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Arquivo para a ‘Cognição’ Categoria

Idealismo e pericorese

02 jun

O idealismo ao desenvolver as categorias em-si, de-si e para-si isola a possibilidade trinitária de relação e anula a ideia de relação ontológica, o que é em-si se não é Ser e o que é para-si se não é não-Ser, o Outro não é negação do Ser, mas seu complemento.

De-si é relação, e isto completa a ideia trinitária cristã de três pessoas em relação, que é a chamada pericorese.

Numa metáfora possível com o Idealismo: Deus-Pai é Deus-em-si, Deus-filho é Deus-para-si e Deus-Espírito Santos é Deus de-si, observa-se que Deus-para-si tanto é homem (Deus transcendente sua divindade) como é Divino (Jesus é Deus e transcende a humanidade)

Isto que significa o uno em três pessoas, o primeiro concílio cristão de Nicéia (325) foi discutido a divindade de Jesus, porque era ainda mais fácil, devido ao dualismo Ser e não-Ser, acreditar em dois do que em três.

Para subsistir a ideia dualista, alguns pseudo-teólogos lançaram mão da ideia que Deus-Pai é fonte e origem de toda divindade, assim as outras duas pessoas foram geradas pelo Pai, criando uma nova forma de negar a pericorese trinitária, ou se preferir “a dança” na relação divina interna.

Foram os padres capadócios, Gregório Magno, Gregório de Nissa e Basilio de Nissa que viram esta contradição, que vem revestida de nova roupagem, da troca da palavra prósopon (persona) por hipóstasis e esta por sua vez confundida com ousía.

Basílio usou da fórmula de Mt 28,19 que afirma que a comunicação dos Três no batismo manifesta o Espírito Santo na união do Pai com o filho, na mesma dignidade, e manifesta ao homem no batismo, por isto o batismo válido é em nome das Três pessoas em um Deus.

A relação é como se fosse a dança entre as três pessoas com a metáfora dos capadócios (figura).

Esta relação não é mítica, embora mística, sua relação com a humanidade está descrita em Jo 3,1: “De fato, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele”.

 

Ser imanente e transcendente

03 mai

Estes conceitos da filosofia são difíceis de entender se não o colocamos no dia a dia, de modo bastante supercial pensemos assim: o que temos interiormente e nos define como seu “eu” é interno e imanente a mim, o que tenho externo e define como o além de mim é “transcendente”, o Outro e ara aqueles que tem alguma crença o Divino.

Claro que não é bem assim estes conceitos, o imanente é aqui que está inseparavelmente presente em um ser ou objeto na natureza, é inseparável dele e não pode o ser não pode ser pensando sem ele, para o kantismo, diz respeito a conceito e preceitos de teor cognitivo.

Já o transcendente, é aquilo que transcende a natureza física do ser e das coisas, corroborando com o imanente do kantismo, esta corrente o define como aquilo que é presente no objeto e fora do sujeito, algo que lhe é externo e só pode ser conhecido pela “transcendência”, veja o aspecto cognitivo novamente presente.

Retomando o post anterior, as categorias em-si, de-si e para-si podem e estão presentes neste tipo de imanência/transcendência com base idealista (Kant e posteriormente Hegel), que afirma “de início, a consciência-de-si é puro para-si”, assim ela é independência absoluta, afirma que sua transcendência em relação a tudo o que é para-Outro, assim o ser fica preso a este binário Sem-em-si e para-si, conforme vai detectar Sartre em sua obra “O ser e o nada”.

Assim não há um alter, não há o Outro puramente fora e além do ser-em-si, este para no sentido do grego pará (como paramédico, parâmetro, etc.) mas um retorno ao em-si, assim a consciência de si está ligada ao ego e não a nenhuma possibilidade cosmológica ou divina.

Afirma Hegel: “A consciência-de-si é em si e para si quando e porque é em si e para si para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido. (…)” (HEGEL, 1992, p. 126)

Entretanto é possível definir uma relação entre imanência e transcendência sem dualismos, assim o ser-em-si aquele que se define internamente e com suas propriedades, pode ter uma relação com tudo que está fora, os objetos e o Outro (que é em sentido plural).

Há uma transcendência fora, que está além o conhecimento, que se pode ter através do uso da linguagem, das relações humanas e da intuição contemplativa, é o Ser-para-si que completa e define o ser-em-si (dá a ele uma identidade transcendente), estabelece uma relação de-si com a natureza e com o Outro e encontra na contemplação divina um Ser para-si que é um origem de tudo e além da ex-sistencia (ex – fora, sistencia – forte, eterno), que é essência ara as definições anteriores, pois é puro Ser.

 

HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 1992.

 

Sem tempo para Ser

25 abr

Nem a pandemia, nem o Home Office, nem as séries intrigantes (pessoalmente ainda prefiro sair e ir ao cinema) tornaram os homens mais calmos, mais serenos e felizes, tudo precisa ser acelerado.

O “Aroma do Tempo: um ensaio filosófico sobre a Arte da Demora” (2016) não é senão uma contraposição a este estigma destrutivo de nosso tempo que culmina em desejos de exclusão do Outro, de ódio e violências sem fronteiras enfim de guerra cada vez mais cruel num horizonte sombrio, não há tempo para ser, apenas para Ter, Saciar o mais simples entretenimento, não só os games.

O ensaio publicado originalmente na Alemanha em 2007, Byung-Chul atualiza o que não apenas uma aceleração do temo como também uma crise temporal assentada numa dissincronia não só da realidade num sentido mais nobre e poético, cuja descontinuidade leva a algo sem rumo, ordem e impossibilidade uma síntese ou conclusão que permita perdurar em um “aroma” as nossas vidas, como deve ser entendida sua “demora”.

Cita e analisa “Marcel Proust “Em busca do tempo perdido” (1913) o que ele chama de “cristal temporal” o sua visão do tempo aromático: “horas silenciosas, sonoras, fragrantes e límpidas” (em HAN, 2016, p. 59).

Vive-se um temo de angústia temporal, parece que o tempo gasto escoa elos dedos e se perde.

Aquilo que é substancial e essencial em nossas vidas, essência e substância são as principais formas de dissincronia do nosso ser, são remetidas ou a um delírio angelical (falsa essência) ou a uma forma física escultural, decorativa e irreal (falsa substância).

Como deduz Byung-Chul: “pressupõe que a existência é histórica, que cada um de nós tem uma trajetória. O aroma é o da imanência” (HAN, 2016, p. 59).

Na filosofia e na prática a imanência é algo que tem um fim em si próprio, ao contrário da transcendência que algo ou um fim fora e superior a si próprio.

Tal é o nosso “aroma” perdido do tempo, contemplar te vivenciar o Ser-no-tempo como tendo um fim além, como finaliza e conclui em seu ensaio Byung-Chul a correção necessária: “uma ampla medida de fortalecimento do elemento contemplativo” (Han, 2016, p. 186).

HAN, Byung-Chul. O aroma do tempo: um ensaio filosófico sobre a Arte da Demora. trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relógio d´Água, 2016. 

 

Olhar as coisas do alto

21 abr

Não são necessários milagres ou profecias para entendermos que mesmo nas realidades mais terrenas há coisas do alto, e elas respondem as realidades mais terrenas, sem elas não encontramos saídas e caminhos para uma vida plena, feliz e pacífica. É mais difícil pensar assim, mas é mais seguro.

Sem valores éticos, morais e responsáveis encontrar caminhos seguros para sair de conflitos, situações de insegurança ou de injustiça é quase impossível, pois um erro não corrige outro erro, e somente uma ação de amor e solidariedade resolve um conflito de ódio e divisão.

De divisão em divisão, de ódio em ódio, caminhamos num olhar apenas terreno sobre nossas dificuldades, não significa que devemos tirar o pé do chão e termos racionalidades nas decisões, significa que sem serenidade e atitudes sérias e proativas apenas pioramos o que está errado.

É comum mesmo em pessoas de boa vontade apelar para a violência e a força, ainda que o lado da justiça e da solidariedade seja o lado certo, agir com imprudência e crueldade tira o valor deste ato de força, o maior ato de força responsabilidade é agir com firmeza, educação e verdade.

Se estamos atribulados, ansiosos e sem equilíbrio não conseguimos encontrar o caminho da sabedoria, ouvir aquela voz interior do bom senso, da clareza e da verdade.

Também serve assim como para questões de justiça e direito para os verdadeiros valores culturais e religiosos, o uso do autoritarismo, que significa neste contexto falsa autoridade que muitos querem ter diante do cargo ou posição que possuem cometem o erro do argumento de autoridade e caem na armadilha fácil do poder em excesso.

Querem estar imbuídos de uma aureola de bondade quanto se investem contra as pessoas simples porém a graça de elevar os corações a valores do alto e retirar da situação difícil não é alcançada.

Para os cristãos uma das passagens mais significativas após a pascoa de Jesus que rememoramos a pouco na cultura cristã, é o episódio de Emaús em que enquanto Jesus caminhava entre eles e não percebiam, ainda ruminavam a morte violenta do Mestre, mas estavam cegos e não entenderam direito a vitória daquele que crucificaram.

Jesus pergunta: “o que ides conversando pelo caminho?” Eles pararam, com o rosto triste, e um deles, chamado Cléofas, lhe disse: “Tu és o único peregrino em Jerusalém que não sabe o que lá aconteceu nestes últimos dias ?” (Lucas, 24, 15-18) e deram sua versão terrena da pascoa.

E Jesus (ainda sem ser reconhecido) como explicar o sentido, já revisto elos profetas: “Será que o Cristo não devia sofrer tudo isso para entrar na sua glória?” (Lucas 24,26).

Aos poucos os corações deles foram se aquecendo e ao final entendem que estavam caminhando com o Mestre e depois pedem que fiquem com ele pois a noite chegava, mas Jesus desapareceu.

Não é preciso ter esta visão ou mesmo ter esta fé, é preciso escutar a voz do alto, dos valores sãos.

 

A filosofia e a questão da morte

21 mar

Falar da morte é um tema tanto instigador quanto apavorante, ao menos para aqueles que acreditam que tudo se conclui no nosso ciclo de vida terreno, a filosofia sempre o abordou.

Desde Sócrates e Platão (428-347 a.C.) até Heidegger (1889-1976) passando por Arthur Schopenhauer (1788-1860), a filosofia não se furtou a abordar o tema, Schopenhauer chegou a afirmar que “a morte é musa da filosofia” e Sócrates já havia dito que a filosofia é como uma “preparação para a morte”.

No Fedón de Platão ele descreve a vida filosófica como um ”treinamento para a morte”, há nela um “ethos” da vida humana, para o qual se pode afirmar sem exagero que é um “treinamento” e isto nos faz refletir sobre os delírios contemporâneos de um “entretenimento até a morte chegar”.

Pode-se objetar que Platão considerava a alma imortal, porém Schopenhauer e Heidegger não, é verdade que este último teve uma breve incursão pelo cristianismo, mas depois abandonou, o amago de seu pensamento ontológico é o que é este Ser-aí, este Dasein, ex-sistencial e humano.

Contrariando a vida fugaz contemporânea, Sócrates dizia que não “há vida bem vivida que não possa ser examinada” enquanto Heidegger vai afirmar que a vida frente a morte (não podemos esquecer que existe a impossibilidade da existência) é que nos faz pensar fora do mundo do “eu”, da voz alienante da sociedade, dos meios massivos de comunicação, e de conceber o mundo de uma maneira utilitária e transitória.

Heidegger vai usar o termo “stimmung” que pode ser traduzido como “entoar”, para comparar uma instrumento de afinação, com o qual se refere a angústia ou a outros estados anímicos (das disposições afetivas), usando sua metáfora como instrumentos desafinados perante a vida.

Outros filósofos como Paul Ricoeur lembrarão da “finitude” humana, para lembra-lo que é falível, se Heidegger fala do Ser-para-a-morte como finitude, Ricoeur a caracteriza como um impulso à vida (ser contra a morte).

Seja quais forem as abordagens, a finitude humana, a vida “bem vivida é examinada” é vida plena.

 

RICOEUR, P. Vivo até a morte. Seguido de fragmentos. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

 

Cegueira, lucidez e serenidade

17 mar

O que pode ser chamado de cegueira na literatura, quase sempre ultrapassa a simples dificuldade de funções visuais, ao menos uma deve ser considerada que é a das faculdades cognitivas que em última análise desenvolvem e adaptam o pensamento às percepções visuais.

Assim há uma cegueira civilizatória, aquela que não percebe os obstáculos e até abismos que podem se abrir no processo civilizatório contemporâneo, as forças e o domínio das forças da natureza, como pensava Heidegger sobre as técnicas, que impedem um pensamento reflexivo.

Olhar para a cegueira apenas como a dificuldade do campo visual, a realidade imediata é assim a pior das cegueiras, incapaz de contemplar a essência do Ser, aquilo que é designo de cada homem durante a sua vida pessoal e social.

Assim ao desenvolver as funções cognitivas o homem pode ganhar lucidez, olhar com clareza para a própria vida e a de sua sociedade e cultura, pode leva-lo além desta clareza a uma vida de serenidade e de paz, ainda que esteja numa vida social em conflito.

Não é a paz cômoda ou individualizada, mas aquela que é capaz de lidar com contradições, oposições e incompreensões, comuns em um processo de crise civilizatória.

A realidade que vivemos pode levar mais rapidamente a uma ruptura de lucidez e serenidade e quanto mais longe delas, mais dificuldades para encontrar caminhos e veredas de retorno a paz.

Uma das passagens mais elucidativa da leitura bíblica cristã sobre a cegueira, é a cura de um cego de nascença, que, portanto, não desenvolveu o aparato cognitivo para enxergar e assim teria dificuldade de perceber os objetos, cores e seres a sua volta, mais do que ter a função da visão, ele compreende cognitivamente o que está vendo.

Diz a passagem os fariseus questionavam a cura do cego (Jo 9,10-12): “Então lhe perguntaram: ‘Como é que se abriram os teus olhos?’ Ele respondeu: ‘Aquele homem chamado Jesus fez lama, colocou-a nos meus olhos e disse-me: ‘Vai a Siloé e lava-te’. Então fui, lavei-me e comecei a ver.’ Perguntaram-lhe: ‘Onde está ele?’ Respondeu: ‘Não sei.’”

E os contemporâneos de Jesus continuaram na cegueira sem entender a cura do cego.

 

Da lucidez à serenidade

15 mar

Se a clareza (ou claridade) é propriedade da lucidez, a lucidez precede a serenidade, ou seja, pode-se ter lucidez sem que se atinja a serenidade, este estado de espírito é algo muito atual, é uma busca do homem na modernidade.

A obra “Serenidade” de Heidegger, publicada em 1955, mas como meditação foi feita em 1949, por ocasião do centenário de morte de Conradin Kreutzer, compositor conterrâneo de Heidegger, ambos nascidos na cidade de Messkirch, porém em épocas diferentes.

Heidegger neste opúsculo vai diferenciar o pensamento reflexivo (ou meditativo) do pensamento calculador (ou maquínico) próprio de nosso tempo, assim vai comparar o pensamento de nosso tempo com a música, “limitamo-nos a ser entretidos por um discurso. Não é necessário pensar enquanto ouvimos a narração, isto é, meditar (besinnen) sobre algo que, na sua essência sobre algo que, na sua essência diz respeito a cada um de nós direta e continuamento” (p. 11)

Assim “A crescente ausência-de-pensamentos assenta, por isso, num processo que corrói o âmago mais profundo do homem atual: “o Homem atual ´está em fuga´ do pensamento” (p. 12)

Por outro lado, o pensamento maquínico assenta-se na técnica (veja que o texto é de 1955), onde “o pensamento que calcula não é um pensamento que medita, não é um pensamento que reflete sobre o sentido que reina em tudo que existe” (p. 13)

Heidegger sabe que um dos argumentos sobre a reflexão é que “a pura reflexão, a meditação persistente, é demasiado ´elevada´ para o entendimento comum” (p. 14), diz ao homenagear seu conterrâneo músico, que bastaria pensar no que significava naquele momento a sua terra natal, onde surgiu a música extraordinária de Kreutzer, lembro de um conto de conto de Leon Tostoi que falava desta dinâmica dos sentimentos justamente num conto chamado “Sonata a Kreutzer”.

Propõe assim aos presentes “o que nos sugere esta celebração, se estivermos dispostos a meditar? neste caso, atentamos que, do solo da terra natal medrou (gedieben) uma obra de arte. (p. 15)

Assim não é preciso um pensar elevado, mas apenas uma pequena pausa, um silêncio na alma.

HEIDEGGER, M. Serenidade. trad. Tradução de Maria Madalena Andrade e Olga Santos. Lisboa: Instituto Piaget, s/d.

 

Sobre a lucidez

14 mar

Já postamos sobre a cegueira, em alguns ensaios (sobre o ensaio de José Saramago que virou filme do brasileiro Fernando Meirelles em 2008) e também fizemos relação com A peste de Albert Camus, fazendo uma relação com a guerra, 3 coisas relacionadas e analisadas foram de nosso tempo (a Pandemia, a cegueira da visão na Pandemia e a Guerra), também postamos a semana passada sobre a clareira.

Agora fazemos o movimento inverso, analisemos a lucidez e o que ela significa na história da humanidade, partindo novamente de Saramago olhemos seu Ensaio sobre a Lucidez, isto porque ele faz um jogo interessante para nosso desenvolvimento aqui, uma alegoria entre claro e escuro.

É importante esta relação porque Saramago recupera elementos do primeiro ensaio da cegueira (a cor branca como símbolo, por exemplo, as personagens e a epidemia de gueira) pode-se dizer que é um prolongamento da primeira narrativa.

A lucidez fala de uma eleição onde dois partidos ficaram com apenas cerca de 8% dos votos, com uma expressiva votação em branco, ao contrário de muitos argumentos sobre esta possível despolitização, Saramago faz um contraponto curioso, ele não viveu a polarização atual:

“… é porque aqueles votos em branco, que vieram desferir um golpe brutal contra anormalidade democrática em que decorria a nossa vida pessoal e colectiva, não caíram das nuvens nem subiram das entranhas da terra, estiveram no bolso de oitenta e três em cada cem eleitores desta cidade, os quais, por sua própria, mas não patriótica mão, os despuseram nas urnas.”

Resolve-se fazer uma pesquisa, mas os 83% não se manifestaram até que uma pessoa resolve enviar uma carta aos líderes, e foi esta carta que deu rumo novo a investigação e por mais resistência que houvesse, o governo não cederia tão fácil, pode-se perceber onde está o problema.

Essa leitura às avessas do nosso cenário político, que não é muito diferente dos EUA e Itália, só para dar dois exemplos, é muito interessante para se compreender a lucidez política, que parece andar na contramão na política contemporânea.

SARAMAGO, J. Ensaio sobre a lucidez”. Ed.: Companhia das Letras, 2004.

 

A floresta que limita a clareira

10 mar

O homem moderno, vítima de ideologias, culturas e apostasias religiosas vivem apenas com a consciência da liberdade individual, sem compreender de fato quem é o Outro que não é igual, o filósofo coreano/germânico Byung Chul Han desenvolveu isto em “A expulsão do outro: Sociedade, percepção” (Editora Vozes) no qual fala do vazio adiposo da plenitude.

Este vazio, nada tem a ver com o epoché fenomenológico, abertura da mente e da alma para dialogar e receber o Outro, o diferente, o discurso e a narrativa contrária a nossa, para depois fundir os horizontes no “circulo hermenêutico”, o vazio de alma é positivo, nos eleva.

Através de sucessivas tragédias, a pandemia foi a primeira e não será a última, e aqui não se trata de discurso apocalíptico, e sim da constatação social de uma crise civilizatória em processo cada vez mais profundo e perigoso, não apenas nos governantes, mas também na consciência pessoal.

Chul Han chega a falar estes processos são obscenos na “hipervisibilidade, a hipercomunicação, a hiperprodução, o hiperconsumo, que levam a uma rápida estagnação do igual. Obscena é a ‘ligação do igual com o igual” (Han, 2022) enfim tudo de traduz numa mesmice obscena.

Cita um exemplo muito ilustrativo que é a animação Anomalisa de Charlie Kaufmann (foto), que fala de uma palestrante Michael que vai a Cincinnati para uma palestra e lá se aproxima de uma pessoa por sua voz, Lia é uma pessoa que já o conhece e veio para ver sua palestra e se apaixonam.

Mas o inferno do igual são os funcionários do Hotel, todos iguais e que querem seduzir Michael.

O ensaio dá ênfase ao amor erótico, porém isto serve também para o amor agápico, sem se apaixonar e dialogar com o diferente, vivemos no inferno do igual, no nosso circulo vicioso, em um ambiente cheio de vícios e de obscenidades, no pior sentido da palavra.

Na narrativa bíblica, Moisés que tentava levar seu povo a um caminho novo, queriam apedrejá-lo e blasfemavam contra a proposta de uma vida diferente (Êxodo 17,3-7), chegam a pedir a volta da escravidão egípcia (qualquer semelhança com a política atual não é coincidência), e também no capítulo 4 de João, Jesus vai ao encontro da samaritana, mulher e “pagã” e dialoga com ela.

Na semana que se comemorou o dia da mulher, é importante isto que não é um detalhe bíblico, mas a essência de sua mensagem, Jesus ao encontrar-se com ela que estranha seu interesse e diz “Como é que tu, sendo judeu, pedes de beber a mim, que sou uma mulher samaritana?” (Jo 5,9).

A obscenidade e a mesmice do igual não só empobrecem cada um, mas limita o processo civilizatório que é enriquecedor quanto mais o diferente possa existir com dignidade.

 

HAN, B. C. A expulsão do outro: sociedade, percepção. Trad. Lucas Machado.Petrópolis, Vozes, 2022.

 

A consciência social e a individual

09 mar

Não há consciência social, sem passar pela individual, ela está vinculada a visão de mundo (cosmovisão), aqui que na filosofia idealista é vista como dois seres separados: o ser-em-si e o ser´para-si, se olharmos do ponto de vista ontológico, isto significa como as coisas se apresentam para nós na nossa consciência, há então o fenômeno (aparição) ou não daquilo que existe aí no mundo (Dasein).

A consciência social, vista pelo idealismo como para-si, elaborada primeiro por Hegel, mas depois fundida com a ontologia existencial de Jean Paul Sartre, é vista assim: “é a consciência que ao se defrontar com o mundo torna-se um processo dinâmico (contrastando com a inércia do em-si) e faz com que o em-si se desvele” (CABRAL, 2023).

Porém na cosmovisão heideggeriana a questão do ser-no-mundo, como fundamento do ser-aí, deixa de ter significado de um juízo estético e passa a ser uma indicação ontológico-hermeneutica, dado que aponta à pergunta pelo sentido de ser do ser-aí, como toda boa filosofia é uma questão.

Que visão temos do mundo individualmente, é claro que sobre a influência de nossa cultura e de nossa adesão a filosofias, ideologias e religiões, não está descolada de nosso Ser, enquanto um estatuto ontológico, e assim precede a visão do ser para-si no sentido idealista, podendo ter um sentido transcendente que vimos no post anterior.

Um para-si além do humano é aquele que encontra o Outro, que não é nosso espelho, porém com ele travamos uma fusão de horizontes (no sentido do círculo hermenêutico) onde podemos realizar uma dialogia, nisto se fundamenta qualquer sentido religioso ou cultural verdadeiro.

É possível por algum tipo de isolamento pessoal, não se trata do autismo é bom que se diga, não ter consciência social, porém ela passa necessariamente pela consciência do Outro, assim cabe a pergunta sociológica e também ontológica: quem é o Outro na consciência individual.

O resultado de uma consciência individual que passa pela percepção do Outro é uma consciência social límpida, sem distorções de culturas, filosofias e religiões, estas vistas aqui como negativas, isto é, ausência de culturas, filosofias ou religiões dignamente compreendidas e elaboradas.

 

CABRAL, João Francisco Pereira. “Consciência e suas relações com o outro e o ser-em-si, segundo Sartre” em texto para o Brasil Escola. 2023. http: Brasil Escola,