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O ser, as coisas e os gadgets
Este nome para os dispositivos digitais apareceu muito antes da internet e da explosão digital, está no livro de Marshall McLuhan da década de 60: Understanding Media.
Muitos lembram dele apenas pelas frases: “a aldeia global” e “o meio é a mensagem”, mas poucos conhecem sua abordagem do mundo digital, e menos ainda se conhece sobre a profunda influência que teve no seu pensamento a Noosfera de Teilhard Chardin.
Algumas das ideias principais de McLuhan consistiu em antever de forma de um mundo mais consciente e até “mesmo em um mundo hiperconectado, onde todos têm a capacidade de regular sua própria experiência”, leitura diferente dos apocalípticos.
As ideias que muitos aprendem bem, mas continuam esquecendo-as são os avanços e as possibilidades de um mundo cada vez mais uma “aldeia” e que os problemas antes velados, como o próprio ser estava velado, agora estão expostas pelas “mídias”.
Nós só precisamos optar por excluir estes avanços, se estamos escondendo de alguma forma em nossas mentes, nossa consciência do ser, de cada coisa que existe além dos rótulos e dispositivos que usem, isto não é para internet, mas para carros, roupas de grifes, enfim, uma série de objetos de consumo que parecem qualificar o ser, e porque há tanto vazio?
Foi o que tentamos responder nos posts anteriores, acadêmicos demais talvez, porém sem revisitar o pensamento humano podemos ficar na superficialidade das “coisas”.
Para fugir de um discurso difícil sobre o ser, mas é preciso reconhece-lo como “ser-do-ente” leio uma página de Presente do mar (Gift from the sea), Anne Morrow Lindbergh que escreve:
“A vida hoje na América baseia-se na premissa de círculos de contato e comunicação cada vez maiores. Envolve não apenas as demandas familiares, mas as demandas da comunidade, as demandas nacionais, as demandas internacionais sobre o bom cidadão, através de pressões sociais e culturais, através de jornais, revistas, programas de rádio, analistas políticos, apelos ´caridosos´ e assim por diante. Minha mente está com isto … Não traz graça; Destrói a alma “.
Mas ela não estava falando da Internet, a Makron Books lançou um livro comemorativo de 50 anos do livro, o livro é de 1975, portanto isto já era uma realidade anterior da internet, assim como o nome gadget foi usado por McLuhan na década de 60.
Este é uma realidade do Ser, já observada no início do século passado, o mundo digital é um componente a mais na complexidade do homem contemporâneo
Ser do-ente
Quase sempre que simplificamos corremos o risco de estar vulgarizando um conceito complexo como o Ser, na modernidade este conceito está confinado na filosofia e é ser de uso pouco comum no dia a dia, de argumentar e explicar o problema mais profundo de nosso tempo: o ser do-ente, ou um ser projetado para fora de sua existência, ou seu esvaziamento, é, pois diferente da reificação (res – coisa) a pura coisificação.
Grosso modo o Ser não tem forma, em sua origem está o pensamento antigo do filósofo pré-socrático Parmênides o qual confundia a esfera da essência da coisa com a essência una, homogênea e contínua da mesma, significa em resumo para ele: o Ser é e o não-Ser não é, não pode haver terceira opção, e, ao mesmo tempo algo não pode ser A e não-A simultaneamente.
Esta lógica simples parece pura evidência, mas ela se desenvolveu até a modernidade, onde se perguntou porque existe tudo e não o nada, a própria definição de nada, do zero e do infinito, enquanto definições lógica datam do início da modernidade, até mesmo o zero grau absoluto, onde um corpo estaria completamente parado, o zero grau absoluto, é concepção moderna.
Na filosofia é o aparecimento do nihil, do nada mesmo, ao qual parece estar confinada boa parte da humanidade a procura de um sentido para a vida, ou o próprio desprezo por ela.
Simplificando de novo, no pensamento contemporâneo o ente é o que tem forma, enquanto Ser não tem forma, é apenas a sua existência no vazio ou na finitude da vida, pois ente é tudo que existe inclusive em abstrato, por exemplo, o número tem forma (podia até se dizer que é a forma por excelência) enquanto algo que não tem forma pode ser quantificado mas não deveria, a alma (talvez o Ser por excelência, admitindo-se sua existência ao menos enquanto “pensamento”).
São Tomás de Aquino em sua tese sobre o “Ente e a essência”, usava o termo “quididade” para indicar a essência das coisas, dito de forma mais simples, o que a coisa é.
Assim o ser não tem forma, é uma abstração, um pensamento ou como definimos um “noon” um pensamento espiritual, enquanto o ente é a forma, sua visão objetiva, concreta ao gosto atual.
Quando afirmamos objetivo, objetividade, prática (não no sentido mais amplo de experiência fenomênica) estamos falando do ente, de algo que os sentidos percebem, ao gosto do apropriar.
Na filosofia pré-socrática Parménides, confunde-se o ser com a esfera da essência esfera; se por um lado não pode-se dizer que é humano e inumano sobre o ser, pode-se dizer que é líquido, liquefeito ou em estado de liquefação na esfera do ente, não podendo ter dois estados, ainda que oscile entre os dois, pode-se dizer na esfera do ser algo é virtualmente, não sendo ainda o ser enquanto ato, o é em potência, uma semente é uma árvore, mas ainda não é.
Exigimos em nossa contemporaneidade a permanência do ser no ente, por isto dizemos ser-do-ente, enquanto o Ser-do-Ser pode não ser, de modo concreto quando admitimos a presença do Outro, somos nós e não o somos para o Ser-com-outro.
O ser-do-ente, ao mesmo tempo em que separado das coisas quer seja pelo aspecto financeiro ou por estranhamento, está projetado sobre elas como reificação, não sabe como gerenciá-las no uso cotidiano, as críticas ao uso de mídias hoje em dia, o uso de alguns dispositivos, se usados apenas segundo sua finalidade não é um ser-do-ente, mas um ente-do-ser, feito para uso humano, confundi-lo como ser, atribuir-lhe categorias morais, é ser-do-ente.
A separação entre verdade e realidade
A ideia na modernidade que uma verdade objetiva é diferente da realidade, por isto vai negar o realismo tomista e retomar a subjetividade nominalista, agora travestida em ideia, é uma ruptura com o ser.
Para os antigos gregos, verdade e realidade eram uma coisa só, então Martin Heidegger no ser e o tempo retoma este sentido, pelo estudo da etimologia da palavra onde a-letheia, distinta do conceito de “verdade” onde esta é um estado descritivo objetivo, onde a-letheia, significa “desvelamento” na tradução de Heidegger, pois lethe significa esquecimento, no sentido de ocultamento.
Filosofias a parte, o que isto significa é que confiamos demais na realidade objetiva enquanto critério de verdade, e quase sempre ela contém um véu da aparência, e é preciso dar-lhe sentido a partir do Ser.
A verdade, portanto, para Heidegger está no desocultamento, onde as aparências se enganam e o que é mesmo verdade se oculta em meio a palavras típicas do nominalismo, onde um bom conceito pode tentar explicar algo, mas não é a essência deste algo, é apenas sua aparência.
O que Descartes falava de suspensão do juízo sobre as coisas significa enquanto ser suspender também o seu próprio princípio egóico que só é possível na relação com o outro, suspendeu-se o juízo mas não o ego, pois não é a presença do outro que conta, mas o conceito, o nome e sua definição.
Outra palavra usada pelos gregos e importante neste contexto é a palavra phronésis, que é ao mesmo tempo harmonia e felicidade, tão forte a ponto de muitos autores afirmarem que é impossível ter phronésis em aletéia.
Por outro lado phronésis é .um conceito quase esquecido, devido a sua subjetividade, pois é menos próprio da razão, e estamos mais comprometidos com a veritas do direito romano, a verdade dos “fatos”, que nada mais é que uma narrativa, nem sempre contextual e verdadeira.
“A essência da verdade se desvelou como liberdade. Esta é o deixar-ser ek-sistente que desvela o ente. Todo comportamento aberto se movimenta no deixar-ser do ente e se relaciona com este ou aquele ente particular. A liberdade já colocou previamente o comportamento em harmonia com o ente em sua totalidade…” (HEIDEGGER. Conferências e escritos filosóficos. In Col. Os Pensadores. São Paulo, Nova Cultural, 1991. p. 130)
Para os modernos, verdades são fatos, para os antigos são aletéia e phronésis, é próximo ao que hoje pode-se chamar objetivo (de objetividade) e meta (de subjetividade), porém são conceitos mais completos porque estão unidos e não podem ser vistos como peças encaixadas.
Verdade é o desoculto, para Heidegger, aquilo que se mostra, atinge-se pela aletéia (o desabrigar o oculto) com phronésis (harmonia).
A alma interior e a verdade
Santo Agostinho põe a verdade na Alma do Homem: Noli foras ire, in teipsum redi:
in interiore homine habitat veritas, esta é a primeira aproximação de sua verdade ontológica, embora o estudo do ser já estivesse presente em Platão e Aristóteles, a verdade era para eles mais “logo” do que “ontos”, uma vez que o Ser e ele devia “ter” a verdade.
Isto terá uma enorme relevância para o pensamento humano, pois significa que há algo no interior do homem que deve ser “desvelado”.
Em Santo Agostinho esta tensão significou que o homem fica apenas nas coisas exteriores, e então esvazia-se de si mesmo, então começou um tipo de ascese aonde o homem se recolhe a sua intimidade, quando penetra precisamente naquilo que é o homem interior, e esta tensão irá culminar no final da Idade Média numa separação entre o Ser e o objeto, na verdade, justamente esta separação projetou o homem no “objetivo”.
Dirá Agostinho em sua ascese, “em te ultrapassando, porém, não te esqueças que transcendes tua alma que raciocina. Portanto, dirigi-te à fonte da própria luz da razão”. (Santo Agostinho, A verdadeira religião 39, 72)
É claro que o cogito agostiniano não é o cartesiano, que estava distante no tempo e também na concepção, mas ele preparou este caminho, o homem desejoso do controle dos objetos e da natureza, o homem que construiu seu castelo interior, vê-se no início da modernidade projetado sobre os objetos.
Para Kant a “concordância do conhecimento com o objeto” significa “a concordância do entendimento com o objeto que é apreendido por ele, a saber, o fenômeno”. Com isso, a definição kantiana é eficaz, se compreendida no sentido da fórmula “adaequatio rei et intellectus” de Tomás de Aquino, sendo que, “[n]esse sentido, a teoria de Kant da verdade transcendental que implica a veracidade do conhecimento transcendental no final das contas é uma ontologia, a teoria do ser dos seres, ou do domínio objectual, [ou seja] dos objetos”.
Ainda que o pensamento de Tomás de Aquino, em sua tese de doutorado sobre o “Ente e a essência” as coisas ainda estejam “adequadas” a razão, em Kant e na modernidade elas ficarão “fora” e a ontologia se reduzirá a uma onto-teo-logia, ou seja, apenas religiosa.
The Oscar goes to …
Os Estados Unidos da América, sem dúvida, mas esperamos que as indicações de The post, o filme que revelou os bastidores do jornal The Washington Post, em 1971, sobre a guerra do Vietnã, com as indicações, entre elas, da já laureada Meryl Streep, o discurso mais caloroso do Globo de Ouro deste ano, que ficou famoso pelos vestidos e trajes de negro, talvez a alusão ao Globo de Ouro branco de anos atrás, mas que na verdade foi mais pela questão da mulher que dos negros.
Já comentei a decepção de 13 indicações para a “A Forma da Água” (foto), mas a boa surpresa da atriz Mary J. Blige com duas indicações melhor atriz coadjuvante e melhor canção original em “Mudbound”.
Blade Runner 2049 só prêmios de consolação, se saírem: arte, fotografia, efeitos especiais e edição e mixagem de som, eu esperava mais, mas vi que mesmo o público não acolhe o que é para mim, e muitos estudiosos da ficção moderna, a matriz dos filmes de ficção atuais.
Surpreendentes, fui assistir e não penso que seja tudo isto, “Dunkirk”, do britânico Christopher Nolan (oito indicações), e a produção independente “Três Anúncios para um Crime” (com sete), e “O Destino de uma Nação”, filme politico centrado na figura de Winston Churchill, com seis indicações, mesmo número do drama “Trama Fantasma”, também não são isto tudo.
Para nós brasileiros duas consolações, a presença do diretor Carlos Saldanha de “O touro Ferdinando” indicação de melhor animação e o produtor Rodrigo Teixeira está envolvido na co-produção: Brasil-Itália-França na indicação do filme: Me Chame Pelo Seu Nome .
Ah quase me esqueci, fui assistir e gostei do filme: O rei do Show surpreendeu e emocionou.
Parafraseando Bauman, espero que o Oscar não seja líquido, a premiação acontece na madrugada do domingo.
O zelo da casa e a reconstrução
Na passagem bíblica onde Jesus expulsa os mercadores do templo, vendedores e outros comerciantes de relíquias religiosas de seu tempo (Jo 2,13-16), é mais comum lembrar o chicote de cordas do que a passagem seguinte que diz (Jo 2,19): “Destruí este Templo, e em três dias eu o levantarei”, que parecia um absurdo já que o templo foi construído em 46 anos e como faria isto em 3 dias.
A primeira parte é mais lembrada por exegetas porque havia a profecia sobre o que messias que “O zelo por tua casa me consumirá” (Salmo 69, 9) e portanto, em Jesus se confirma esta profecia.
É verdade que falava de seu corpo a reconstrução em 3 dias, já que morre durante a Páscoa judaica, que agora devido ao calendário nem sempre coincide com a cristã, mas Jesus morre na quinta-feira quando se deveria matar um cordeiro para come-lo ao final da noite de sexta, e na Páscoa cristã é ele próprio o cordeiro imolado.
Visto como sinal dos tempos devemos pensar que também a destruição e reconstrução das sociedades e culturas em nosso tempo se abreviaram, se isto antes era feito em mais de uma geração, hoje tanto a destruição como a reconstrução são rápidas e podem levar apenas horas.
Não há duvida que a Batalha de Guernica (1937), quadro de Pablo Picasso é um símbolo de nosso tempo, a guerra que despedaça o SER.
A velocidade da informação, tema tratado por Paul Virilio, que muitas vezes é da desinformação pode destruir e construir de modo rápido, típico dos tempos atuais, em geral só é lembrado o desconstruir, termo usado na filosofia, mas também existe a construção em muitas áreas do saber e da sociabilidade.
A internet do final da década de 70 até os anos 90 mudou a sociabilidade da comunicação, a Web tornou conteúdos populares em 15 anos, de 1990 a 2005 quando surgiu a Web 2.0, e agora da IoT promete mudar mais profundamente em pouco tempo, mas a sociedade mudou ? estas são considerações de linguagem e estrutura, mas o “templo” é aquele do “Ser”, ontologicamente estabelecido e este seja diante de qualquer tecnologia continua Ser, com angústias e esperanças.
É templo de reconstrução do “templo” do ser, mas isto significa mudar as estruturas, a forma na qual o conteúdo se expressa e se “in-forma”, nela viverá o “Ser” de nosso novo tempo.
Desconstruir, estrutura e língua
Primeiro afirma que é melhor usar o termo no plural e justifica: “A desconstrução no singular não pode ser simplesmente apropriada por quem quer que seja ou por o que quer que seja.”, isto porque ela está vinculada ao que chamou de “ex-apropriação” (Derrida, 1991, p. 194).
Novo cuidado porque apropriação se refere a língua, tanto isto é verdade, que em sua obra de 1998: “Fidélité à plus d´um” afirmou: “se fosse arriscar uma única definição da desconstrução, eu diria simplesmente: mais de uma língua” (p. 253), isto significa estudar o fenômeno da comunicação num mundo plural e com interpretações plurais, o que o aproxima de Husserl.
Mas o problema é intra-lingua, como os Deus míticos da Babilônica bíblica chamados de falsos deuses, e nisto vemos a estratégia adotada na tradução de Husserl, que parece esquecer que é francês, afirma em uma de suas traduções do mestre da fenomenologia: “a tradução dos conceitos usuais da língua husserliana, naturalmente nos conformamos com os usos consagrados pela tradução as grandes obras de Husserl”, que está na “Introdução” da tradução de “L´origine de la géométrie” feita em 1962.
De acordo com Derrida, a tradução “when mercy seasons justice” da obra de Shakespeare O mercador de Veneza, não poderia ser traduzida como “quando le pardão tempere la justice”, como fez Vitor Hugo, mas “quando le pardon releve la justice (ou le droit)”, ou seja, “quando o perdão releva a justiça (ou o direito), isto para exemplificar o problema da tradução além das questões de estruturas e de mitologias como propõe o estruturalismo, ou seja, dentro das próprias culturas há questões que escapam as estruturas e delas retiram-se “traduções”.
Por isto se perguntará quando uma tradução é “relevante”, e o próprio termo é questionado, que na língua derridaniana (estou levando em conta seu pensamento), diz respeito à lei da economia, da possibilidade de traduzir uma palavra levando em conta o maior número de jogos de sentido possível.
Assim separar a estrutura, a forma do sentido não é senão confundir ainda mais, embora tenhamos a dívida com o estruturalismo de penetrar o estudo das culturas para compreender que o sentido no conjunto de uma é muito diferente do conteúdo de determinada situação em outra, mas falta nesta concepção a ideia da tradução interpretativa dos jogos de sentidos.
Segundo o filósofo Simon Blackburn o estruturalismo é “a crença de que os fenômenos da vida humana não são inteligíveis exceto através de suas inter-relações. Estas relações constituem uma estrutura e, ainda por trás das variações locais dos fenômenos superficiais, existem leis constantes do extrato cultural”, Roland Barthes e Jacques Derrida ao aplicarem a literatura descobriram que há variantes, que o nosso ver são fenomenológicas.
A crise e as cinzas
A crise econômica, política e social é mundial, mas a brasileira tem mais cara de quarta-feira de cinzas do que de carnaval, mas é possível sobre-viver nesta crise ?
Um livro sugestivo e profundo é o livro em parceria de Edgar Morin e Patrick Viveret: Como viver em tempo de crise? (Bertrand Brasil, 2013) que sugerem no livro “Arrisco a hipótese que talvez tenhamos chegado a um momento de ruptura” (pag. 22), mas qual ruptura ?
Relembra Ortega y Gasset “não sabemos o que acontece, e é justamente o que acontece”, diz isto sobre a dificuldade de se relacionar fatos, a revolução digital, o ressurgimento de nações (armênio, curdos, croatas entre muitos outros), o grande saltos dos tigres asiáticos, enfim uma gama grande de relações novas, e agora novas tensões e guerras na África.
Os pragmáticos, que desconhecem a complexidade, querem ser práticos, ignoram a teoria ou repetem apenas um único autor, a ilusão de uma teoria “universal”, o que precisamos afirma Morin e Viveret: “o presente, o real não é aquilo que parece estável … é preciso estar aberto para o incerto, para o inesperado.” (p. 25).
Mas indagam os autores: “qual seria então, a boa notícia? Uma conscientização da amplitude, da complexidade, dando conta de um novo começo. Estamos em um período de crise planetária e não sabemos o que sairá disso; aquilo que der conta da possibilidade de transcender esta crise será uma boa notícia.” (p. 27).
Viveret escreve no capítulo “O que faremos de nossas vidas”, afirmando que devemos sair positivamente preservando o melhor”, mas paradoxalmente “mantendo a lucidez de que nelas existe o pior” (p. 44), parece que não dá uma solução definitiva, mas podemos reencontrar o melhor das “sociedades e civilizações tradicionais”, sendo preciso conhecer estas civilizações.
Saliente o autor que é “preciso reapropriar-se democrática e semanticamente das palavras ´valor´e ´riqueza´cuja raiz reich (em alemão) remete ao poder criador.” (p. 60 e 61).
Relembra também Karl Polanyi, em seu livro “A grande transformação”, “analisa as economias de mercado, que são legítimas, para as sociedades de mercado, que são perigosas, ou seja, o momento em que a mercantilização invade o conjunto do universo social.” (p. 61).
O autor nos dá como remédio sair da dupla infernal “excitação/depressão”, para ir em direção a outra dupla: “intensidade/serenidade” (p. 76).
Finalizam o livro com a frase: “é preciso crescer em humanidade”, este é o desafio atual, para renascermos das cinzas.
Os bas-fonds e o Carnaval
Caminhando pelas ruas centrais de minha cidade natal, Bauru de São Paulo, passo por uma moça já com um feijão e corpo de uma senhora, com uma sandália com amarras e peças de couro prateadas, vestindo um short que mal se fecha na grossa cintura, uma camiseta escura com a torre Eiffel e a palavra Paris estampados em dourado, lembrei-me do livro de Dominique Kalifa: Os Bas- Fonds: História de um imaginário (edUsp, 2017).
O livro comprei por engano no final de ano achando tratar-se da origem das Boas-Festas, os tradicionais cumprimentos de final de ano, mas ao abrir o livro entendi tratar-se das “cidades em crise”, o sujo, o seboso e o disforme, o Reino dos Indigentes, Sodoma, Roma e Babilônia, enfim alguns dos capítulos do livro de Dominique Kalifa.
De fato o centro das cidades tornaram-se periferias, ao menos nas cidades médias, e os centros foram para os shoppings em alguns condomínio fechados para dentro dos condomínios, onde há clubes, bares, lojas e até mesmo capelas, privatizando o footing.
Diz o autor, “os bas-fonds … se compreende instantaneamente” (Dominique, 2017, p. 11), talvez no francês, no português demorei para ligar a periferia (que hoje frequente o comércio central) e as fantasias do Carnaval (ao menos o brasileiro, feito por gente da periferia).
Encontro já no início do livro a ligação com o carnaval: “os bas-fonds se estendem por um terreno móvel, vago, em que a realidade, a pior das realidades, está em conluio com o imaginário, um terreno em que o ´social´ é constantemente redefinido pelo ´moral´, em que os seres de carne e osso se misturam com personagens de ficção.” (idem, p. 11).]
Esclarece que da figura ´positiva´ do filósofo grego Diógenes “o pobre de Deus, o “pobre do Cristo”, “o pobre com Pedro” da idade Média, surge no séc. XIII “na França e na Inglaterra, os termos de vagond e de vagrant” (pag. 69), que o autor chama da “invenção do mau pobre”.
Percorrendo a história, Dominique vai citar inúmeros autores: “a comparação dos proletários ameaçadores aos índios da América constitui um motivo recorrente, que explica, em parte, o imenso sucesso [na época] dos romances de Fenimore Cooper.” (pag. 109), cita ainda: Balzac, Sainte-Beuve, Dumas, George Sand, Maxime du Camp, Eugène Sue, Bérange e outros citados em páginas anteriores, se apaixonam pelo “Walter Scott dos selvagens” (de Henri Couvain).
Só para dizer o quanto é universal, lembro também “Bola de Sebo” conto de Guy de Maupasanti, e o filme Rale (Donzoko, 1957) cuja tradução para o francês foi Bas-fonds, filme pouco conhecido do diretor japonês Akira Kurosawa, sem falar do épico “Les miserables”.
A origem do carnaval entretanto é mais controversa, o Carnaval de Veneza ou talvez a festa dos loucos, descrita em 1445 como “festa dos loucos” feita na faculdade de Teologia de Paris (gravura moderna acima).
A transformação da alegria do imaginário de pobres, tornou-se quase todos lugares, uma festa privativa em que se assiste o desfile do imaginário dos bas-fonds. .
Kalifa, Dominique. Os bas-fonds: História de um imaginário, trad. Márcia Aguiar, São Paulo: Edusp, 2017.
A exclusão e os leprosos de hoje
Não é raro mesmo em lugares de relativa calma e bem estar social, que o homem se sinta incomodado e desalojado de tudo que vive e sente a sua volta: as famílias não são mais somente lugar de conforto, no Brasil os índices de violência doméstica assustam, até mesmo espaço de laser como campos de futebol e outros esportes se encontram brigas, corrupções e diversos tipos de violência, sem falar a sociedade em geral que vive taxas alarmantes.
Pensamos que o isolamento é a solução, quando não sozinhos também em grupos e muitas vezes em grandes grupos, também formamos nossas bolhas de “segurança”, não são mais espaços de conforto pois ele é quase inatingível, mas de segurança.
Alargando o conceito do individualismo para o de microesferas e esferas de Sloterdijk, o espeço que encontramos saindo do em si e caminhando para o de si não é suficiente, nele sentimos a ausência de algo essencial, se não podemos atingir a esfera espiritual, a qual chamo de noosfera (esfera do espírito), devemos entender os processos de exclusão das “bolhas”.
Primeiro porque são irreais nos dias de hoje, vivemos uma exposição ampla, Byung-Chul Han fala disco e no livro recentemente de Domenico de Mais (post da segunda-feira) também fala da “desorientação” social, e, portanto, não se trata de liquidez, mas de esferas fugazes e uma nova relação com a exclusão: as periferias existências e suas “bolhas” de segurança.
Não haverá solução se não houver um salto além do de si, é um além aquilo que foi mal definido na filosofia como um para si, embora aí também ocorra o perigo do fideismo e do subjetivismo, é nele que reencontramos as esferas abertas de nossos sonhos, de nossa poesia e de uma visão de mundo sem exclusão, o problema que Heidegger chamou de Weltanschauung.
Oscilando entre uma pieguice religiosa e um materialismo rasteiro pseudo-religioso, a visão de mundo necessária transformar-se numa visão de mundo sem exclusão deve superar preconceitos ideológicos, e tornar-se uma visão que todos possam fazer parte.
No tempo em que a hanseníase (a lepra) era o pior tipo de exclusão, e era inclusive consideradas um pagamento pelo “mal”, as palavras de Jesus podem resumir bem a exclusão daquele tempo em Marcos quando um leproso pede a ele de joelhos: “Se quiseres, podes purificar-me!” Jesus estendeu a mão, tocou nele e disse: “Quero. Seja purificado!” (Marcos 1,40-41).
As lepras hoje são muitas, olhemos a nossa volta e quanta gente excluída nas diversas bolhas que olham ao seu redor e dizem altivos: “não são nossa gente” pois estes “são impuros”.