uma conclusão preliminar surpreendente em Heidegger: “O coração de Heidegger, por outro lado [confronta com Derrida], escuta uma só voz, segue a tonalidade e gravidade do “uno, o único que unifica” (Han, 2023, p. 14-15), para ele é um “ouvido do seu coração” e assim há algo forte de espiritual nisto.

É ali que o ser humano encontra sua essência: “permanece sintonizado com aquilo a partir de onde sua essência é determinada. Na determinação sintonizadora o homem é afetado e chamado por uma voz que soa tanto mais pura quanto mais silenciosamente ela ressoa através do sonante” (Han, 2023, p. 15) citando literalmente Heidegger.

Não dirá que é a fé, e revela a influência budista de seu pensamento, único elo, a meu ver, do autor com o idealismo, pois no budismo há uma elevação apenas pessoal, não há uma Pessoa do outro lado, que ressoa através do sonante, aquela voz do Espirito Santo.

A discordância de Derridá e Heidegger, esclarece o autor: “A ´polifonia´ que Derrida opõe à totalidade não exclui a tonalidade” (pg. 16) diríamos se estes autores Han, Derrida e Heidegger fossem cristãos, que Heidegger e Han seriam monoteístas e Derrida seria politeísta, porém é claro que esta “voz sonante” não é a de Deus, mas do interior.

Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

Espírito e poder

25 jul

Poder e autoridade parecem se confundir, porém não é verdade na medida em que crescem no mundo governos autoritários e este foi sempre um péssimo sintoma civilizatório porque indica tanto as contendas como no limite delas as guerras.

Byung-Chul Han em seu livro “No enxame” explica após dizer sobre a necessária distância na esfera pública, que as “ondas de indignação indicam, além disso, uma indicação fraca com a comunidade” (Han, No enxame, 20,18, pg. 22) e ele tem um livro específico sobre o poder.

O livro O que é poder? (2019) tem uma longa análise sobre a questão em Hegel, isto se justifica tanto pela influencia no pensamento ocidental quanto pela incidência da visão de poder que atinge toda a esfera pública, porém salientamos o seu vago conceito de Absoluto e a influência até mesmo religiosa, vista no post anterior.

Sua análise é importante quando remete aos conceitos ontológicos, assim define que “o ente é, até quando for finito, rodeado pelo outro” (Han, 2019, p. 110) e o Ser deve gestar uma negatividade em si, não se trata aqui de “maus pensamentos” e sim o conceito que cita em Paul Tillich (1886-1965) que a potência do ser como “capacidade dos seres vivos de superar a negatividade, ou como ele diz, o “não ser”, ou seja, a quem não envolve-la na autoafirmação” (pg. 111).

Citando-o Han afirma: “tem-se mais potência de ser, porque deve ter sido superado mais não ser, e enquanto possam-se superá-lo. Quando não puder mais aguentar ou superar, então é a impotência total, o fim da potência do ser, o acontecimento. Esse é o risco de todo ser vivo” (Han, 2019, p. 111).

Cita a tese de Foucault que o ser humano seria “o resultado de uma submissão” (pg. 118) e Hegel que pensa que o poder deve atuar primariamente de “maneira não repressiva” (pg. 119) entretanto, ambos não abandonam a ideia do Absoluto, que na verdade vem do Príncipe de Maquiável e do Leviatã de Thomas Hobbes, e o como diz o autor: “o poder promete liberdade” (pg. 121).

A necessidade de criação de uma religião “neurótica” do poder, para Hegel viria da ideia de Deus, o poder que Ele tem o poder de “ser ele mesmo”, isto vem do idealismo que não supera a divisão entre sujeito e objeto, ou seja o Criador e o criado (seres e entes) não se compõe.

Não há dúvida que o poder, sem a necessária negatividade do não ser (a inclusão do Outro) é uma neurose como diz Hegel, e assim seu “deus” ou “o espírito” “ainda seria uma aparência desta neurose” (Han, 2019, p. 121).

“A dor da finitude pode ser perfeitamente a dor de qualquer limite que me separa do outro, que apenas pode ser superada pela criação de uma continuidade particular … ela não tem a continuidade do self que o poder cria. Ela não tem a intencionalidade da volta-a-si” (Han, 2019, p. 121).

O poder neurótico de Hegel não é o do Criador, é do ser enjaulado no si-mesmo, incapaz de olhar e servir o Outro, de sair do si, de negar-se para servir o Outro, é um poder neurótico.

 

A religião idealista

24 jul

Entre os jovens hegelianos, aqueles que junto com Marx criticaram os “velhos hegelianos”, em especial David Strauss e Bruno Bauer, estava Ludwig Andres Feuerbach (1804-1821) muito mais conhecido pelas “Teses sobre Feuerbach” de Karl Marx, do que por sua própria obra, mas os seus conceitos, ainda que criticados por Marx o influenciaram também além dos outros “novos hegelianos” conhecidos também como a “esquerda hegeliana”.

Feuerbach vindo de um ambiente católico foi educado no protestantismo, desde jovem orientou-se para a religião iniciando seus estudos na Universidade de Heidelberg, mas ao conhecer Friedrich Hegel, abandona a teologia e torna-se aluno deste filósofo por dois anos, o que provoca profundas mudanças em seu pensamento e cria o que chamo aqui de “religião idealista”, mas o Deus do cristianismo não é mais o deus de Feuerbach.

A ideia de absoluto de Hegel é bem conhecida, onde o seu “em si” que é seu “uno” não se aliena à matéria para enfim surgir como “Espírito Absoluto”, mas o homem, como espécie consciente, é o próprio infinito e absoluto, sendo a razão do homem para sua “libertação” em detrimento de uma doutrinação ou de uma cristianização (Feuerbach, 2013, p. 2-23) este Deus que o homem “imagina” é para o jovem hegeliano agora na verdade seu próprio ser, sua própria essência, é preciso entender que Ser para os idealistas não é o Ser ontológico, e sim um ser “antropológico”.

Assim a religiosidade, na análise idealista, não estaria vinculada a um ser imaterial, que transcende o humano (a transcendência idealista é o conhecimento do objeto), não é um Ser atemporal e criador, mas a própria natureza, noutro caminho Spinoza também explorou isto.

Assim Feuerbach entende que a relação do homem com o seu “deus” que é diferente de outros “jovens hegelianos” (Marx vai criticá-lo), o seu deus ou deuses, está fundado na sua própria ex-sistência, assunto também explorado na ontologia, mas visto como uma relação com o “tempo” ou ser o ser temporal.

O deus idealista é aquele que o homem externaliza “nada mais é do que a essência divinizada” (Feuerbach, 2009, p. 29), de certo modo mais ainda como “a história da religião é a história do homem” (Feuerbach, 2009, p. 30) e aqui encontra-se o marco divisório com Marx porque este vê a história como o seu “modo de produção”, a relação com o trabalho e os meios de produção para realiza-lo: feudalismo, capitalismo, etc.

Assim Feuerbach entende que a relação do homem com o suprassensível, que para ele “existe” isto é tem sua ex-sistência, é na verdade uma “patologia estética”, uma amalgama de sentimentos místicos que são ao mesmo tempo alicerce e fomentador da religiosidade: “Luto e dor pela morte de uma pessoa ou pela diminuição da luz e calor, alegria pelo nascimento de uma pessoa, pela volta da luz e do calor após dias gelados de inverno ou pela colheita, terror diante de fenômenos em si terríveis ou pelo menos na imaginação do homem … (Feuerbach, 2009, p. 49).

Assim o grande equívoco, mesmo para “religiosos”, é separar a substancialidade da espiritualidade, é ao nosso ver a essência da falsa ascese contemporânea.

FEUERBACH, Ludwig. Preleções sobre a Essência da ReligiãoTrad. José da Silva Brandão. Petrópolis/RJ. Editora Vozes, 2009.

FEUERBACH, Ludwig. A Essência do CristianismoTrad. José da Silva Brandão. Petrópolis/RJ. Editora Vozes, 2013.

 

Sabedoria e simplicidade

17 jul

Entre as várias narrativas contemporâneas, uma das mais absurdas é o elogio da ignorância como se ela fosse aliada da simplicidade e da humildade, desde o mundo “cultural” ao religioso isto é transformado em narrativas: ele não frequentou faculdades, não leu um livro, não andou entre sábios, etc. não confundir isto com a capacidade de viver com simplicidade e entre pessoas simples.

Não é sinal dos tempos, não é “geracional” é apenas desinteresse pela verdadeira ascese, por um crescimento interior e exterior que deem a sua natureza humana aquele algo mais que é a única coisa capaz de tirar de depressões, angústias, ansiedades e outras doenças atuais.

O homem sábio é observador, e observa não apenas as cenas cotidianas, aquelas que vivem diversos tipos de pessoas, em especial as mais simples, mas também aquele que procura na história da humanidade aqueles ápices de momentos civilizatórios que nos fizeram mais gente, mais humanos e mais solidários, há muitos exemplos, autores e pessoas que nos deram isto.

Postamos ontem sobre água fresca e comida quente, mas em várias regionalidades isto tem contornos e aspectos culturais interessantes, por exemplo, em muitos países não há o café da manhã, me contava um africano, em Portugal há o pequeno almoço que é um café da manhã simples, e no Brasil que se chama café da manhã é na verdade um pequeno almoço.

O que ler além é claro de sua crença pessoal, ler a Bíblia, o Alcorão, os Vedas ou aquilo que é sagrado ou culturalmente lido em uma determinada cultura, o livro vermelho na China por exemplo, o segundo livro mais lido no Brasil é O pequeno príncipe, embora O alquimista de Paulo Coelho seja o 5º. no mundo, mas Ilíada e Odisseia ainda são pouco lidos, Rei Lear e Otelo de William Shakespeare cada vez menos conhecidos.

Claro sabedoria não significa cultura literária, mas longe dela torna-se também narrativa no sentido que desconhece a história cultural, o modelo moderno do romance está presente em toda a cultura ocidental, e Honoré de Balzac e Gustave Flaubert são representantes para gostos distintos, mas até mesmo para uma crítica social deveriam ser lidos.

Alguém pode lançar o argumento filosófico, é toda uma cultura eurocêntrica, verdade, porém foi incorporada nos pensamentos cotidianos, o nacionalismo através das cores nacionais está em todo o mundo, a liberdade de expressão, como dizia o romântico Vitor Hugo (de Os miseráveis, foto): “Nem regra, nem modelos” é uma expressão também de individualismo e heroísmo pessoal, porém histórico.

Fizemos vários posts sobre o ser, a interioridade e o complemento da Vida Contemplativa com a Vida Ativa (Hannah Arendt e Byung-Chul Han em especial), sobre a metodologia do círculo hermenêutico onde devemos ouvir o texto (e também os diálogos) para fusão de horizontes e ainda o desastre da nossa cultura ocidental e a necessidade de resistência do espírito.

 

Ascese e ascensão social

14 mai

Está ligada a ideia de ascensão o crescimento na escala social, porém este tipo de ascensão não se refere a ascese, aquela que moral e virtualmente (de virtude) alguém se eleva.

A ideia de acesso aos bens sociais e a visibilidade pública, também não está ligada a ascese, vivemos em tempo que a notoriedade social através dos modernos recursos de mídias digitais, a propaganda e a indústria cultural existem desde o início do século passado, não indica uma ascese espiritual e moral, sendo muitas vezes exatamente o oposto.

Os tempos da educação para a sociabilidade, a empatia e o bem-comum ficaram distantes, agora está em um cenário confuso onde se mistura visibilidade pública com sociabilidade, empatia com mitologia moderna, não há um espaço para profundidade do pensar, ou para espantar-se diante de fatos sombrios, tudo parece tornar-se meme e motivo de má política e má práticas de sociabilizada de polarização muitas vezes justificada apenas para o “nós contra eles”.

É quase impossível falar em ascese num universo tão estranho e exótico, para não dizer algo mais grave, não se trata de voltar a histórias infantis com lições de moral ou estórias fantasiosas de bondade e inocência de um mundo difícil e competitivo, isto também é inócuo, porém se não nos elevamos espiritualmente nos tornamos cada dia piores e menos humanizados, uma ascese que nos leve a um nível mais elevado civilizatória não é apenas desejável como é tornar o processo civilizatório possível e mais frutuoso para todos.

Ao falar de uma ascese desespiritualizada, Peter Sloterdijk ressalva a “sociedade de exercícios” que está mais destinada a tensão e a competição do que ao lazer e ao progresso humano e social para todos, também Edgar Morin quando fala de resistência do espírito, fala sobre uma postura de esperança contrária a policrise social que vivemos.

A leitura que estamos fazendo do Heidegger lido por Byung-Chul Han, penetra neste espírito: “O homem moderno”, o consumidor do ente, cambaleia por causa de sua “embriaguez de vivências” (pg. 243) de uma coisa inusual para outra, falta-lhe o olhar ascético do “espanto” (pg. 244), ou seja, não adquirir qualquer inusual como fato.

Este olhar de espanto que vem desde a filosofia de Aristóteles, capaz de prender nossa atenção no “espaço não pisado do entre” (pg. 246) que é capaz de rever o “meio” (na foto Filósofo em Meditação de Rembrandt, 1632).

Existe nisto um “sofrer” que é um aprisionamento do “não saber como entrar ou sair” (pg. 247) e em tal sofrimento há correspondência com o que deve ser captado, o que deve ser aprendido onde “o pensar é um captar que sofre” trabalhado por Heidegger para permitir ao homem um pensar no entre dos entes, aquilo que leva a tonalidade afetiva.

Ao criticar também o espanto da criança, que chama de primeiro começo, enfatiza que ele não está nesta casa primeira: “a respiração sustida pode significar o a priori trans- epocal do pensar”, (pg. 249).

Byung-Chul lembra que Lévinas dedica sua “obra principal” (assim a considera): autrement qu´etre ou au-delà de essence (além do ser ou além da essência) ao espanto, que liberta o aprisionamento do eu ao em-si (categoria cara a Hegel), que põe o eu em “uma passividade que é mais passiva que a passividade da matéria” (pg. 250, citando Lévinas).

Embora reconheça que há este espanto no pós-modernismo, lembra Lyotard (Das inhumane, pg. 163) citando Boileau em “O sublime e a vanguarda”, o “sublime é, estritamente falando, nada que possa ser provado ou mostrado, mas algo maravilhoso que agarra, que sacode e que mexe com a sensibilidade”.

Finaliza este capítulo, que chamou de “A respiração sustida”, que “o espanto impõe silêncio ao sujeito e ao seu trabalho de síntese”, e conclui: “É um sopro de pensamento que persevera antes da síntese, sem parar de pensar” (pg. 252).

Han, B. C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.