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Violência, manipulação e resistência
Edgar Morin pediu em entrevista que diante de uma situação de policrise enfrentemos ela com uma resistência do espírito, a força de caráter, de oposição ao ódio e de oposição a pequenos atos desonestos, mas o mais difícil é a resistência espiritual as narrativas que vão da política a religiosidade.
Esclarecendo como fizemos no post anterior, que ao usar Walter Benjamim que faleceu na década de 40, o que ele citava era sobre a imprensa preocupada com notícias quentes e nem sempre em pensar e digerir com profundidade a “lentidão” como propõe Byung-Chul Han os fatos da realidades, afirma Byung-Chul: “A digitalização põe em movimento o processo que Benjamin, devido à sua época, não podia prever … associa a informação com a imprensa. Á imprensa é um meio de comunicação que segue à narração e ao romance” (Han, pg. 27), lembrando que é a visão romântica que inicia um processo de morte da narração.
Já havíamos citado em posts anterior Karl Kraus (1874-1936), poeta e jornalista austríaco forte opositor da 1ª. guerra mundial, um espírito de resistência da época, alertava as ideias em ebulição nacionalista e militarista, da qual a imprensa era parceira, e via na guerra uma manifestação da loucura coletiva da humanidade.
Em época de vazio espiritual é muito comum o espirito bélico e passional crescer, não faltam espíritos exaltados e sem nenhuma reflexão em todas mídias, a ordem é promover a desordem, a moral é promover o imoral, desta loucura se alimentam espíritos bélicos e doentios, precisam da loucura coletiva para sua loucura da guerra prosperar.
Em um período ainda anterior, o regime da informação [desordenada] afirmava George Büchner (1813-1837), citando por Byung-Chul: “somos marionetes, cujos fios são puxados por poderes desconhecidos; não somos nada, nada nós mesmos” (Han, 2023, pg. 29), agora “os poderes estão se tornando mais sutis e invisíveis,, de modo que não temos mais consciência dele. Nós até confundimos isso com liberdade” (Idem).
A pobreza da experiência da narração, também apontada por Benjamim e citada por Han: “que foi feito de tudo isso ? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas ?” (Han, 2023, pg. 31), é certo não há neutralidade, mas entre duas forças bélicas é possível um poder de resistência que as denunciem.
É como na leitura bíblica os fariseus que querem colocar Jesus em posição favorável ao império romano, para vê-lo como traidor, ou em oposição para enunciá-lo como rebelde.
Em leitura bíblica, dai a Cesar o que é de Cesar (Mc 12,16-17): “ Eles levaram a moeda, e Jesus perguntou: “De quem é a figura e a inscrição que estão nessa moeda?” Eles responderam: “De César”. Então Jesus disse: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. E eles ficaram admirados com Jesus, pois não era um ato aliado e sim mostrar de que lado está o poder e de que lado estão os homens pacíficos e que querem de fato o bem comum de todos.
Depois de inúmeras alianças com os fariseus, no ano 70 d.C. o império Romano destruiu o segundo templo judaico e cuja reconstrução sonham até o dia de hoje, ambos perderam, também o império romano caiu no ano de 476 ao líder germano Odoacro (na foto os visigodos saqueando Roma), os bárbaros já haviam minado o poder político, financeiro e militar do Império.
HAN, B.C. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
Narrativas, guerras e perigos
Em um dos recentes ensaios de Byung-Chul Han, ao mesmo tempo que o autor lembra Hyppolyte de Villemessant, fundador do jornal francês Fígaro e de Walter Benjamin ensaísta e filósofo que faleceu na década de 40, o autor não deixa de associar a narrativa moderna associada as novas mídias, ao storytelling chamando de storyselling (produto para venda).
Assim ao invés de provocar uma reflexão sobre os grandes problemas da atualidade, entre eles a escalada das guerras, mas o problema é antigo: “o leitor do jornal moderno pula de uma notícia para à outra, em vezes de deixar seu olhar vaguear à distância, e demorar-se ali. O olhar longo, lento e demorado se perdeu” (Han, 2023, p. 17), ou seja, não há reflexão.
Assim trata-se de criar uma narrativa favorável a esta ou aquela visão ideológica, pouco importa a lógica e a humanidade, mesmo diante de tragédias estamos mais ocupados (não todos felizmente) em criar uma narrativa para justificar determinada posição do que para defender um princípio humanitário, há esta ou aquela guerra, mas todas matam inocentes, todas como disse Eduardo Galeano escondem desejos de poder e de exploração sobre a nação a ser dominada, mas grandes impérios sucumbiram apesar de toda a prepotência e genocídios.
O recrudescimento da guerra da Ucrânia, as ameaças ao último reduto de refugiados palestinos, as constantes ameaças a Taiwan, além de incursões na África e agora até a América do Sul, a Venezuela volta a ameaçar a Guiana com intenso movimento de tropas e as provocações entre os EUA e o Irã incendiam espíritos bélicos e até pessoas boas, mas inocentes, embarcam nestas narrativas, não há outro interesse nas guerras: saques, mortes de inocentes e desumanidades.
Os encontros entre nações no Brasil, na Europa e as tentativas de sensibilizar governos para os perigos desta escalada bélica não faltam no mundo todo, porém esbarram em narrativas parciais e partidárias, poucos são as mentes que se sensibilizam para o perigo grave e civilizatório desta escalada, em todo mundo o armamento é a única resposta que parece tocar os governantes, e assim crescem as narrativas de “atos heroicos” de fatos bélicos em todo mundo que deviam envergonham aqueles que invocam princípios humanitários, sendo a ONU as guerras e problemas ambientais levaram a fome mais de 700 milhões de pessoas.
Até mesmo para uma narração bíblica ou histórica, onde pretende-se construir um “todo” narrativo, há uma chamada para o humanitarismo, ao Caim matar o irmão Abel, a pergunta divina é “onde está teu irmão?” (Genesis 4,9) e a narração sugerida por Byung-Chul Han é a do rei egípcio Psammenit que foi capturado pelo rei persa Cambises, e após a derrota faz o rei se humilhar ao ver sua filha transformada em escrava e o filho sendo levado para ser executado (Han, pg. 21), porém o rei egípcio só sentirá ao ver um servo idoso e frágil entre os prisioneiros e “bateu em sua cabeça com os punhos e expressou profunda tristeza” (pg. 22), assim a narração, diz Han, “dispensa qualquer explicação” (Han, pg. 22).
Se formos capazes de reflexões longas, lentas e demoradas não é difícil entender o perigo da escalada das guerras, das pessoas simples como o serviço de Psammenit que sofrem e morrem por questões que mal compreendem direito, e que as narrativas não explicam, apenas tentam justificar o injustificável: a morte, a pilhéria e a mentira.
Como afirmar o filósofo Morin, é preciso uma resistência do espírito, estamos aos poucos perdendo o sentido de amor, esperança e solidariedade e se lermos e investigarmos as notícias e fatos das guerras veremos que não houve nada nelas que não fossem grandes genocídios, roubos e situações de fome e miséria, é preciso resistir ao ódio e a violência.
HAN, B.C. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
A narrativa e seu ocaso
O pensamento moderno carece de um modelo para o Todo, diria que carece até mesmo de um pensamento sistemática, Peter Sloterdijk chega a afirmar que não é um tempo próprio para o pensar, é um tempo de trendings ditadas por hashtags, Stories, blogs e reels (mecanismos de difusão em massa com uso da mídia social).
Byung-Chul Han afirma que apesar do “uso inflacionário de narrativas revela uma crise da narrativa”, paradoxal, porém “há um vácuo narrativa que se manifesta como um vazio de sentido e como desorientação” (Han, pg. 9), antes as narrações nos ancoravam: “nos atribuíam um lugar e transformavam o ser-no-mundo em um estar-em-casa, dando à vida significado, apoio e orientação, isto é a própria vida era um narrar …” (idem, pg. 9), é ao mesmo tempo a desterritorialização e o desenraizamento.
Porém o próprio Byung-Chul deixa escapar, através da leitura de O narrador de Walter Benjamin (falecido em 1940) que isto é anterior as novas mídias, cita-o como “o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre os acontecimentos próximos” (Han, p. 17 citando-o), o leitor pula de uma notícia a outra, não se demora ali, “o olhar longo, lento e demorado se perdeu. “(pg. 17).
Ainda citando Walter Benjamin, diferencia a informação mais claramente o que é conhecimento: “a informação só tem valor no instante em que é nova. Ela só vive nesse instante, precisa entregar-se inteiramente a ele e, sem perda de tempo, tem que se explicar nele” (Han, pg. 18), curiosamente um pensamento anterior a década de 40.
Vai adentrar ao conceito de informação, tão caro em certas áreas como a Ciência da Informação, dizendo que ela [hoje] é “o meio do repórter, que vasculha o mundo em busca de novidades” (pg. 19), não há a necessária distância do fato que o digere e o torna conhecimento, “as informações retidas, isto é, as explicações evitadas, aumentam a tensão narrativa” (pg. 19).
A crise da narrativa, assim não se deve as novas mídias que as potencializaram, mas ao fato “de que o mundo está inundado de informações. O espírito da narração está sendo sufocado pela enxurrada de informações” (pg. 20), mas o que é então a narração ? Han citando Walter Benjamin invoca Heródoto, narrando a derrota do rei egípcio Psamenit ao rei persa Cambises, após sua derrota.
O rei persa humilha-o fazendo ver a filha tornando-se criada e o filho sendo executado, mas o rei Egípcio permaneceu imóvel olhando para o chão, porém quando viu seus escravos como prisioneiros, “bateu em sua cabeça com os punhos e expressou profunda tristeza” (pg. 22), pois ao se lamentar pelos servos “destroem a tensão narrativa” (pg. 22).
Cita que para Benjamin, o primeiro sinal do declínio da narração é o surgimento do romance no início da época moderna (pg. 23), com sua condição de experiência e sabedoria a narração sabe aconselhar “sobre a vida” (pg. 24), a comunidade narrativa é uma “comunidade de ouvintes atentos” (pg. 25), há nela uma escuta cuidadosa.
As narrativas políticas e ideológicas modernas estão atrás de fatos curiosos, pitorescos e picantes, não há nela nada de sabedoria, move o público pelo impacto e pela pressa da informação “quente” e resumida, não há narração, não há escuta atenta e quando há é pelo êxtase ou pelo espetáculo promovido, é retirada do contexto de uma narração.
Aqueles que ainda existem em legalismos e moralismo, contraditoriamente com o cotidiano que vivem, presente na narrativa religiosa moderna, deveriam lembrar de fatos como o não julgamento da mulher adultera (que devia ser apedrejada pelo costume judaico da época) e Jesus “não a julga” (João 8,3), o testemunho do pecador que senta-se ao fundo enquanto o fariseu senta-se a frente e se sente orgulhoso porque “porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros” (Lucas 18,11-13), e ainda o desafio de Jesus ao curar um homem da mão seca em dia de sábado (Mc 2,4): “E perguntou-lhes: “É permitido no sábado fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou deixá-la morrer?” Mas eles nada disseram”, a narrativa bíblica sempre faz deste distanciamento um modo de pensar e repensar valores, não é o maniqueísmo e o moralismo moderno.
Também são narrações as históricas de piratas e as histórias impressionantes dos Vikings, anteriores ao período das navegações e do mercantilismo e ainda dos paraísos fiscais em ilhas espalhadas por todo o globo, com a complacência de “estados legais e morais”, onde se depositam o dinheiro público roubado das nações e dos próprios povos por políticos.
Han, Byung-Chul. A crise da narração, trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
O tudo, o todo e o divino
Após desenvolver assuntos delicados e polêmicos como a dor, a espera no sentido próprio de esperança mesmo, que Byung-Chul usa o termo filosófico da “contenção” , termina seu livro, que pode-se dizer seu primeiro escrito filosófico, ainda que tenha feito sua tese de doutorado em Heidegger, com aquilo que deve ser o mais polêmico para a filosofia de hoje: o todo.
Ao final do século XIX e início do XX, a física, a ciência e a filosofia que pareciam plenas de seus “saberes” tomam uma invertida, a viragem linguística, mas há outra em curso que é mais profunda ainda: a revanche do sagrado, depois de levarem a humanidade a duas guerras, ao trabalho exaustivo da “sociedade do Cansaço” (em inglês ficou traduzido como Sociedade do Burnout), a arrogância idealista quer proclamar a morte de Deus, o tudo ou o todo é o que, as ultimas pesquisas do James Webb parecem estar sem respostas.
Até mesmo a teoria do Big Bang está em causa, a flecha do tempo pode não estar correta, ou seja o tempo pode ser uma abstração humana, galáxias vistas nos confins do universo não coincidem com a física do Modelo Padrão (neste caso da Cosmologia) e mostram que o conceito precisa ser revisto, mas deixemos isto para os físicos e cosmólogos, o nosso maior dilema ainda é: “o que somos e de onde viemos”, traduzido em linguagem filosófico: o que é o ser, e que é o Ser do ente (ou proveniente das partículas e poeira cósmica).
Isto está expresso na Teoria do tudo, nome do filme, baseado no livro da esposa de Stephen Hawking, Jane Hawking, intitulado: “Travelling to Infinity: My Life with Stephen”.
Por um tempo esquecemos este dilema, tratado desde o início desta série de posts sobre a leitura do “coração de Heidegger” por Byung-Chul Han, não apenas o sono antropológico preconizado por Foucault, mas o sono idealista da razão de nosso tempo, aquele que provocou um esquecimento do ser.
O início do capítulo é uma provocação, acredito, ao citar Hegel na epígrafe: “A verdade é o todo”, já que Heidegger e sua releitura de Han eles retornam aquela “virada” em que “a verdade da essência do ser se recolhe ao ente” (pg. 337), onde a própria consciência já é em si “a inquietação de distinguir-se entre o conhecimento natural e conhecimento real” (pg. 340), ela na experiência dialética da dor: “o trabalhador dialético é um sofredor. Ele percorre um calvário, estafa-se no poder do Absoluto, e o faz precisamente para viver” (pg. 346), o destaque em viver é do autor.
“Quem ainda hoje fala do todo levanta suspeitas” (pg. 455) é a frase inicial do capítulo final, mas o idealismo jamais abandonou a noção abstrata do Absoluto, porque é um imperativo de qualquer teoria traçar contornos onde a verdade seja válida, por isto a frase da epígrafe do capítulo final, penso, mas “no coração de Heidegger bate pela totalidade desde o início” (pg. 455), ela a expressa em seu pathos pelo tudo: “O que foi dito talvez indique que o presente trabalho pretender ser filosófico, na medida em que foi empreendido a serviço da totalidade última” (pg. 456), mas em contraste como o hegeliano, “o todo heideggeriano não capitaliza a morte do particular” (pg. 457), se quisermos retornar a física vale a pena reler de Werner Heisenberg: “A parte e o todo”, onde vemos os limiares da física quântica moderna, onde há vários traços de filosofia bem delineada.
Compreendendo a dor, a contenção e a angústia e na identidade na diferença (já postamos que não é a differance idealista), o todo heideggeriano não é um lugar de nascimento, não é um lugar de origem, mas um lugar de nascimento” (pg. 459), uma “casa não metafísica como espaço de morada” (pg. 459), diríamos morada o Ser, pleno e divinizado.
E também sua totalidade mundana, não é contaminada pelo clima do pensamento pós-moderno, nele pode-se notar a total falta: “de odor, paisagem ou natureza” (pg. 460), “com a história do ser Heidegger escreve certa metanarrativa”, mas não se pode negar que “o pensamento de Heidegger também possui traços metafísicos” (pg. 461), sua filosofia “não são jogos de linguagem [como Derridá], nem discursos”. (pg. 463), para ele existe o ser da linguagem, “os jogos de linguagem seria um fenômeno óntico” (pg. 463).
Desenvolvemos a questão da voz (post), mas Han pergunta: em que tonalidade afetiva o pensamento de hoje coloca essa voz”, pergunto não é ela uma resposta para a verdade que habita no interior de todo homem?, segui-la não é aceitar a dor (não a resignação), a diferença (não a differance), a angústia e a disputa fora do conflito político e de guerra (ver pag. 465).
Existe aquela voz interior, aos que sabem fazer o vazio, o silêncio e o epoché, existe o Ser que é o Todo e que habita em nós, mas é preciso passar pela dor, pela angústia, pela renúncia e aceitar a diferença.
HAN, Byung-Chul. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
Renuncia, economia e alegria
Byung-Chul teoriza que apesar da diferença entre Derridá e Heidegger (veja nosso post anterior) há uma afinidade estrutural na visão de luto dos dois, está caracteriza pela renuncia da autonomia do sujeito em Derrida: “Por mais narcisista que nossa especulação subjetiva siga sendo, ela não pode mais se fechar a esse olhar, diante do qual nós mesmos nos mostramos no momento em que o convertemos em nosso luto ou podemos desistir dele [faire de lui notre dueil], fazendo nosso luto, fazendo de nós mesmos o luto por nós mesmos, quero dizer, luto pela perda de nossa autonomia, por tudo que nos fez a nós mesmos a medida de nós mesmos” (Han, p. 430 citando o texto de Derridá “Krafter der Trauer”, fortalecedor da dor), isto é, ambos tem em comum uma visão de renuncia a autonomia do sujeito, o “eu” do idealismo.
Aqui o importante é não deixar o luto trabalhar (lembremos o conceito já visto nos posts do “luto do trabalho”) ele é substituído em Derridá por um jogo do luto: “contudo quanto mais alegre a alegria tanto mais pura a tristeza que nela dorme. Quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria …” (Han, pg. 430-431), mas o luto de Heidegger, explica Han, não mata a morte, tentar mata-la resulta em algo ainda pior: “o querer ressuscitar, ultrapassar violenta e ativamente o limite da morte só os arrastaria (os deuses) para uma proximidade falsa e não divina e traria a morte em vez nossa vida” (Han, pg. 431-432 citando Heidegger).
Heidegger explica que é “não é um sintoma que posa ser eliminado pela contabilidade psicoeconômica. Ele não tem um traço deficitário que implique o trabalho (de luto).”.
Este “retirado” ou “poupado” para o qual bate o coração “santo e enlutado” de Heidegger não é submetido à economia, este “poupado” não se pode gastar nem capitalizar, é portanto aquele que está e caracteriza a renúncia, Han não exemplifica, mas podemos pensar em ajuda humanitária em desastres e guerras, já que vai caracterizar a identidade de renúncia e agradecimento como concebível fora da economia, usando termos heideggerianos “suportar pesarosamente a necessidade de renunciar” e promete a “impensável doação”.
Diz uma frase profunda e sábia de Heidegger, a renúncia é a “forma mais elevada de posse”, parece contrário, mas só temos de fato aquilo que podemos dar pois do contrário é mercadoria de troca, e mais ainda renúncia se torna agradecimento e “dever de agradecimento”, esta dor aumenta aprofundando se torna alegria: “quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria que nela repousa”. (pg. 433), mas não se torna nem sublimação, que nos obriga “trabalhar”, pois é a “inibição de todo rendimento” e a “consciência do vazio e da pobreza do mundo”.
Elogio da miséria alguém poderia pensar, não é um elogio a alegria moderada e contínua, diferente da euforia e êxtase que é seguida de depressão, “a falta do divino acarreta o luto, remonta a um obstinado esquecimento do ser, no qual Heidegger inscreve o divino” (Han, p. 433-434), mas certamente não é ainda o divino bíblico, mas cerca-o.
A recompensa e a alegria do Divino inscrito no ser, é aquela que renuncia e doa, mas sabe que haverá recompensa de receber cem vezes mais não em bens, mas em alegria.
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
A diferença, as guerras e as calamidades
Toda leitura nos posts recentes sobre “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger” de Byung Chul Han não é mero exercício filosófico, até porque a filosofia para ter retornado aos sofismas de modo mais sofisticado: a narrativa, é porque a ausência de percepção da dor exacerba a dificuldade em entender a dor do outro e a diferença.
Escreveu sobre a dialética de Hegel: “Heidegger usa a palavra ´diferir` para descrever o movimento trágico-dialético da diferença”, e abre aspas: “Mas, na verdade, em Hegel o ente não existe mais, pois todo ente se dissolveu no movimento do conceito absoluto” (pg. 414), e acrescentou: “A “diferença como diferença”, o “diferir”, é o ponto cego da metafísica” (pg. 415), e assim: “A différance é mais contenciosa do que a diferença de Hegel” (pg. 415) e isto explica como o pensamento idealista é mais aferrado a ressaltar sua diferença política do que capaz de entender o verdadeiro significado de tratar o diferente, em especial os excluídos, os inocentes nas guerras, e as dores de uma trágica enchente se torna mais um jogo no campo do poder, que atingir o coração daqueles que podem socorrer as pessoas atingidas.
A diferença “não se articula em “contradições” que existem no espaço da identidade, mas trabalham para manifestações da identidade” (pg. 415), assim trabalham a dor.
Byung-Chul opõe Hegel além de Heidegger também a Derridá, “a diffferance mantém a discórdia […] sem jamais formar uma terceira expressão”, “mantem o contencioso, “sem jamais dar motivo a uma solução nos moldes de da dialética especulativa” (Han, pg. 416 citando Derridá), e diz “o puro jogo da diferença não é nada, nem sequer se relaciona com seu próprio incêndio” (pg. 417), veja o destaque de Han para a cultura ocidental do “relacionamento”, mas a sagacidade do alemão-coreano chega lá: “A subjetividade se produz sempre em um movimento de ocidentalização” (pg. 417).
A busca da “dialética especulativa” é por uma síntese ontoteológica ou ontoteleológica, diria mais a última já que deus de Hegel é inventado, aquele de um absoluto abstrato, mas não distante do Deus triunfante do maniqueísmo, expresso não só nas justificativas de guerras e na différance, o deus ocidentalizado também julga, condena e exclui e faz das leituras sagradas um jogo de conveniência, o luto, a dor e o sofrimento não tem espaço, tudo é poder, alegria e consumo, o reino na mesmice proclamando differance.
“Em torno de que gira a dor de Derridá?”, pergunta Byung-Chul, “Em torno da falta de um nome sagrado?” (pg. 424), diriam os que sim pois nem mesmo o Absoluto, ou o Todo podem ter uma resposta ontológica, talvez entelógica (no sentido de puro ente), mas o autor aponta seu luto como “provavelmente” como a differance, é banal (Derridá diz banalidade).
É a nosso ver, a incapacidade de luto, de renúncia, de compreensão da dor que nos impede de uma visão completa do todo como sagrado, não nos causa luto as mortes inocentes das guerras, das catástrofes naturais e o respeito das diferenças, sem um Sagrado que referencie estes valores, criamos uma coisa, um ente que o substitua.
Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
A dor e o Ser
Dissemos anteriormente, que o capítulo sobre o tema da Voz poderia ser o final, mas como Heidegger o via, e Byung-Chul Han foi fiel, ele é parte do desenvolvimento do Ser, ao falar da dor, assunto que também Han tratou em a “Sociedade Paliativa: a dor hoje” e já fizemos alguns posts, a maneira como tratamos a pandemia e agora as enchentes que atingiram milhares no vidas no Rio Grande do Sul, deve ser ponto de análise e compreensão, numa sociedade que não quer olhar este lado da vida: o sofrimento e a dor.
Não por acaso, Heidegger trata isto ao elaborar sobre Parmênides, onde a ontologia está reduzida ao Ser é e não-Ser não é, para uma lógica A e não-A, não havendo terceira hipótese, ali Heidegger fala de “certa morte (sacrificial) do ser humano: “Mas a forma suprema da dor é o morrer da morte, que sacrifica o ser humano pela preservação da verdade do ser” (pg. 321), assim não estão o sacrifício não é aqui, pois “o sacrifício tem em si sua própria essência e não precisa de objetivos nem de proveito? ” (idem).
No post anterior abordamos o sono idealista, aqui Han cita Foucault indagando “trata-se aqui de certa agonia despertar o pensamento de um “sono antropológico”?” (idem), talvez um despertar antropotécnico ou ainda como preferimos um despertar onto-antropotécnico, uma vez que o esquecimento do ser não é categoria filosófica apenas.
Ao abordar o vazio do homem moderno, a partir também da leitura de Foucault, Han lembra que Heidegger ao retomar a categoria metafísica “subjectum” que em “sua essência é o homem moderno é o “sujeito” e é exatamente aqui que Heidegger “critica implicitamente o pensamento antropológico” (pg. 322), ela é segundo Heidegger: “a continuação do cartesianismo”, Han citando-o: “Com a interpretação do homem como subjectum. Descartes cria o pressuposto metafísico para a futura antropologia do todo tipo e orientação” (pg. 323).
Assim não é a oposição do homem ao ente, mas a oposição equivocada da modernidade à linguagem: “a preocupação pela linguagem seria preocupação pela morte. Devolver a linguagem ao homem significaria, portanto, devolver-lhe a morte, a sua mortalidade” (pg. 324), e também não se trata do ‘ser’ ou ‘não-ser’ do ser humano” (pg. 325-326).
Para Heidegger o sujeito se reflete no mundo; “a imagem do mundo é de certa forma sua própria imagem especular” (pg. 326), por isso ela esconde o ser, já a dor “dilacera a interioridade subjetiva. Não se perde totalmente. Á dor está associada uma concentração peculiar, que, no entanto, não se estabelece como uma interioridade subjetiva” (pg. 327), embora o autor e Heidegger não o digam é por isto que existe o “sono idealista”, subjectum e ente estão divididos, e “na dor, o pensar se concentra naquilo que dá a pensar … na dispersão concentrada da dor, o pensar voltando-se para fora aprende de cor o exterior – deste lado de cá do saber e da ciência, os quais possibilitariam um aprendizado interiorizante assimilador” (pg. 327).
É importante ressaltar a economia calculista vista por Heidegger: “A dor é do ´por´, não do ´devido a” … o luto não lamenta, não procura preencher o lugar que ficou vazio … o luto sem enlutar só é concebível fora da economia (VIII.3)” (pg. 328).
A dor não é a resignação da interioridade absoluta: “o sujeito que trabalha na identidade, retornando a si mesmo na sua interioridade, assimilando o mundo, é incapaz da dor” (pg. 329), enquanto outros pensadores pararam na angústia ou na busca pela diferença ou ainda pelo sujeito destinado a um “espírito absoluto”, Heidegger vê na dor uma “tonalidade afetiva fundamental da melancolia” (pg. 329), é a tonalidade do ser … da finitude … do pensamento finito, “é o traço idêntico que, como base certa maneira formal, sustenta toda tonalidade fundamental ocupada por algum conteúdo, o traço principal que, enquanto o mesmo, está na base do modo como respectiva afinação” (pg. 330).
Assim a dor, para Heidegger e suponho para Han (ele trata-a de modo um pouco diferente na sociedade paliativa), “a dor não é o olho que chora, ou o rosto contorcido pela fome ou pela tortura”, a dor abre um espaço em que o pensar se torna possível pela primeira vez … um espaço sem traços antropológicos, e do qual o sujeito desapareceu … pensar seria, um dom da dor” (pg. 331).
A conclusão deste tópico: “a fenda da dor arrasta a velada marcha da graça até um advento inutilizado da clemencia” (pg. 332), por isso veneramos o poder, a violência e a falta de visão da verdadeira paz, amor fora das bolhas, egoísmo e enfim falta de “clemência”, pode parecer assunto religioso só, mas é a busca da essência do Ser.
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
Espera de esperança é maior que a pressa
Alguém escreveu que esperança não seria do verbo esperar, porém Alexandre Dumas escreveu: “toda sabedoria humana se resume em duas palavras: espera e esperança”, assim esperança se articula com espera como confiar com confiança, sinônimo de esperança, como já dissemos em outro post ela se opõe ao medo, a angústia e ao vazio do nihilismo moderno, temas já desenvolvidos na leitura de Byung-Chul sobre Heidegger.
Queremos reler a releitura de Han sobre a Espera ou contenção, o VII 2.3 que começa na página 302, como já dissemos anteriormente este é o ensaio mais longo do autor e talvez (eu penso assim) seus primeiros escritos realmente filosóficos, já que conjuga Heidegger com sua visão de Kant, Hegel, Derridá e Lévinas, este último parece ao gosto do autor.
Chul-Han afirma que este é a tonalidade afetiva inicial do autor, ao escrever seu poema de juventude, em 1910: “em frente ao portão do jardim de primavera / esperamos e escutemos / até que voem as cotovias / até que os cantos e os violinos / o murmúrio das fontes / os prateados / sinos dos rebanhos / se tornem coro universal de alegria” (Han, pg. 302 citando Heidegger), como diz o autor parece “cantada em imagens ingênuos” porém Heidegger tardio parece esperar “o dia do Ser” que também ressoa ingênua, mas “a espera em Heidegger não está ligada a uma data cronológica nem a um evento empírico” … é “um movimento singular, em uma (não) intencionalidade plana, em uma (não-) economia peculiar” (pag. 303), “não espera a reparação de uma deficiência” (idem).
No seminário sobre Heráclito, escreveu Byung-Chul ele faz a diferença entre esperar e ter esperança: “ter esperança sempre inclui contar com algo, enquanto esperar – se nos atemos à palavra – é atitude de conformar-se […] Ter esperança significa “ocupar-se firmemente com algo”, enquanto na espera há o resignar-se, a reserva” (pg. 304) assim penso, na esperança há uma confiança daquilo com que me ocupo.
Porém completa a ideia de espera com contenção, escreverá: paciência e espera são “traços básicos da contenção” (pg. 305), assim ela é articuladora frente a “ausência infinita da contraparte tangível”, “ela é o traço básico da serenidade”, a falta de serenidade contemporânea deve-se em grande parte a falta de espera, de contenção e paciência.
Existe assim uma articulação entre o “ainda não” e o “já”, assim “a espera de Heidegger não pode ser descrita como a intencionalidade de esperar até o fim” (pg. 306), “o nada se dá apenas na espera, que se distancia do impaciente pôr-diante-de-si, da intencionalidade da representação” (pg. 307), nisto Heidegger irá explicar como “a renúncia é uma medida contraeconomica”, afirma citado por Han: “A verdadeira renúncia – isto é, sustentada e lograda por uma tonalidade afetiva fundamental genuinamente expansiva -, é criadora e geradora. Ao permitir que sua posse anterior se vá, ela recebe, e não posteriormente como uma recompensa; suportar em luto a necessidade de renúncia do ceder é em si um recebimento” (Han, pg. 307 citando Heidegger).
O pensar aprende a agradecer aprendendo a renunciar, escreveu Han e citando Heidegger: “A renúncia é um agradecer no não se negar, ai reside a renúncia. Renuncia é ter de agradecer e, portanto, uma gratidão” (pg. 308), teorizamos aqui em inúmeros post a questão do poder, a renúncia é seu posto e oposto, “apenas o dom, que só é possível além da economia, torna o agradecimento concebível” (pg. 309) e assim é uma “retribuição simbólica” “um pensamento não econômico, que se distancia do “entendimento calculista” (pg. 309), “o pensamento grato questiona radicalmente a autonomia do sujeito sem instalar uma instância transobjetiva de poder” (idem) e conclui a “estrutura” “autônoma e transobjetiva restituiria a economia” (pg. 309).
Confiar é assim uma articulação da contenção da espera com paciência na esperança, quem confia é capaz de renunciar e agradecer, e tem nestes dons o seu pagamento.
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
O grande sono idealista
O sono idealismo foi propor metas a serem alcançadas que se mostraram aos poucos contraditórias e algumas delas são parte fundamental na crise do pensamento atual, nela as razões de estado precedem a vontade popular, mesmo que atue em nome dela, na verdade a concentração de poder parece justa aqueles que julgam ter a palavra final, enfim a razão, para exercerem o poder, isto tem origem medieval, embora difusa.
Ainda que a literatura diferencie “idealistas” de “realistas” isto existe após o paradigma renascentista/seiscentista, onde em “O príncipe” de Maquiavel (1513) fosse entendido que é lícito ao governante todos os meios facultados pela força e pela inteligência, desde que empregados com habilidade e conforme as circunstâncias (MAQUIAVEL, 2001, p. 85), assim despontam e todo mundo e em todas as sociedades atitudes de força consideradas razoáveis quando exercidas pelo Estado.
Também o contratualismo, a partir de Thomas Hobbes, que viveu entre 1588 e 1679, o Estado é a instituição fundamental para regular as relações humanas, dado o caráter da condição natural dos homens que os impele à busca do atendimento de seus desejos de qualquer maneira, a qualquer preço, de forma violenta, egoísta, isto é movido por paixões.
Nas palavras de Hobbes, “se dois homens desejam a mesma coisa […] eles se tornam inimigos”. Todos seriam livres e iguais para buscarem o lucro, a segurança e a reputação, lendo o autor nacional Francisco Welfort, em sua obra Os Clássicos da Política (2006), a igualdade entre os homens, na visão de Hobbes, gera ambição, descontentamento e guerra”, mas foi o idealismo que dividiu o Homem, ou o Ser do ente, como prefere-se na ontologia, em duas metades opostas.
Ainda que o contratualismo tenha o empirismo de Locke (1632-1704), onde o estado deve ser um mediador dos conflitos, interferindo o mínimo possível na vida dos indivíduos, e finalmente Rousseau (1712-1778) que afirma que o homem é bom a sociedade que o corrompe (vejam que há contratualismo de esquerda e de direita).
Voltando ao aspecto ontológico, no sentido heideggeriano: “a batida do coração por aquela “chave mágica” que poderia “rebentar mil cadeados” não seria o traço fundamental” (Han, p. 280), nela não se encontra uma luz rígida e perene, cuja violência e presença desenfreada como causa e senhora pudessem penetrar, explicar e dominar todos os fenômenos” (Han, p. 281) onde há uma referência direta a República de Platão, e Byung-Chul o vê como o primeiro Heidegger.
O segundo Heidegger é aquele que vê a clareira, que “não oferece um cenário fixo com uma cortina constantemente levantada, onde se desenrola o teatro do ente” (Han, p. 283) citando Heidegger, onde ele substitui o paradigma físico da “luz” pela figura da clareira, para “reagir contra os mecanismos violentos daquela luz que permite que tudo se coagule em imagem” (Han, p. 283), embora não haja referencia direta ao iluminismo, é inevitável a esta visão “luminosa” de poder.
A presença evidente é substituída pelo não aparente, que não pode se traduzir como a contraparte de um encontro: “Aqui não há mais ´encontro´, nenhum aparecer para o homem já se fixa previamente e capta o que apareceu” (Han, 284), o mundo das sombras de Platão nunca pareceu tão real quanto nos dias de hoje.
Assim faz sentido tanto “desvelar” como “clareira”, como termos que não são “re-velar” e nem iluminar, são veredas ontológicas onde o Ser “vive”.
HAN, Byung-Chul. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Tradução de M. J. Goldwasser. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
Existe uma voz da verdade
Embora seja um capítulo precedente no livro “O coração de Heidegger”, o capítulo IV “Voz” poderia ser o de uma conclusão de Byung-Chul, porém está correto pois não seria uma conclusão heideggeriana, a epígrafe que é uma citação do livro dos Reis ao profeta Isaías é simbólica: “Sai e põe-te neste monte perante a face do Senhor … e sucedeu que, ouvindo-a Elias, envolveu o rosto na sua capaz […]” (Han, pg. 107).
Vasculha a “série de indicações” nos “Quatro Seminários” de Heidegger, o primeiro é ouvir que escrever, propõe que há aí uma ligação com a metafísica, enquanto a escrita se fixa num “logocentrismo”, ele põe o ouvinte em uma tonalidade afetiva do acontecimento apropriador? E responde com o discurso de Platão sobre a escrita como “trai o discurso vivo e animado do sábio” (Han, pg. 110), pois ela se retira para a interioridade no tempo, difere de Hegel que vê “a verdade do espaço”, curiosamente aquele que reivindica a história.
“A voz também preenche a necessidade de uma interioridade desobstruída, não perturbada por uma exterioridade” (Han, pg. 111) e é importante que “Ela cria a aparência de uma absoluta interioridade não mundana” (pg. 111) e não se trata do egocentrismo da razão cartesiana, e do idealismo: “ouvir-se-a-si-mesmo-falar, a fórmula fundamental da subjetividade, não faz justiça a toda fenomenalidade da voz” (pg. 113), ela questiona a economia narcisista do espelho.
A flauta e a voz para Platão e também em Aristóteles é muito semelhante a voz humana, escreveu Aristóteles: “Ora, o canto e o som da flauta se misturam como resultado de sua semelhança […]. Além disso, a flauta, por seu som e sua semelhança (com a voz), pode esconder muitos erros do canto […]” (Aristóteles apud Han, pg. 116).
O Ser-aí de Ser e Tempo (Heidegger) “certamente não pode ser suspeito de cegueira narcisista. O ser-aí não se instala no interior sem janelas. Existência significa ser-fora” e vai além “O ser-aí está em casa fora do mundo” (Han, pg. 118), mas nem Heidegger nem Han vão até o fim nesta elaboração, ou seja, estar em casa e fora do mundo o que de fato são.
Identificam que “o ser-aí se doba na voz que se propaga”, e que a “voz estranha” se revela como própria do ser-aí (Han, pg. 119), e quem é “aquele que chama e o ouvinte são idênticos” (pg. 119) já que “esta voz não transporta nenhum significado, nenhum conceito” (pg. 120).
Esta unidade do Ser e do Ser-com-Outro não se realiza sem esta verdadeira espiritualidade não egocêntrica, não polarizadora e não individual, é preciso um conceito trinitário, ou seja, há uma terceira Pessoa que une o ouvido e o ouvinte em uma coisa só, falta um ponto final nesta conversa de Heidegger através de Byung-Chul (na imagem o quadro de Tsherin Sherpa (Nepal), Espíritos Perdidos, 2014.).
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.