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Uma abordagem diferente da desigualdade
Falar de pessoas simples e com sabedoria não pode excluir também as pessoas simples que são pobres.
Em setembro foi publicado no Brasil o livro de Abhijit V. Baneriee e Esther Doflo que procuram compreender os problemas específicos que surgem a partir da pobreza e encontrar soluções em torno das opções que as pessoas nestas condições fazem.
Foram a aldeias, às favelas e fizeram perguntas, recolheram dados e ouviram história, A economia dos pobres (Zahar, 2021) procura apresentar uma narrativa coerente com as histórias e opções de pessoas que em situação de extrema pobreza fazem para sair da condição que estão, pode parecer pequeno ou sem sentido, mas isto restaura a dignidade humana e o direito de opção destas pessoas.
As políticas governamentais e ações solidárias fracassam, conforme pensam os autores, por se fundamentarem em clichês e suposições equivocadas, a pior delas é considerá-las inferiores.
Mudar as expectativas e os pré-conceitos sobre estas pessoas não é tarefa simples, os exemplos concretos e experiências de sucesso feitas com paciência e boa vontade para aprender com estas pessoas, pode-se fazer progressos mais significativos no combate à pobreza.
Em 2019 junto com Esther Duflo e Michael Kremer, Abhijit recebeu o Prêmio Nobel de Economia, e abordaram em outra obra também com Esther Duflo a “Boa economia para tempos difíceis” (Zahar, 2020) onde além de desigualdade, trata de problemas como desaceleração do crescimento, mudança climática, automação do trabalho, distribuição de renda e inteligência artificial.
Thomas Pickety, autor consagrado por atualizar a questão do Capital para nosso tempo, disse sobre estes autores: “Nem todos os economistas usam gravata e pensam como banqueiros. Banerjee e Duflo destrincham novas pesquisas, questionam as visões convencionais sobre temas que vão do comércio à tributação de altas rendas e mobilidade social e oferecem caminhos para enfrentá-los.”
Vale a pena olhar para esta nova perspectiva, ainda pouco conhecida no Brasil.
Reificação, objetos e sujeitos
Se por um lado é verdadeiro que há na mentalidade idealista/iluminista dominante uma completa reificação da vida (a vida que se projeta sobre a coisa, res-coisa), por outro lado a separação sujeito e objetos, cria um dualismo no qual a natureza e os objetos que fazem parte da vida são ignorados.
O assim chamado dualismo sujeito objeto é explicitado por Edgar Morin da seguinte forma: “o conceito de sistema só pode ser construído na e pala transacção objeto/sujeito, e não na eliminação de um pelo outro.” (MORIN, 1977, p. 136).
Morin vai explicar que tanto o “realismo ingênuo” como o “nominalismo ingênuo” (correntes antagônicas desde o período medieval) eliminam o sujeito, no nominalismo o sistema ideal é aquele que não tem o sujeito, e no realismo o objeto ideal é o sistema.
Mas o objeto “quer seja ´real´ ou ideal, é também um objeto que depende dum sujeito” (Morin, idem), e pela via sistêmica “o observador, excluído da ciência clássica, o sujeito, despido e lançado para as latas do lixo da metafísica, regressam ao fulcro da physis” (MORIN, ibidem).
Morin observa que observador e a physis (a Natureza, com N) ficam confinados em termos de um sistema, e propõe uma nova totalidade sistêmica “se constitui associando o sistema-observador e i observador-sistema pode, a partir daí, tornar-se um metassistema em relação a um e outro, se for possível encontrar o metaponto de vista, que permita observar o conjunto constituído pelo observador e sua observação” (MORIN, 1977, p. 137).
Explica que pode-se numa visão simplificadora máxima, reduzir tanto a importância do observador como a da physis, “criando um suprassistema, cuja teoria revela os sistemas fenomênicos autônomos”, é bom esclarecere aqui que não se trata da fenomenologia e sim de um “suprassistema” que tem característica de um fenômeno autônomo, não é a redução eidética.
O segundo sentido do metaponto de vista, “acentua-se o caráter ideológico, cultural e social do sistema teórico (a teoria dos sistemas) onde se inscrever a concepção dum sistema físico” (idem).
Não podemos fugir nesta elaboração do problema epistemológico-chave: “a articulação sistêmica que se estabelece entre o universo antropossocial e o universo físico, via conceito de sistema, sugere-nos que um carácter organizacional é fundamentalmente comum a todos sistemas” (MORIN, 1977, p. 137).
Embora se fale da vida vinculada aos objetos, em filosofia da reificação (ou coisificação) da vida, a mentalidade dualista de separação entre sujeitos e objetos cristaliza e vivificada isto no dia-a-dia.
MORIN, E. A natureza da NATUREZA. Lisboa PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA., 1977
A ordem, a desordem e a dialogia
Entender o processo de complexificação da natureza, significa também entender que é o homem e que significa de fato o humanismo esquecido nos esquemas tradicionais idealistas e positivistas.
Assim para Edgar Morin (2001), a questão paradigmática vai além da simples compreensão na teoria das ciências (epistemologia ou metodologia), já que envolve o questionamento dos quadros do conhecimento que temos (gnoseologia e o que pensamos ser realidade) e de modo mais profundo a ontologia (qual é a natureza da realidade), estes princípios regem o fenômeno do que conhecemos e não podem estar separados dos sistemas físicos, biológicos e antropossociológicos.
Trata-se de uma razão aberta, não um irracionalismo nem um relativismo, mas funda-se na ideia que pode se construir um saber evolutivo, complexo e dialógico, no qual a desordem é uma parte.
Os sistemas se desenvolvem em um processo de entropia, porém é a neguentropia (a negação da entropia em cada fase da evolução) que torna a auto-organização um sistema vivo e evolutivo.
Define-a como um corpo que se desenvolve e se amplia aparece a entropia, a dispersão e a crise na organização originária, porém a neguentropia significa nova auto-organização e se olharmos o homem dentro dela, dentro da natureza e em seu aspecto evolutivo retorna-se a questão de ordem sobrenatural, pois foi justamente o caminho inverso que negou esta transcendência.
Quando o repúdio ao naturalismo venceu e instalou-se, o mito humanista do homem sobrenatural constituiu-se no próprio centro da antropologia (e de todas as demais ciências) e as oposições natureza-cultura, homem-animal, cultura-natureza tomaram a forma de paradigma.
Claro que o papel do homem na natureza depende da cosmovisão, os animistas por exemplo, todas as realidades não humanas também possuem poder sobrenatural, outras sobressaem um Deus também humano como no cristianismo (criado a imagem e semelhança de Deus) e outras uma ascese que estamos numa das pontas da escala da evolução (complexidade), as religiões hindus e orientais.
No cristianismo, refletimos a semana passada a pergunta de Jesus aos discípulos, “quem dizem que eu sou?” e preparava-os para a morte, para a “desordem” de sua morte, mesmo tendo compreendido ainda os discípulos querem disputar o poder, a posição e cargos que ocupariam nas asceses, e Jesus vendo o que falavam vai dar-lhes uma sentença dura (Mc 9,35): “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!”, será que hoje entenderam?.
O lugar do homem na natureza
A terceira citação importante na Introdução do livro A natureza da NATUREZA é a citação de São João da Cruz, feita por Edgar Morin: “Para alcançares o que não conheces, deves seguir o caminho que não conheces”, por isto é preciso um epoché, uma total suspensão de juízos e conceitos.
Edgar Morin explica que a primeira “cristalização” do seu trabalho foi feita no livro Le Paradigme perdu (O paradigma perdido, de 1973), diz ser uma gestação prematura do seu método, ali “esforça-se por reformular o conceito de homem, isto é, de ciência do homem ou antropologia” (MORIN, 1977, p. 14).
Depois de contestar a tríade ciência Ʌ política, Ʌ ideologia, onde um dos três termos é absorvido pelo outro, vai criar outra tríade do indivíduo, partindo de Edward Sapir (Antropologie) que afirma que é absurdo separar o homem no individual e no social, ele acrescentará o biológico, para penetrar na natureza, e sua tríade é então o homem como um conceito trinitário [indivíduo Ʌ sociedade Ʌ espécie], “no qual nenhum termo pode reduzir ou subordinar o outro” (Morin, 1977, p. 14) e a partir daí vai elaborar seu conceito de complexidade.
Retomando sua questão: “Que significa o radical auto de auto-organização?” (idem) responderá que “ela reinstaura a problemática da organização viva”, a segunda “Que é organização?”, responderá introduzindo o conceito de antropossocial que complementa o conceito do físico, que não pode se limitar a química nem sequer a termodinâmica (a entropia é um conceito na desorganização) e por fim sua grande questão “O que é complexidade?” e isto significa que há uma ordem/desordem no desenvolvimento da natureza viva em um aspecto antropossocial.
Isto é importante porque coloca ele destacado no livro: “A realidade antropossocial projecta-se e inscreve-se precisamente no cerne da ciência física” (p. 15), o tema é longo, mas sendo sucinto: “O grande corte entre as ciências da natureza do homem oculta, simultaneamente, a realidade física das segundas e a realidade social das primeiras” (idem).
Assim toda realidade social depende de um modo da ciência física, e esta depende de certo modo da realidade antropossocial, o autor pergunta qual e procura responder em todo livro.
Também o teólogo e paleontólogo Teilhard Chardin procurou desenvolver no seu livro “O lugar do homem na natureza” esta crescente complexificação que vai das primeiras células até o homem, e para ele, seria este o resultado da complexificação geral das leis físicas e química da natureza.
Morin lembra o drama de nosso tempo, depois de discorrer sobre os ganhos científicos pelos métodos cartesiano/enciclopedistas partindo da célula e da molécula até os quasares, os pulsars, chegando ao DNA, porém “o homem fragmenta-se: aqui fica uma mão-no-instrumento, ali uma língua-que-fala, algures um sexo salpicando um pouco de cérebro” (p. 17).
Faz uma citação de Rebelais: “Ciência sem consciência não passa de ruína da alma” (idem).
MORIN, E. A natureza da NATUREZA. Lisboa> PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA., 1977.
O que é natural e a possibilidade de conhecermos
O problema de conhecermos o mundo (natural e não o cultural, este é o que temos) deve partir de uma premissa de desobstrução de nossa mente de convicções culturais, a maioria idealistas, que nos cegam sobre a possibilidade de entender que não dominamos a natureza como propôs o iluminismo, e pior, corremos o risco de destruí-la e colocar a civilização em cheque.
Citar Edgar Morin na epígrafe da sua Introdução Geral do livro “A natureza da NATUREZA”, a segunda em maiúsculas mesmo no original, no sentido que ela é ainda mistério para nós, e contém mistérios que nos afetam, como provou a atual Pandemia que ainda nos interpela.
Edgar Morin na abertura do primeiro capítulo: “O espírito do vale”, cita Karl Popper: “Pessoalmente julgo que existe pelo menos um problema… que interessa a todos os homens que pensam: o problema de compreender o mundo, nós mesmos e o nosso conhecimento enquanto parte do mundo”, assim este conhecimento não é definitivo e nem é eterno, na medida que tudo evolui e é perecível.
Para introduzir estas convicções faz uma segunda citação de Jacob Bronowski: “O conceito de ciência não é nem absoluto nem eterno”, e fará uma terceira que fica para o próximo post.
Faz um início de 5 convicções que o fez começar este livro e onde está seu “cogito” sua suspensão de juízo de tudo o que pensava antes, eu sua primeira convicção destes problemas afirma que ela: “nos prende à actualidade exigem que nos desprendamos dela para os considerar a fundo” (Morin, 1977, pg. 13), e professa sua segunda convicção: “os princípios de conhecimento ocultam aquilo que, doravante, é vital conhecer” (idem) assim desprende-se de suas ideias anteriores.
Sua terceira convicção é a mais forte cada vez mais convencido de que a relação ciência Ʌ política Ʌ ideologia [Ʌ no texto como uma triangulo] quando não é invisível, continua a ser tratada de modo indigente, através da reabsorção de dois dos seus termos num deles tornado dominante” (idem), dá o que pensar.
Sua quarta convicção é que “de que os conceitos de que nos servimos para conceber a nossa sociedade — toda a sociedade — estão mutilados e conduzem a ações inevitavelmente mutiladoras” (idem).
Por fim sua quinta convicção é: “de que a ciência antropossocial tem de articular-se na ciência da natureza, e de que esta articulação requer uma reorganização da própria estrutura do saber” (Idem), assim o conhecimento que temos precisa ser modificado a partir de suas bases.
Sabia que sua tarefa era mesmo enciclopédica e vastíssima, por isso até isolou-se num castelo (não tenho os dados precisos) pois sua tarefa: “Eu próprio precisei de circunstâncias e de condições excepcionais’ para passar da convicção à acção, isto é, ao trabalho” (idem).
E é a partir daí que escreveu seu método complexo com três questão iniciais: “Que significa o radical auto de auto-organização? • Que é a organização? • Que é a complexidade?” (pag. 14).
MORIN, E. A natureza da NATUREZA. Lisboa PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA., 1977.
Entre o Natural e o Sobrenatural
A alma (anima em sua versão greco-latina original) foi estudada por quase todos filósofos da antiguidade, pode ser resumida do latim “anima mundi” (alma do mundo) como um conceito cosmológico de uma força regente do universo pelo qual o divino se manifesta em leis que afetam a matéria, ou na hipótese de uma força imaterial, como algo inseparável da matéria, está em Platão nos livros A República e Timeu.
Marsílio Vicino, humanista renascentista, que escreveu uma Theologia Platônica, definia como “A alma pode ser chamado o centro da natureza, a intermediária de todas as coisas, a corrente do mundo, a essência de tudo, o nó e a união do mundo”, seja qual for o conceito ela é uma parte do natural que pode ter manifestações desconhecidas pela ciência atual, e por isto é sobre-natural.
Porém o natural que o homem pareceu dominar a partir do iluminismo, se revelou aos poucos mais misterioso que se imaginava, já no início do século o princípio da incerteza deu origem a física quântica e um minúsculo vírus nos desafia, e não o superamos, o relaxamento pode provocar nova crise, como um doente mal curado que deseja fazer atividades que a doença não permitia.
Em seu livro a Natureza da Natureza, não por acaso o seu primeiro livro sobre seu método da complexidade, Edgar Morin vai descrever o Dasein da natureza (da physis) como: “Todos os sistemas, mesmo aqueles que nós isolamos abstracta e arbitrariamente dos conjuntos de que fazem parte (como o átomo, que é ademais um objecto parcialmente ideal, ou como a molécula), estão necessariamente enraizados na physis” (Morin, 1977, p. 133), e citando Lupasco (criador da ideia do terceiro incluído, estado entre o ser e não ser da matéria): “Um sistema só pode ser energético” (idem).
A energia, a complexidade e o mistério é, portanto, uma característica da natureza, e descobrimos no último século que a incerteza não só deve ser parte de um método realmente científica, como a ausência dela pode levar a dogmas e obscurantismo.
Como o sobrenatural se manifesta então dependo da cosmovisão de cada cultura, sem se confundir com ela, pois tem um significado ímpar dentro da escatologia que o vê, o princípio e fim de tudo, do universo e de seus enigmas.
Na cultura cristã, o sobrenatural está presente na revelação humana de um Deus que se faz pequeno, e se reduz a condição humana para levá-lo ao devir da eternidade, Jesus proibia os apóstolos de falarem abertamente sobre a sua divindade, mas interrogava-os (Mc 8,27-29):
“Quem dizem os homens que eu sou?”. Eles responderam: “alguns dizem que tu és João Batista, outros que és Elias, outros, ainda, que és um dos profetas”. Então ele perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro respondeu: “Tu és o Messias”.
Ele conversava a parte com os discípulos e ia explicar o tipo de morte que ia morrer.
MORIN, E. O MÉTODO 1. A NATUREZA DA NATUREZA. Portugal: Edições Europa-America, 1977.
O natural e o cultural
É bastante usada neste momento da história a palavra naturalização, e assim cabe a explicação aqui desta ideia do natural que permeia a cultura ocidental desde a antiguidade clássica, o que existe na verdade é uma dicotomia entre a cultura e o natural.
O renascimento foi um grande movimento de transformação na cultura ocidental, o universo tornava-se infinito, novas terras e novos povos entram na história do Velho Mundo e este clima colocava tudo em discussão, o humanismo italiano foi um destes palcos de históricos movimentos, citamos Pico della Mirandola e Marsilio Vicino e suas obras, porém Dante Aligheri é mais citado.
O Ulisses de Dante vai atravessar os Pilares de Hércules do conhecimento científico, da filosofia, da técnica, da matemática, das artes e das letras, desafiando os dogmas anteriores, porém a física e o domínio da natureza se colocam em lados opostos, embora a Revolução Copernicana seja o grande símbolo desta virada, será o domínio da natureza que se desenvolverá no momento posterior.
A ideia de ausência de limites, da previsibilidade, e das certezas acompanharam a filosofia da modernidade até o advento da física quântica, enquanto a ciência procurava o domínio do natural, e vemos agora as consequências deste domínio no planeta em crise ecológica, a física ponto inicial da revolução copernicana continuou se movendo na direção do mistério das partículas às subpartículas atômicas, do universo harmônico ao caos com buracos negros, com caminhos de minhoca (wormholes) que contradizem o tempo absoluto, são a dimensão espaço-tempo já prevista por Einstein, e que as astrofísica moderna já comprovou.
As incertezas chegaram a ciência, e Edgar Morin lembra que uma das consequências da pandemia atual em entrevista afirmou: “Não sabemos as consequências políticas, econômicas, nacionais e planetárias das restrições causadas pelos confinamentos. Não sabemos se devemos esperar o pior, o melhor, ou ambos misturados: caminhamos na direção a novas incertezas”, e isto é o futuro.
A naturalização de contextos históricos (raça, etnias e sexismos, por exemplo), na verdade é uma culturalização (embora o termo não exista), e as epistemologias ditas científicas foram importantes para isto, principalmente do ponto de vista histórico, onde foram transformadas em cultura porquanto não eram naturais e nem mesmo reais, mas versões da história.
O planeta, a sociedade e a civilização pede uma trégua, e não sabemos se será possível entrega-la, o clima é cada vez mais tenso, e uma consequência que não esperávamos da pandemia (que devia nos empurrar para a solidariedade) é que estamos mais divididos que antes, a trégua será difícil.
O humanismo e o natural
Temos dificuldade em entender o que é realmente natural e o que cultural, a visão naturalista da filosofia pré-socrática já antecipava uma teia de leis e interpretações do mundo material não dando exatamente a configuração o que era o Ser, foi neste espaço que se desenvolveu a ideia de sujeito como dual do objeto, assim a subjetividade não é vista como cultural, mas natural.
As escassas referências de Heráclito, o que fica dele são apenas algumas máximas como não pode-se atravessa o mesmo rio duas vezes, a ideia do devir e o fogo como elemento primordial na natureza, escondem uma busca da identidade humana com um tom objetivista prevalecente, era a via aberta por Sócrates para temas hoje tão importantes como a interioridade e a consciência.
A consciência moral foi retomada apenas no âmbito do cristianismo, passando à margem em Platão e Aristóteles, que elaboraram a ideia do motor imóvel (princípio de todo universo e assim da natureza) mas separado do mundo das ideias, onde ideias “naturalistas” se desenvolveram, não postularam um regnum hominis, um reino do homem, claro haverá outras leituras deste período.
O que me encorajou foi a descrição que Karl Popper fez sobre O mundo de Parmênides como um período de gênese do iluminismo, a physis grega não é outra coisa senão a natureza, assim pode- se dizer como mais propriedade que o naturalismo fisicalista se inicia ai, uma extensão da percepção que o sujeito humano tem sua interioridade vinculada ao meio vivencial, e portanto cultural, uma compreensão do macrocosmo individual ou coletivo (dos grupos culturais) fica então vinculada a ideia de natureza sem que uma cosmovisão mais ampla seja contemplada.
A esta questão prende-se outra, sobre a emergência do sujeito anulando o Ser, que é a liberdade, sujeito só o é como ação, ou seja em função do objeto, a interioridade é então parte problemática de um subjetivismo individual ou coletivo, e não de uma liberdade de opções sobre a qual se manifesta.
Se o homem no seu universo só pode submeter-se as leis, ao seu destino, ele não é livre, não há lugar para autonomia, e num sentido mais amplo está sujeito ao fatalismo, em Aristóteles é traçado um conceito unidimensional de liberdade ao defini-la como o ser livre é aquele que se tem a si mesmo como um fim e que não se sujeita a trabalhos servis, é definido, portanto,, em torno da polis, e de suas leis.
Se o conceito antropocêntrico é hoje revisitado, é importante compreender suas raízes gregas.
A filosofia renascentista vai desenvolver um humanismo, como o homem no centro de toda a especulação, sendo criatura do mundo desfruta, entretanto de uma situação singular e muito excepcional, destaco Nicolau de Cusa, Marsílio Ficino e Pico della Mirandola.
Ficino é o menos conhecido, nascido em Figlini Valdarno (1433) é o maior representante do humanismo fiorentino renascentista, e revisita as obras de Platão, Plotino, Porfírio e Proclo.
Talvez a razão de ser pouco conhecido pode dever-se ao fato de ter se tornado sacerdote e ter escrito a Theologia Platonica (1482), obra que faz um diálogo com a concepção de religião de Platão e os neoplatônicos.
Escutatória e a crise do pensamento
Quando só o discurso fundamentalista e ideológico tem espaço é porque ouvir o outro lado tornou-se difícil, entender que a realidade é múltipla e complexa, que não haverá um futuro monocromático que seja sustentável, é fundamental para um mundo novo que seja sustentável.
Também a compreensão da realidade, além dos fatos e da visão de mundo de cada grupo social e cultural, só pode ser ampliada num contexto de convívio e escuta respeitosa.
A exigência de isolamento em função da pandemia poderia ter auxiliado uma maior coesão e solidariedade social, até existiu em alguns grupos e pessoas, porém o isolamento radical de muitos grupos em torno da autorreferência e do reforço de posições grupais aumentou.
Percebem a realidade apenas por um angulo de visão, mundos fechados, mais isolamento e consequentemente mais injustiça, além da social, aquela existencial que isola grupos e pessoas, que repetem discursos e narrativas apenas para justificar formas sutis de poder, é a chamada psicopolítica (nome dado por Byung Chul Han), incapazes de abrir a visão.
É preciso quase um milagre, talvez a flexibilização da pandemia ajude, mas por hora o que se vê são grupos estremados em busca de consolidação do poder, ou sua tomada.
A passagem bíblica que impressionava até mesmo fariseus, era aquela que Jesus curava cegos e surdos, uma metáfora clara para que os grupos aferrados a sua visão (política e religiosa) pudessem entender através da metáfora a necessidade de abrir os ouvidos.
Diz a passagem de Marcos (Mc 7: 31-34): “Trouxeram então um homem surdo, que falava com dificuldade, e pediram que Jesus lhe impusesse a mão. Jesus afastou-se com o homem, para fora da multidão; em seguida, colocou os dedos nos seus ouvidos, cuspiu e com a saliva tocou a língua dele. Olhando para o céu, suspirou e disse: “Efatá!”, que quer dizer: “Abre-te!”.
Mais que ouvir é preciso escutar, mas que ver é preciso ampliar o campo de visão.
O pensamento complexo e o humanismo
Edgar Morin, Heidegger, Sloterdijk, e mais prematuramente Nietszche e Schopenhauer perceberam a crise daquilo que chamamos de humanismo e que se distanciava do homem.
Alguns aproximaram mais de uma perspectiva ontológica como Heidegger e Sloterdijk como crítico do humanismo de Heidegger, outros como aproximação e crítica do Niilismo como Nietszche, e Schopenhauer num propósito mais humano, são famosas suas frases: a solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais e quanto mais elevado é o espírito mais ele sofre.
Todos estes pensamentos merecem serem analisados na crise civilizatória que já entramos, ela não está mais a espreita, já penetrou, a nosso ver é no pensamento de Edgar Morin que é possível encontrar uma saída mais sólida para esta crise, embora estejamos caminhando no sentido oposto.
Segundo Morin o núcleo do humanismo que precisamos revitalizar é aquele descrito em seu Método II: «Não se trata de recusar o humanismo. É necessário, como veremos, hominizar o humanismo, e portanto enriquecê-lo, baseando-o na realidade do Homo complex» (Met. ll, p, 398).
Complexo, porque o humano não pode ser descrito numa lógica linear, e não se pode isolar em áreas delimitadas pelo saber (complexus: tecer junto), o todo é o homem, e isto é sua complexidade.
Isto surge desde a antiguidade com a emergência da problemática que será chamada subjetividade, Karl Popper chama atenção para o iluminismo pré-socrático, a visão naturalista da filosofia deste tempo teria submergido o homem na teia das leis do mundo material não configurando com precisão a noção de Ser, colocada em aspectos subjetivista (do sujeito) ou objetivistas (da physis).
Morin promove uma revisão dos conceitos e métodos, tanto n´O Paradigma Perdido, e principalmente n´O Método, as recentes evoluções das ciências biológicas, da cibernética e das chamadas culturas do homem, passam por revisões, destacando os conceitos de “autonomia”, de “amor”, de “indivíduo” e consequentemente de subjetivo, e de “uberdade”.
Tecido na matriz judaico-grego-cristã da nossa cultura, atravessando a história do pensamento e do quotidiano ocidentais, o humanismo assume orientações não exatamente coincidentes como o homem, e que a nosso ver, deram uma visão idealista a princípios mais universais do humano.
Para Morin duas revisões são necessárias no humanismo que se entrelaçam e completam:
— O esboço do homo complex;
—-A hominização do humanismo.
Há uma frase de autor anônimo (não é de Einstein) que circula na internet: “não se pode chegar a resultados diferentes a partir dos mesmos pensamentos”.
Morin, E. O Método, vols. I, II e III, Europa-América, Lisboa. Edições francesas: Seuil, Paris, 1977, 1980 e 1986.