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Arquivo para a ‘Antropotécnica’ Categoria

A virtude política, educacional e moral

18 ago

As três fases distintas da polis grega podem ser simplificadas na areté política praticada pelos sofistas e que justificavam apenas a capacidade retórica (algo próximo as narrativas de hoje), a areté educacional, o ideal platônico que significa uma boa relação entre a natureza e a educação, porém aqui nos interessa a areté moral, a superação entre os antagonismos da paixão e a razão.

Cedemos as paixões, assim a política é uma espécie de torcida, as paixões estão todas liberadas e assim não há contraposição a impulsos contraditórios da alma, e estas formas existiam já no período clássico, porém acreditava-se na sua “domesticação” usando um termo de Sloterdijk.

O projeto de domesticação falhou, a constatação de Sloterdijk que é bem anterior a pandemia e a guerra, já se fazia presente e escandalizou os filósofos que logo o refutaram sob acusações graves.

Não há espaço mais para a virtude moral, até mesmo o roubo e a violência verbal e “simbólica” já parecem liberadas, combate-se ao contrário qualquer tentativa de construir uma moral sólida.

Assim não se trata da guerra que é o ápice desta barbárie moral, matar tem justificativas por mais insano que isto pareça, tem torcidas e tem até os fatalistas que dizem que era inevitável, no limite, esperamos que não digam a erosão civilizatória seja também inevitável, afinal defender a vida é o último apelo moral que nos resta e até mesmo ele pareceu em crise com a pandemia.

A moralidade pública, uso dos bens públicos como serviço a comunidade, a moralidade social, uso da empatia e da tolerância como formas de diálogo e relacionamento público, direto a oposição e ao contraditório, são todos princípios morais que parecem estar em recesso.

Quais são de fato as propostas de sociabilidade, de representatividade e de política postas a mesa, apenas a negação de valores morais, o descaso com a coisa pública e uma defesa vaga do que de fato são os bens públicos e os interesses da população mais fragilizada no limite da seguridade.

Os discursos de gabinete estão dissociados da realidade, a demagogia e o populismo são os grandes instrumentos de propaganda política, a seriedade do que é proposto não cede ao mínimo exame da realidade dos fatos, e falar de fake News deve-se dirigir a praticamente todos.

A campanha apenas se inicia e do não-diálogo presente nos discursos só nos restas pensar que a moral sucumbiu ao moralismo mentiroso e ao populismo falacioso.

 

A origem e a crise do humanismo

17 ago

As duas guerras e a tensão atual Rússia x Ucrânia e China x Taiwan, que não são outra coisa que a tensão agora entre dois tipos de sistemas coloniais o imperialismo capitalista e o imperialismo ideológico, que não é apenas marxista ou comunista, porque isto exige uma discussão sobre o tema.

Sua proposta, segundo o próprio Sloterdijk, foram bem compreendidas pelos participantes, entretanto na reação dos filósofos havia um conteúdo “fascista” nelas, qual seja da seleção genética da humanidade, ou na indução desta mudança.

Também tive esta reação numa primeira leitura, no meu caso a crítica a “Cartas sobre o humanismo” de Heidegger, um dos temas centrais que aborda, além do questioamento que faz da concepção do humanismo, a sua grande contribuição está em compreender a relação ôntica sobre a ontológica, invertendo a precedência que Heidegger faz do ontológico sobre o ôntico.

Na prática significa uma revisão do motivo da clareira, como a incorporação de sua história natural sobre a social (Sloterdijk, 1999, p. 61), significa que há uma dimensão natural sobre o ontológico.

Pessoalmente prefiro não submeter uma dimensão a outra, digo que elas cooperam, algo parecido àquilo que escreveu Henri Bergson em sua “Evolução criadora” (1907), porém aderindo ao místico, e é claro que isto depende de uma cosmovisão com algum fundo religioso.

A revisão que Sloterdijk faz da “Política” de Platão (Sloterdijk, 1999, p. 47-56) desenvolve as origens do humanismo na Antiguidade, no seu ver, ligada ao exercício de uma inibição, a do hábito de leitura capaz de pacificar, domesticar, desenvolver a paciência, em oposição aos frenéticos divertimentos do “desinibido homo inhumanus”.

A metáfora platônica supõe que essas diferentes naturezas se encontram no Ser, ou seja são ontológicas, e como matéria-prima para formar o cidadão grego (o político), há o artifício de separá-las de modo a ter a configuração desejada para sua função na polis.

É preciso lembrar que também os gregos já falavam da areté, o exercício da virtude, para usar um termo de Sloterdijk “uma vida de exercícios”, porém a visão do filósofo alemão é que este projeto fracasso, e na nossa análise que inclui a mística, significa que há um abandono do areté.

Assim, não faço aqui uma defesa cega de Sloterdijk, apenas constato que sua crítica ao humanismo é a este projeto “pacificador” do homem, daí o porque das “regras do parque humano”, sua sugestão da natureza ôntica, não significa necessariamente a manipulação genética.

Está por trás desta questão a pergunta se o homem é bom ou mão, como fizeram os contratualistas iluministas ao definir o papel do estado, então a pergunta de Sloterdijk procede.

Em meio a ameaça de guerras com perigo civilizatório a questão permanece, e a resposta é o tipo de humanismo que queremos, e os modelos em jogo ainda não são alternativas ao modelo do estado como aquele que “pacifica” o parque humano, daí o recurso da guerra.

Sloterdijk, Peter. Regeln für den Menschenpark – Ein Antwortschreiben zu Heideggers Brief über den Humanismus. Frankfurt/M, Suhrkamp, 1999. Tradução brasileira: Regras para o parque humano – uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Tradução de José Oscar de A. Marques. São Paulo, Estação Liberdade, 2000.

 

Povos que mudaram o rumo da história   

03 ago

Durante séculos na planície iraniana os povos semitas e acadianos dominaram e estabeleceram ali sua civilização, os medos e os persas se estabeleceram posteriormente e até o período entre 500ª.C. e 448 a.C. os persas estabeleceram um domínio e iniciaram conflitos com os gregos, as chamadas Guerras Médicas.

As cidades-estado da Grécia se uniram e conseguiram impor seu modelo cultural e d sociedade aos povos e iniciam um processo cultural novo chamado de Antiguidade Clássica, a polis grega, a arte e o modelo civilizatório se estabeleceriam, tendo inclusive um retorno cultural num período posterior chamado renascimento.

Em tempos de crise civilizatória é bom que povos que tinham não apenas uma grande força militar, mas também um grande apelo cultural conseguiu mudar os rumos da história e fortalecer o processo civilizatório em rumo democrático e cultural mais amplo.

Grandes impérios como os persas, o romano, o império mongol (figura) e mais recentemente o austro-húngaro e o otomano também entraram em crise e sucumbiram, infelizmente não sem guerras e sobre grandes perdas de vidas civis e uma análise crítica sobre as guerras é sempre importante.

Estes impérios desapareceram sem deixar vestígios e apenas registros históricos, as marcas da crueldade, da decadência e da impiedade das forças bélicas destes impérios desapareceram.

A parte desta história forças mobilizadoras da paz e do diálogo tiraram a humanidade de flagelos ainda maiores que poderiam ocorrer e se não conseguimos evitar as guerras, podemos maximizar os esforços para que vidas humanas civis sejam poupadas.

A história também ensina que povos que não foram impérios e mesmo numerosos podem e devem influir no rumo da história a partir de uma experiência civilizatória, como a polis-grega e o mundo hoje carece de modelos que possam unir a humanidade num esforço solidário de paz.  

 

Em tempos de crise: onde está a clareira

01 jul

O homem sonha com a viagem a “vizinhança” da Terra que é a ida de homem a Marte, James Webb entrará em operação em julho olhando para os confins do universo, porém a realidade mais próxima dentro do planeta é o anuncio de uma provável recessão, mesmo que a guerra cesse.

Então o que acontece diante de nossos olhos, como é possível encontrar a clareira neste meio?

Nas conclusões da reunião do Fórum Mundial realizado em maio em Davos, disse Jane Fraser, CEO do Citigroup, um dos maiores bancos do mundo: “A Europa está bem no meio das tempestades” e ao contrário do que se imaginava, ainda que a Rússia enfrente problemas, a recessão será mundial.

Muito antes da crise atual Edgar Morin e Patrick Viveret escreveram “Como viver em tempo de crise ?”, a resposta estava em buscar mais solidariedade e compreensão parecia não antever uma pandemia e uma guerra, também Peter Sloterdijk ao escrever Se a Europa Despertar, olhava para a Europa dilacerada do pós-guerra de 1945 como uma metáfora da modernidade, ainda que previa uma derrapada violenta da política americana, porém talvez também não imaginasse uma guerra.

A resposta de todos que vão na manada ou no enxame (termo usado por Byung-Chul Han) para os comportamentos midiáticos de nosso tempo, seria vamos a guerra também, enfim as armas, pode parecer óbvio, mas não para aqueles que procuram a razão ex-sistencial de nossa vivência.

Não há fuga da realidade, muito menos alienação, é justamente seu oposto, encontrar dentro do real a verdade daquilo que é o Ser, seu designo e realização, dentro do hoje, único contato com o tempo eterno, já que o ontem não existe mais e o futuro é agora ainda mais incerto, não o Ser.

Onde estaria uma ascese com espiritualidade, onde olharíamos para o nosso passo planetário, e como olharíamos para o infinito através do olho do telescópio James Webb, com um olhar cético, de possibilidades de fuga ou como quão grande (e misterioso) o universo se revela diante da faísca terrena?

Tempos de refúgios, mas ainda mais especialmente de refúgios da alma, dentro daquilo que é o mais essencial do Ser, ao qual as filosofias, ideologias e mesmo a maioria das religiões não respondem, parecem todos dizer a mesmice do salve-se quem puder, tudo é permitido e guerra.

Quem são os seres mais próximos a sua volta? Onde está seu coração e sua alma diante de ameaças tão reais? Um sentimento de proteção ou abandono? enfim onde está a clareira ?

Não respondemos senão diante da “verdade”, aquela dita ao espelho e não às plateias e lives, só respondem aqueles que encontram a essência do Ser, cada vez há menos fugas possíveis.

Aos que creem é preciso responder a pergunta de Jesus aos seus discípulos mais próximos, aos que viviam ao lado dele e dividiam tudo, a comida, as preocupações e andanças, “quem dizem os homens que eu sou?” e foi Pedro que respondeu Mt 16,16: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”, e Jesus lhe promete as “chaves” do céu, não só como o eterno, mas também “a verdade”.

Popularmente no Brasil comemoramos São João e Santo Antônio com Festas, Pedro nem tanto.

 

A antropotécnica: duas formas de dominação

30 jun

Se há uma relação estreita do pensamento de Sloterdijk com Heidegger e algum paralelo com o pensamento de Hans Georg Gadamer, a ligação do pensamento alemão com nomes como Ernst Cassieer, Max Scheler, Arnold Gehler e Hellmuth Plessner nos leva tanto a uma antropologia filosófica como nos devolve a uma perspectiva quase esquecida das “ciências do espírito”.

Destes autores, alguns muito próximos dos projetos nazi, ele aproveita a ideia do homem como um ser deficitário, que não dispõe de meios naturais (garras, dentes ou chifres, por ex.) para defender-se e deve buscar em meios artificiais, mas não os diferencia dos meios “espirituais”

Não por acaso sua obra traça paralelos com Nietzsche do “Deus Morto”, a crítica ao humanismo de Heidegger, porém sua obra busca uma antropogênese original, e nela se insere a sua antropotécnica, especialmente o que está escrito em “Tens que mudar sua vida” onde diferencia duas formas de produção artificial do comportamento humano que floresceram desde a antiguidade nas chamadas “altas culturas”, sofrendo uma profunda transformação na modernidade, a primeira é a produção de alguns homens por outros homens, que ele chama de técnicas de “deixar-se operar”, enquanto a segunda é a produção dos homens a partir de si mesmo, que seriam então os “autos” – as técnicas de Operação” (Sloterdijk, 2009).

Sobre estes dois tipos de antropotécnicas ele se propõe a repensar, n uma base da antropologia filosófica, os conceitos foucaultianos de “biopolítica” e “estética da existência”, com ideias parecidas nestes dois polos, a domesticação do outro, por isto sua ideia do parque humano, e a autocolonização, que seu discípulo Byung-Chul Han chamará de autoexploração.

A diferença básica de Sloterdijk é a ideia de “Aperfeiçoamento do mundo” (Weltverbesserung) com base no aperfeiçoamento das populações que domina a teoria ocidental vindo desde de Platão é trocada por um “aperfeiçoamento de si mesmo” (Selbsverbesserung) e o faz com as “tecnologias do eu”, e para isto os homens o fazem como uma “sociedade de exercícios”.

Para Byung-Chul Han, estes exercícios são controlados por tecnologias do “self” que cada vez remetem a exercícios psicológicos, e assim chama-a de “psicopolítica” (Sloterdijk fez um ensaio em 2020), uma vez que acreditam que é a autorrealização que transforma sua vida, embora pratiquem uma “autoexploração”.

Tanto Foucault, como Sloterdijk e Byung Chul Han, e isto está na origem no pensamento de Nietzsche, que o surgimento de práticas ascéticas provocou uma antropogenese que dividiu os humanos em duas categorias: os virtuosos e os não virtuosos, enquanto na sociedade de exercícios, há uma asceses desesperitualizada.

É Chul Han chama a atenção para as categorias da vida ativa e a vida Contemplativa, a partir dos pensamento de Hannah Arendt e São Gregório de Nazianzo  (ou nazianzeno), Sloterdijk fica preso a sua crítica a Scheler, que vê apenas a pessoa como “algo” além de seus atos, e nisto vê um “espirito”.

SLOTERDIJK, P. Tens de mudar sua vida. Lisboa: Relógio d´Água, 2018.

 

O ser, a clareira e o humanismo

29 jun

No contexto em que Heidegger escreveu O ser e o tempo, é aquilo que permanece oculto dentro de um todo, onde deveria emergir o ser, isto é apropriado ao discurso da modernidade onde há uma redução a vida material humana, e uma divisão entre o que é subjetivo e objetivo no Ser.

Esta fragmentação emerge apenas em uma parte, na maioria das vezes é oposta ao ente ao qual o ser pertence, explicando de um modo diferente fazendo uma brincadeira: “o ser do ente”.

Ente e ser estão interligados, o ente é condicionado pelo ser, já que este possui um sentido mais amplo, esta definição mais ampla Heidegger definiu como Dasein, ou ser-aí para dizer este fato que há uma cosmovisão do ser em relação a um contexto mais amplo de sua vivência.

Porém longe de uma solução para o paradoxo da modernidade, aquilo que Heidegger chamou de manifestação do ser através da linguagem, incluindo a poética como uma das funções da linguagem,  fazendo ali uma morada do ser, que preservaria o ex-tático denominando na clareira.

A clareira seria nada mais que a verdade do ser, isto significa ela nos retiraria do abismo de nossa essência ex-sistente, e a clareira nos devolveria o “mundo” e a linguagem é o advento que revela e clareira o próprio ser, mas Sloterdijk respondendo a sua clareira no escrito de Heidegger Cartas para o Humanismo, faz uma resposta no livro Regras para o Parque Humano, dizendo do fracasso desta clareira e do humanismo.

Esta clareira não é nem o habitat nem o ambiente, e este se encontra em ruptura com a natureza, onde identifica o fracasso do ser humano como pastor do ser, cuja essência não seria cuidar do enfermo, mas sim guardar seu rebanho na clareira, a clareira é o mundo aberto e, neste caso a tarefa emprega-se no ser escolhido livremente e impregnando-se do próprio ser.

Antes de avançar na crítica, é preciso salientar o elogio de Sloterdijk a Heidegger, há um elogio a sua crítica ao Humanismo, reconceituando-o e buscando a essência do homem neste sistema.

O ponto de partida de Sloterdijk é a critica de Heidegger, onde busca um melhor entendimento sobre o que é o homem dentro deste humanismo, e uma maior compreensão da clareira.

A subjetividade deixa de ser um mero fundamental gramatical e se torna um fundamento enquanto representação humana, quer seja de seus sentimentos, quer seja de sua essência, e assim o fundamento passa a ser o eu, assim a modernidade abre uma relação objeto-sujeito.

Tudo então é para o homem, é antropocêntrico e o mundo se abre para a dominação, para a ciência e a técnica dominá-lo fundamentando todo o saber, mas qual é o saber sobre o Ser.

Ao trocar este vocabulário do humanismo para o seu próprio (subjetividade) Heidegger afirma segundo Sloterdijk, que a escola de domesticação do homem, que é mesmo uma escola, o projeto pedagógico iniciado pelos romanos, é uma escola fracassada, a domesticação não foi possível.

Dois acertos de Sloterdijk são um assombro para o futuro da civilização, primeiro uma necessidade positiva que é a coimunidade, a ideia de que só uma defesa conjunta do Ser supera o eu, a outra perigosa é que o projeto de domesticação fracassou e a clareira é um imperativo, não só uma narrativa humanista.

Diz textualmente Sloterdijk: “a história da clareira não pode ser desenvolvida apenas como narrativa da chegada dos seres humanos às casas das linguagens” e a partir daí que elabora sua antropotécnica, será o nosso próximo tópico.

SLOTERDIJK, P. Regras para o parque humano. Trad. José Oscar de Almeida Marques, São Paulo: Estação Liberdade, 2000.

 

Ascese e espiritualidade

26 mai

Não por acaso, Peter Sloterdijk apreende a modernidade como uma forma de secularização e coletivização da vida da exercitação, deslocando as asceses transmitidas desde a Antiguidade de seus respectivos contextos espirituais e dissolvendo-as no fluido espumoso das atuais comunidades biopolíticas (ou psicopolíticas) dedicadas ao treinamento e ao empresariamento da subjetividade.
Não é por acaso que um filósofo atual veja a modernidade como uma forma de secularizar e coletivar a vida de exercícios, deslocando as asceses transmitidas desde a antiguidade, em diversas culturas, para os contextos atuais dedicados a treinar e a comercializar a partir da prática cotidiana de exercícios através de memes, retóricas e de um treino coletivo de ideias (no sentido do idealismo).
A base de sua ascetologia é possível perceber como a educação desde a infância até os adultos está numa cadeia histórica de adestramentos através de procedimentos imunológicos e antropotécnicos seletivos, que anunciada por Sloterdijk a muito tempo tornaram-se escancaradas com a Pandemia, visam arrancar o sujeito de sua comunidade.
Fabricam-se assim os “atletas do Estados” ou as “empresas domésticas” na direção destes exercícios, o que ele chama de drama esferológico, e onde a infância tem que pagar um preço pela ausência das camadas protetoras, isto é, quando explodem os círculos mágicos, as bolhas de sabão sopradas pelos olhos extasiados das crianças, o que Sloterdijk escreve em Esferas I: Bolhas.
Esta espécie de ascese não tem nada de espiritualidade ou de uma verdadeira ascensão (de onde vem a raíz ascese) assim as bolhas de sabão são a metáfora deste universo efêmero, cujo exercício reforça o habitus, mas não constrói uma verdadeira ascese espiritual.
O autor não chega a desenvolvê-la, apenas a denuncia como uma ascese desespiritualizada, pois ele próprio não crê numa realidade superior, de verdadeira ascensão, como a que é descrita no livro de Byung Chul Han em sua “Sociedade do Cansaço”, onde vê como dois polos do Ser a vida ativa e a vida contemplativa, e recorre ao monge São Gregório.
Seu termo espiritualidade vem da análise de Foucault das formas radicais de governos dominantes de “governo de infância” a qual interpõe: “interpõe entre a experiência e a linguagem constitutiva da história e formadora do espírito”, é assim só uma subjetividade.
Byung Chul Han, provavelmente por sua influência oriental, vai noutro caminho de uma vida contemplativa efetiva, que está mais claramente expressa em sua obra: “O aroma do tempo” ( ), onde afirma: “A maior felicidade brota do demorar-se contemplativo na beleza, antigamente chamada theoria. Seu sentido temporal é a duração. Ocupa-se das coisas eternas e imutáveis, que descansam em si mesmas. Nem a virtude nem a sabedoria, só a entrega contemplativa à verdade aproxima o homem aos deuses” (HAN, 2016).
Na obra de Chul Han é possível entender uma ascese espiritualizada numa ascensão divina.
HAN, B.-C. O aroma do tempo. Um ensaio filosófico sobre a arte da demora. Lisboa: Relógio d´água, 2016.

 

A ascese e os exercícios

25 mai

O mais proeminente filósofo alemão da atualidade, Peter Sloterdijk em sua obra: “Você tem que mudar sua vida” tem uma sacada genial e original, não é o modo de produção e nem mesmo a cultura que produz a vida, mas os exercícios, por eles realizamos nossa “ascese”.

O que significa um exercício para ele, diz em sua obra: “Como exercício defino qualquer operação que conserva ou melhora a qualificação do ator para realizar a mesma operação da próxima vez, seja ela declarada como exercício ou não” (Sloterdijk, 2009, p. 14).

Desenvolverá mais a frequente o conceito de “habitus” que retoma do conceito medieval de Aquino e antigo (hexis) de Aristóteles, e a partir daí seu conceito antropológico:

“[…] descrevem um processo aparentemente mecânico sob os aspectos da inércia e da superação para explicar a encarnação do espiritual. Eles identificam o homem como aquele animal que pode o que deve, se alguém se importou em tempo com suas habilidades. No mesmo momento percebem como as disposições alcançadas continuam crescendo na direção de novas superações” (Idem, p. 289).

E assim sua teoria do habitus aponta para qualquer costume ou habilidade na direção de superar seu estado atual, sob a perspectiva de uma tensão vertical é possível formular uma tensão de arte do Bem, pois até aquilo que já está bom pode ser melhorado, então começa por esta ascese a elaborar o seu principal conceito: a antropo-técnica, escrito aqui de modo proposital com hífen.

Na interpretação de Sloterdijk existe uma ruptura, que chama de secessão, entre os que partem para escolher uma vida em exercícios e o mundo cotidiano, que se assemelha a um rio no qual há acomodações inquestionadas, e para ele isto está além do espectro religioso, funde-se a cultura.

Chama ao processo interno desta ascese de endoretórica, que consistem em rezas recitações rituais, monólogos e outras falas silenciosas, normalmente praticadas repetidamente, chegando a verdadeiros diálogos internos (não são alucinações), mas são práticas de solitárias sem o Outro.

“Todos os exercícios, sejam eles de natureza yoga, atlética, filosófica ou musical, somente podem acontecer se suportados por processos endoretóricos, nos quais atos da autoexortação, do autoexame e da autoavaliação, sob os critérios da tradição escolar específica e sob apontamento contínuo na direção dos mestres que já alcançaram o objetivo, têm um papel decisivo” (Sloterdijk, 2009, p. 369).

Há um ir além da normalidade e da ascese que leve a uma outra ascensão, o encontro com o Ser.

Sloterdijk, P. Du musst Dein Leben ändern. Über Antropotechnik Frankfurt, Suhrkamp, 2009. (Tens de mudar sua vida, edição portuguesa de 2018, Relógio d´água)

 

Serenidade, originário e paz

19 mai

Serenidade remete a ideia de uma super qualidade do Ser, vem do latim serenus, que é diferente de paciência que vem de patientia, “resistência e submissão” e é antes confundida com sereno.

Três qualidades do Ser podem ser diretamente ligadas a serenidade: tranquilo, significa resolver os problemas com a paz, calmo que significa manter seu interior em Paz e claro significa expressar e comunicar a paz com clareza.

Heideger escreveu um opúsculo sobre Serenidade, no início termina o capítulo com uma frase que expressa em filosofia uma síntese da serenidade: “quando a serenidade para com as coisas e a abertura ao mistério despertarem em nós, deveríamos alcançar um caminho que conduza a um novo solo. Neste solo a criação de obras imortais poderia lançar novas raízes” (HEIDEGGER, 1959, p. 27).

Falta-nos na concepção de Ser e que Heidegger destaca em sua ideia sobre o originário a ideia de Região, assim como foi traduzido do alemão, mas poderia ser o locus (horizonte)de pertencimento uma nação como Ser em sua verdadeira identidade originária, escreveu Heidegger:

“Não estamos nem nunca estamos fora da Região, uma vez que como seres pensantes […] permanecemos no horizonte […] O horizonte é, porém, o lado da Região virado para o nosso poder de re-presentação (Vor-stellen). A região rodeia-nos e mostra-se-nos como horizonte” (HEIDEGGER, 1959, p. 48).

Aqui é preciso voltar a um dilema do pensamento de Heidegger, tendo em vista que estar em meio à Região é permanecer no horizonte: estar, mas não estar nessa senda originária, significa que é uma re-velação da Região, que se faz visível ao ente, nela seu Ser é.

O filósofo afirma que a serenidade pressupõe o estar liberto (Gelassensein) e a Região a-propria (Ge-eignet) e confia ao ente sereno (gelassen) a guarda da serenidade.  ora, se o aguardar é então fundamental e decisivo do qual falamos é a a-propriação ao qual “nós pertencemos àquilo que aguardamos” (HEIDEGGER, 1959, p. 50)

Não ignora o autor a ausência deste conceito no Ocidente, um desconhecimento histórico: “a essência do pensamento não pode ser determinada a partir do pensamento, isto é, a partir do aguardar enquanto tal, mas sim a partir do outro de si mesmo (Anderer seiner selbst), ou eja, a partir da Região, que é na medida em que se religionaliza” (HEIDEGGER,           1959, P. 51).

Nisto de fundamentam as guerras contemporâneas, sem esquecer que muitas delas tiveram origem na disputa dos territórios de povos originários onde seu Ser foi completamente ignorado.

 

HEIDEGGER, M. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1959.

 

Diversas reações ao pensamento dominante

03 fev

Em países que foram colônias da Europa, emergiu o termo decolonização que se diferencia de descolonização porque penetra justamente no pensamento e na epistemologia dominante (alguns autores chamarão por isto de epistemicídio) que não é a simples liberação de dominação, mas também o ressurgimento de culturas subalternas.

Assim apareceram autores na África (como Achiles Mbembe), na América Latina (Aníbal Quijano e Rendón Rojas y Morán Reyes), além de autores de cultura originária como os indígenas (Davi Kopenawa e Airton Krenak), porém é possível um diálogo com autores europeus abertos a esta perspectiva como Peter Sloterdijk (fala da Europa como Império do Centro) e Boaventura Santos (fala do epistemícidio e também alguns conceitos de decolonização), há muitos outros claro.

Deve-se destacar nestas culturas também a cultura cristã, vista por muitos autores como colaboradora do colonialismo, não se pode negar a perspectiva histórica e também de doutrina que é a libertação dos povos e uma cultura de fraternidade e solidariedade, ela é também minoritária hoje na Europa e perseguida em muitos casos.

Entre os europeus que defendem um novo humanismo, ou um humanismo de fato já que o iluminismo e as teorias materialistas não conseguiram contemplar a alma humana como um todo, e são por isto um humanismo de uma perna só, entre os europeus destaco Peter Sloterdijk e Edgar Morin, o primeiro que defende o conceito de comunidade como um “escudo protetor” capaz de salvar nossa espécie, e o segundo, um humanismo planetário, onde o homem seja cidadão do mundo e as diversidades sejam respeitadas.

Ambos consideram as propostas populistas, é bom saber que elas existem a esquerda e a direita, devem perder com a crise atual e o consumismo global depende de uma atmosfera de “frivolidade” ou de superficialidade que a humanidade será obrigada a repensar, não voltaremos aquilo que consideramos estável, os próprios escritores originários, como Davi Krenak destaca em várias entrevistas, o que queremos voltar não era bom, não havia uma felicidade e bem estar real naquilo que era considerado normal.

Como aspecto de construção do pensamento, em Sloterdijk destaco a antropotécnica, para ele a modernidade foi uma desverticalização da existência e uma desespiritualização da ascese, enquanto o conhecimento e a sabedoria proposta na antiguidade sair do empírico e do enganoso para ir em direção do eterno e do verdadeiro, como para ele não existe a religião, seria um movimento de sabedoria e conhecimento, e não apenas uma ascese de exercícios, onde a alma imortal foi trocada pelo corpo.

Já na perspectiva de Edgar Morin é o hologramático que pode dar ao homem uma visão do todo agora fragmentada pela especialização e pela particularidade de cada ramo da ciência, paradoxo do complexo sistema no qual o homem é uma parte que deve se integrar ao todo, onde “não somente a parte está no todo, mas em que o todo está inscrito na parte”, a pandemia nos ensinou isto, mas a lição ainda foi mal aprendida, em plena crise pandêmica resolveu-se que está tudo liberado e não há protocolo de proteção de todos em cada um (cada parte), e não há co-imunidade.