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Rever a vida e reeducar-se para viver
Parte da crise econômica mundial, esta é análise de Morin é além da econômica, a moral e ética, no seu sexto livro sobre o Método da complexidade, ele desenvolve a análise antropológica, histórica e filosófica do problema, explicando que ela parte de um conceito inspirado em Kant.
Define-se aí a ética como exigência moral auto-imposta, em lugar dos imperativos provindos da razão prática, na ética de Morin a partir da complexidade, ela provém de três fontes: uma interna, análoga a nossa consciência, outra externa simulada e orientada pela culturas, crenças e normas pré-estabelecidas na comunidade, e de fontes anteriores que são a própria organização dos seres vivos e transmitida geneticamente.
Sua ética apresenta assim uma ética que exige uma reflexão quanto as nossas escolhas morais, sociais e de valores que levamos ao nosso cotidiano, aqui a crise civilizatória é grave.
Porém a ética Kantiana favoreceu a uma ética autocentrada, egocêntrica, segundo meus interesses e minha vontade, ignorando que ela deve compartilhar com o outro, e isto significa que devemos também nos orientar a uma visão sensível ao conjunto da sociedade e aqueles sem voz.
Em tempos de pandemia fomos “obrigados” por razões de saúde pública, mas também de educação, a limitar nossos movimentos, a guardar um isolamento social seguro, e a olhar para cada pessoa e se sentir responsáveis por ela, será que é isto que todos fazem
Esta aparente limitação de liberdade é na verdade aquela que já devia estar incorporada em nossa ética social, sem uma educação consistente para a prática da fraternidade e de um olhar atento e sensível ao outro, podemos cair num vazio social e alimentar a crise civilizatória já presente.
É preciso passar por um longo caminho de reflexão pessoal e estar disposto a mudar hábitos e atitudes para ajudar o conjunto da sociedade a sair de uma crise que é sanitária, mas também social.
A porta larga dos equívocos modernos
Um grande número de enunciados, proposições e teorias científicas ou não emergem em meio ao período de pouca luz na cultura ocidental, crescem teorias apocalípticas e uma visão cada vez mais maniqueísta da realidade, a visão de uma lógica dualista e sem terceira hipótese.
Ao mesmo tempo descoberta como a física quântica, a holografia, e uma nova cosmovisão do universo emergem, porém há quem acredite que a terra é plana e que nunca fomos a Lua.
São demasiados problemas específicos para serem tratados, mas a filosofia de um modo geral contemporânea mais que neoliberal, este é seu aspecto pragmático econômico, ela é idealista e mesmo filosofo-youtubers que discursam sobre filosofia a seguem.
Kant é complexo, mas seu ponto central é a dicotomia entre sujeito e objeto, como elas não podem ser separadas, ao menos em termos de teoria do conhecimento, ele criou os juízos analíticos e sintéticos. Quem curamos a doença ou o doente, para Kant seria a doença, com olhar “de fora”.
O juízo analítico é aquele que o predicado está dentro do sujeito, e assim é ele que especifica sua lógica, e esta lógica vem de uma visão físico-matemática do conhecimento na modernidade.
Exemplifica usando figuras geométricas como o triângulo e o quadrado, claro este tem quatro lados, mas isto não é uma dedução e sim uma tautológica, definições circulares.
Já o juízo sintético ao contrário não pode estar contido no sujeito, assim acrescenta um raciocínio como algo completamente novo, ou seja, a novidade é o predicado.
Está muito simplificado, mas essencialmente desenvolve-se uma lógica onde Ser e Ente são coisas confusas e desmonta a possibilidade de uma ontologia, mesmo que seja parcial, e imaginava com isto jogar toda as “superstições” fora, o famoso “Sapere audi”, ousar saber.
Como a razão por si só não bastava, foi necessário introduzir a ideia do empirismo, que vinha das argumentações de David Hume (1711-1776, assim os juízos podem a priori, que já existem no sujeito, e a posteriori, adquirido experimentalmente.
Moritz Schlick (1882-1936), que fundou a escola neologicista do Circulo de Viena, criticou a base idealista de um conhecimento a priori, afirmando que uma vez que os enunciados têm uma verdade lógica, eles não são nem analíticos nem sintéticos, tal como argumentava Kant, pois era paradoxal; e que se a verdade depende do conteúdo factual, os enunciados são, portanto a posteriori e não a priori, uma vez que os fatos devem acontecer, Schlick foi assassinado pelo nazismo.
No círculo de Viena estiveram presentes Kurt Gòdel, Karl Popper, Hans Kelsen e outros.
Uma mesma proposição pode ser conhecida por agentes cognitivos tanto a priori como a posteriori, usando o mesmo exemplo de Kant, uma criação só sabe que o quadrado tem 4 lados depois que aprende a contar, enquanto para um adulto parece “indutivo”.
Assim o conhecimento é uma relação entre agentes cognitivos e as proposições, que primitivamente não são nem a priori nem a posterior, poderão ser conhecidas por fatos.
Em 1936 Husserl escreve sobre a “Crise dsa ciências europeias e a fenomenologia transcedental”, o conhecimento estava em plena crise, em meio a II guerra mundial.
O vídeo abaixo elucida o pensamento de Kant, com comentários de Antonio Joaquim Severino;
É hora de mudarmos de via
Não é proposta minha, mas o nome do último livro de Edgar Morin (Ed. Bertrand do Brasil, 2020), o quase centenário filósofo francês mostra as lições do coronavírus que resistimos em aprender, também é muito parecido ao nome do livro de Peter Sloterdijk: Tens de mudar de vida (editora Relógio d´Água, 2018), este bem antes do coronavírus.
Antes de passar a algumas lições de Morin, quero dizer que TODOS precisamos mudar de vida, o planeta se esgotou, as palavras se esgotaram, a política polarizadora nos esgota, e infelizmente as palavras adocicadas como “fraternidade”, “solidariedade”, “compaixão” e tantas outras parecem só uma vontade de alguns que os outros mudem, sem, contudo, que cada um mude primeiro a si.
O preâmbulo é uma retrospectiva histórica desde a gripe espanhola até maio de 68 e a crise ecológica atual, as lições do coronavírus no capítulo 1 comento-as no final.
Começo pelo fim para afirmar que Morin que também compartilha de valores de fraternidade, de uma cidadania planetária, da superação de desigualdades etc., tem em seu livro ama proposta bem clara, depois de demonstrar que a crise é anterior ao coronavírus que só a agravou, na página 4 sentencia “… são duas as exigências inseparáveis para a renovação política: sair do neoliberalismo, reformar o Estado” (pag. 46), que vai dar os meios no capítulo 3.
Este é na verdade seu segundo ponto do cap. 2 Desafios pós-corona, o desafio da crise política, dos nove desafios que aponta nas crises atuais: o desafio existencial, apontado também na Encíclica Fratelli Tutti do Papa Francisco, os desafios das crises: da globalização, da democracia, do digital, da proteção ecológica, da crise econômica, das incertezas e o perigo de um grande retrocesso (pags. 44 a 53).
As 15 lições do coronavírus: sobre a nossa existência, o isolamento mostra-nos como vivem aqueles que não “tiveram acesso ao supérfluo e ao frívolo e merecem atingir o estágio em que se tem o supérfluo” (pag. 23), sobre a condição humana lembra o relatório Meadows, que apontava para os limites do crescimento, a lição sobre a incerteza de nossa vida, a lição de nossa relação com a morte, a lição sobre a nossa civilização (a vida voltada para fora, sem vida interior, a vida dos shoppings e happy hours), o despertar da solidariedade, a desigualdade e o isolamento social, a diversidade de situações e de gestão da epidemia, a natureza de uma crise, as 9 lições iniciais.
A lição sobre a ciência e a medicina, será que entendemos “que a ciência não é um repertório de verdades absolutas (diferentemente da religião” (pag. 33), a crise da inteligência, que ele divide sabiamente em “complexidades invisíveis” o modo de conhecimento “das realidades humanas (taxa de crescimento, PIB, pesquisas de opinião, etc.” (pag. 35), o ponto 2. é a ecologia da ação, alerta que a ação pode “percorrer o sentido contrário ao esperado e voltar como um bumerangue para a cabeça de quem a decidiu” (pag. 35), quantas ações e discursos caíram nesta vala.
A decima segunda lição é a ineficiência do estado, que além da política neoliberal cede “a pressões e interesses que paralisam todas as reformas” (pag. 38), enquanto a polarização se aprofunda.
A decima terceira lição é a deslocalização e dependência nacional, e lamenta “que o problema nacional seja tão mal formulado e sempre reduzido à oposição entre soberania e globalização” (pag. 39), note-se pelos discursos que polarizam e não saem deste círculo vicioso.
A décima quarta lição é a crise da Europa, lembro do livro de Sloterdijk “Se a Europa despertasse”, e Morin abre a ferida: “sobre o choque da epidemia, a União Europeia partiu-se em fragmentos nacionais” (pag. 40).
A décima quinta lição é o planeta em crise, cita o prof. Thomas Michiels, biólogo e especialistas na transmissão de vírus: “Não há duvida de que a globalização tem efeito sobre as epidemias e favorece a propagação do vírus. Quando se observa a evolução as epidemias do passado, há exemplos notórios em que se nota que as epidemias seguem ferrovias e deslocamentos humanos. Não resta dúvida, a circulação dos indivíduos agrava a epidemia” (pag. 41).
MORIN, E. É hora de mudarmos de via: lições do coronavírus, trad. Ivone Castilho Benedetti, colaboração Sabah Abouessalam. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2020.
Urgente: mudar o pensamento, ensinar a viver
Quando propomos um modelo que não é aquela do mundo da vida, dele Husserl fez uma filosofia, o seu Lebenswelt (mundo da vida), Habermas fez dela uma sociologia, Heidegger e Gadamer a incorporam em seus pensamentos, mas afinal que é a vida senão uma aprendizagem, não aprendemos com a pandemia.
O problema central de busca de uma “clareira” é que criamos modelos demasiadamente longe da vida, de sua defesa incluindo a natureza, a dignidade e o próprio viver, estamos num Setembro Amarelo, cujo tema não é outro senão o de dizer que vale a pena viver. Teremos uma clareira, mas ela durará pouco, e poderíamos começar já uma grande mudança, depois poderá não haver tempo.
Foi Morin que fez dela uma ousadia ao escrever Ensinar a Viver, a pedagogia esquecida e o método pouco utilizado, quando Morin escrevia seu Método (na verdade em vários volumes e sentidos), li no comentário da Editora Sulina que o publicou no Brasil, que “ele o desfaz em partes que, holograficamente, repetem esse todo de maneira sintética, mas completa”.
Morin começa por uma crítica que muitos fazem na universidade, mas se curvam a ela para não fazer valer suas “carreiras”, ele critica essa “deriva das universidades”, cujo dilema central ele sempre retorna que é “refazer o pensamento”.
Agarrados a métodos e modelos já superados, logicistas e neopositivistas, não se aponta “a natureza do conhecimento, que contém em si o risco de erro e de ilusão” (MORIN, 2015, p. 16).
O grande teórico da complexidade propõe antes de tudo um retorno a filosofia (no sentido do pensamento primário) em sua condição socrático de diálogo, aristotélicas (no sentido entre outros, da organização da informação), platônica (questionamento das aparências), e até mesmo pré-socrática (questionamento do mundo, inserção do conhecimento na cosmologia moderna), enfim não pode ensinar a vida sem saber que ela tem dilemas, erros e opções.
Morin, que poderia arrogar-se de sabedoria pela idade, pela intensa atividade intelectual, desde do pedestal daqueles cheios de certezas, sem dúvidas ou equívocos que vemos desfilar pelas academias e pelos palanques públicos da mídia devoradora e pouco questionadora.
Morin busca “conceber os instrumentos de um pensamento que fosse pertinente por ser complexo” (Morin, 2015, p. 23), e vemos a barbárie de certezas dogmas e pouco elaboradas.
Frases prontas, manuais de autoajuda, laissez-faire (principalmente econômico), grosseria e histeria ideológica, fazem um aprofundamento da crise cultural, humanitária e social de hoje.
Me assusta que leitores de manuais tenham tanta certeza com tão pouco pensamento, aliás a crítica ao pensamento cresce e o elogio da ignorância parece vencer qualquer argumento.
Morin nos encoraja e nos remete a um futuro ainda visível e possível, sua palestra na Fronteira do Pensamento (em 2016) é uma esperança e um aprofundamento que lança novas luzes.
MORIN, Edgar: Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação. Trad. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Porto Alegre: Sulina, 2015
Existência, repetição e Ser
Na filosofia pode-se ter forma (morphé) e matéria (hilé) e todos seres tem morphé-forma e hilé-matéria, mas a in-formação depende do pensamento, depende da disponibilidade ao ato de pensar e não apenas o de repetir, aqui encontramos este segundo tópico, que o repetir não significa apenas tornar-se redundante, o problema civilizatório permanece se não avançamos.
Em palestra em 2016, no Salão de Atos da UFRGS Sloterdijk já sentenciava: “Penso que a realidade hoje se assemelha a como estávamos em 1915 – comentou ele, comparando o atual panorama com uma época no século passado em que a I Guerra recém havia começado e não haviam se sucedido…”, este quadro só se agravou, a pandemia poderia ser uma pausa, mas não foi.
A repetição pode ser vista como submissão as regras, as leis da natureza, da sociedade enfim de um conjunto de situações que te aprisiona, como pode ser uma tomada de consciência de quem você efetivamente é, aquilo que é sua verdadeira natureza, então repetir é a possibilidade de ser no presente e projetar-se no futuro, então entra-se na existência.
O acesso a existência humana num novo tipo de registro implica uma articulação de sentido para o Ser e para a vida, o caminho percorrido de Husserl a Heidegger, e depois com Gadamer é o que liga a hermenêutica a ontologia, e em Gadamer é explicitado o método do círculo hermenêutico.
Pode ser assim descrito seguindo o raciocínio de Gadamer: não deve ser degradado a um círculo vicioso, mesmo que esteja seja tolerado, nele vela uma possibilidade positiva do conhecimento originário, que, evidentemente, só será compreendido de modo adequado quando a interpretação compreender sua tarefa primeira.
Esta tarefa primeira constante e última permanece sendo a de não receber de antemão, por meio de uma “ideia feliz” ou por meio de conceitos populares, nem a posição prévia, nem a visão prévia, mas em assegurar o tema científica na elaboração desses conceitos a partir da coisa mesma. (GADAMER, 1998, p. 401).
Visto o método voltamos a questão essencial do Ser, que é o esquecimento na filosofia ocidental deste conceito, desde Platão até Nietzsche, e assim temos uma metafísica ou sua negação, ambas de forma incompleta porque um conceito tão essencial não foi abordado.
É o esquecimento do ser, que o filósofo diagnostica em toda a tradição filosófica ocidental, começando com Platão e se estendendo até Nietzsche.
Na sua obra “Que é metafísica” (escrita em 1929), o Heidegger definições assim a existência: “A palavra existência designa um modo de ser e, sem dúvida, do ser daquele ente que está aberto para a abertura do ser, na qual se situa, enquanto a sustenta” (1989b, p.59).
Sem esta categoria essencial a discussão e o pensamento fica preso ao “ente”, que Tomás de Aquino a define assim: “De onde se segue que a essência, pela qual uma coisa se denomina ‘ente’, não é apenas a forma, nem apenas a matéria, mas ambas, embora à sua maneira apenas a forma seja a causa desse ser” (Aquino, 2008, p. 10), nesta linha ontológica não há separação entre o Ser e o Ente.
Assim temos além do Ser, sua categoria agregada do ente, que lhe é inseparável.
AQUINO, T. O Ente e a Essência, Universidade da Beira Interior. LusoSofia.Press, Covilhã, PT, 2008.
HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica? In: HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1989.
GADAMER, H.G. Verdade e Método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
Os fundamentos do conceito de ideia
Seguindo um raciocínio de Sloterdijk, no qual os fundamentos devem ser pensados e em função deles poderem retornar ao princípio e ao pré-conceito de cada pensamento, pode-se rever ideia com o “eidos” grego, o conceito atual é kantiano.
Para Aristoteles haviam princípios universais, não como pensou Kant mais tarde, mas partindo da ideia do uno (tó hen), o que é (tó ón) e os gêneros (animais, plantas, seres vivos), enquanto a essência (eidos) não seria um universal, mas algo comum (koinos) a múltiplas coisas, não há portanto em Aristóteles o dualismo idealista, mas a separação entre os universais e a essência.
O sentido eidético da hermenêutica é aquele que promove a unificação do interno e do externo nas manifestações da vida, nas ciências da natureza o objeto é visto por si mesmo (retornar as coisas por elas mesmas), já nas ciências idealistas o “objeto” é aquele alcançado por um esforço contínuo do pesquisador (a transcendência kantiana), embora se comprometa a retornar com frequência á tradição, o todo não se renova, pois o “objeto” está separado de si mesmo pela observação isolada, fora do Ser e das possíveis pré-conceituações, é o uma “ideia”.
Em Platão este dualismo se acentua, o mundo sensível e o mundo das ideias (ainda no sentido do eidos, essência), esta separação será incomoda para os idealistas modernos, que a re-unirão, mas sem uma necessária reflexão filosófica, com isso permanecerá a dicotomia sujeito e objeto, jamais reunidas enquanto Ser (interna e externamente).
A ontologia, e o método da hermenêutica filosófica é uma tentativa de reunir estes campos, embora permaneçam distintos e sob tensão, porém com possibilidades de clarificação ultrapassando a separação clássica.
Gadamer em sua obra matter “Verdade e Método” vol. II, a retoma assim:
“A hermenêutica é a arte do entendimento. Parece especialmente difícil entender-se sobre os problemas da hermenêutica, pelo menos enquanto conceitos não claros de ciência, de crítica e de reflexão dominarem a discussão. E isso porque vivemos numa era em que a ciência exerce um domínio cada vez maior sobre a natureza e rege a administração da convivência humana, e esse orgulho de nossa civilização, que corrige incansavelmente as faltas de êxito e produz constantemente novas tarefas de investigação científica, onde se fundamentam novamente o progresso, o planejamento e a remoção de danos, desenvolve o poder de uma verdadeira cegueira.” (GADAMER, 1996, p. 292).
Gadamer após explicar que o retorno ao Ser, proposto por Heidegger é um retorno ao método hermenêutico, que não era nem desenvolver uma teoria das ciências do espírito (como fez o idealismo, e o alemão em especial) nem propor uma crítica da razão histórica, como fez Dilthey, e que Gadamer vai esclarecer em seu livro “A questão da consciência histórica” para dizer que não se trata nem de romantismo histórico.
O seu objetivo final está expresso ao afirmar: “o que fiz foi colocar o diálogo no centro da hermenêutica” (Gadamer, 1996, p. 27), mas seu diálogo nem é idealismo (seria absurdo) e nem alguma forma de cegueira filosófica, é justamente o resgate da hermenêutica-filosófica.
Seu diálogo não é, portanto, nem o dogmatismo idealista, hoje mais que teoria tornou-se dogmatismo a-histórico, e sim a identificação dos pré-conceitos, a partir dos quais é possível tanto a fusão de horizontes quanto aceitação dos distinções de cosmovisão.
GADAMER, H.G. Verdade y método v. II.S alamanca:Sígueme,1996.2v.
Sobre a verdade e a filosofia
Foi o racionalismo que levou a duvidar da existência exterior (o Outro, os objetos e o castelo exterior), já na clássica divisão corpo e mente, a questão até o final da idade média era entre realistas e nominalistas, os primeiros diziam que o real é que existe e os segundos que somente nomeamos o que é exterior, o que existe está na mente, hoje há a reviravolta linguística.
Imannuel Kant afirma que as percepções dos sentidos são posteriores à experiência enquanto é necessário um a priori universal, usando o argumento dos realistas, chama-o de juízo analítico enquanto os primeiros são os sintéticos, feitos a partir da junção de informações.
O ápice do idealismo é Hegel, que estabelece vários conceitos ideais: o estado, o espírito e a ética, porém a crise da modernidade retornará a velhos dilemas: a linguagem, o discurso e o que é a coisa ou o Ser, há então três reviravoltas: a linguística, a ontológica e a do “sagrado”.
Karl Klaus (1874-1936) já reclamava sobre a verdade no meio jornalístico, é verdade que a indústria cultural movimentou massas, e as Mídias de redes agora também, mas e a verdade?
A verdade da facticidade perdeu força, há visões alternativas e até mesmo a corrupção dos fatos, algo absurdo como “fatos alternativos”, não se trata absolutamente de hermenêutica pois é justamente sua ausência, a falta de um círculo hermenêutico onde os pré-conceitos sejam superados e se possam traçar novos horizontes que re-interpretam os fatos e constroem o futuro.
Os grupos entrincheirados em suas meias-verdades não se comportam senão como torcidas, a dialógica, a aceitação do Outro e a Empatia não são senão formas demagógicas como tentativas de cooptar membros para a própria torcida.
Claro que há um futuro latente, setores da sociedade onde a cooperação, a solidariedade e o exercício de enxergar o Outro já é exercício, são grupos e pessoas que trocaram a maneira dogmática de ver o mundo por uma visão mais ampla, além do grupo e da torcida.
Mas ainda há aqueles que cerrando fileiras em seus “grupos” vão exigir a obediência cega, o respeito a “autoridade” e não raramente vão apelar a métodos autoritários para dobrar o Outro.
A verdade irá emergir em meio ao caos, nos nichos da sociedade onde há Phronesis, verdadeira reflexão, olhar o mundo como um Todo e o Outro com respeito a suas particularidades.
A hermenêutica e a verdade
O grande arquiteto da hermenêutica no século XX foi Hans-Georg Gadamer (1900-2002), que criou uma hermenêutica filosófica, influenciado pelos estudos de Martin Heidegger, de quem foi aluno na Universität Marburg, reelaborou o conceito do círculo hermenêutico a partir de Heidegger.
Na sua obra prima Verdade e Método: elementos de uma hermenêutica filosófica, publicada em 1960, Gadamer não apenas revolucionou a hermenêutica ocidental moderna, como também a reorientou criando uma nova hermenêutica filosófica baseada na ontologia da linguagem.
Segundo Heidegger a hermenêutica é filosófica e não científica (no sentido dos métodos convencionais ainda em vigor), ontológica e não epistemológica, existencial e não metodológica, porque procura a essência da compreensão e não sua norma ou “método”, o método oscila entre o positivismo e o racionalismo, mas sem pertencer ao fenômeno.
O estudo e a compreensão da existência, uma vez que este permite o conhecimento do Ser, precede as normas, até mesmo aquela consideradas “éticas” pelo iluminismo/idealismo, das regras sociais e não regras morais, diz a teo-ontologia por que o “sábado pertence ao Homem e não o Homem pertence ao sábado”, aqui em referência a “regra ética judaica” ou de sabatistas de guardar o sábado.
Segundo Heidegger, a hermenêutica seria filosófica, e não científica; ontológica, e não epistemológica; existencial, e não metodológica. Seria responsável por procurar a essência da compreensão, e não a normatização do processo compreensivo. O estudo da compreensão confundir-se-ia com o estudo da existência, uma vez que permitiria o conhecimento do Ser.
Embora a hermenêutica contemporânea venha de Schleiermacher e Dilthey, que defendiam a abertura do espírito para uma época que julga a antecedente, e isto seria o processo histórico, Gadamer aponta que não podemos abandonar o presente e enveredar pelo passado como tendo uma “lição histórica”, pelo contrário são os termos das questões que se colocaram no passado que podem define os termos do presente.
O fato do homem vivenciar uma realidade história faz com que sua visão de mundo, e por consequência, suas possibilidades de conhecimento partam dos pré-conceitos que o cercam, tonando impossível eliminá-los por completo, para que possa ler a verdade absoluta, como pretendiam iluministas e historicistas modernos, é um véu sobre a verdade e não a própria.
O círculo hermenêutico que já estava desenhado na obra de Heidegger, na ótica de Gadamer tem um sentido ontologicamente positivo para a compreensão, que segundo ele, no decorrer da interpretação, a elaboração de novos projetos e um novo horizonte se faz necessário.
Assim somente com a admissão dos pré-conceitos vindos da historicidade do interprete que ao serem devidamente analisados em sua veracidade, possibilita uma nova compreensão, a elaboração de novos horizontes, verdadeiramente coerente.
Passar da pré-compreensão para análise e síntese é permanecer no erro, por mais criativo que seja este processo, a ruptura dos pré-conceitos vem “de fora”, da abertura e da reelaboração.
Por isto sistemas viciados, fechados, provincianos e demagógicos sucumbem, trituram o Ser, dizem dar-lhe “identidade”, mas dão apenas fechamento e obsessão
Euforia e serenidade
O contrário de serenidade não é irritação ou ira, estas são o contrário de calma (ou longanimidade), o contrário é euforia, já postamos a relação entre serenidade e Phronesis, palavra grega que poderia ser traduzida como sabedoria prática, central no livro de Hans Georg Gadamer, e que a nosso ver se aproxima de serenidade.
Há aqueles que acreditam em euforia depois da covid.
Isto porque vivemos em tempos de reações impulsivas as questões colocadas, em que depois da euforia vem a depressão e o desanimo, que no fundo são sempre falta de phronesis, ainda que muitos chamem a atenção para a ação, para a prática, mas descolada da sabedoria.
Em Verdade e Metodo II (segundo volume), predominam colocações sobre a estrutura dialógica da linguagem pensada como a que pode orientar o mundo (e nossa visão de mundo) e a relação mais clara entre pensamento e linguagem.
O esclarecimento que faz da questão histórica, foi Gadamer que superou a discussão de Dilthey e outros da historicidade romântica, sua hermenêutica filosófica aprofunda como uma hermenêutica da escuta, na escuta e para a escuta, verdadeira visão do Outro.
Gadamer no segundo volume dá estrutura a uma frase do escritor russo Leon Tolstoi: “Não existe grandeza onde não há simplicidade, bondade e verdade”, se verdade é difícil de ser dita, quando praticada em sabedoria Phronesis ela abre uma “clareira”, a escuta do outro.
Será que o universo nos “ouve”, será que plantas e animais nos “ouvem”, é preciso entender sua linguagem e neste sentido linguagem não é qualquer coisa da simples fala, é escuta.
No vídeo abaixo Gadamer retrata a história da filosofia, mas com phronesis e verdade:
A paz desejada e não construída
Sabemos que a “pax romana” era a rendição ao império que dominou boa face do mundo civilizado de então, é hoje certo que já haviam povos em diversas partes do planeta, mas seus registros paleontológicos não deixam muitas marcas de suas culturas, e, talvez como pensou Rousseau “o bom selvagem” vivia em paz, porem no conflito natural com a natureza.
A “paz eterna” elaborada pelos idealistas e idolatrada pelos adoradores do “estado moderno”, pouco é aprofundada porquê de fato para muitos será este o estado, desculpem a ironia, final da humanidade, devendo apenas ser aperfeiçoado.
Kant publicou no ano de 1798, numa revi ta de Berlim, o ensaio “Anúncio da próxima assinatura de um tratado para a paz perpétua em filosofia”, que foi uma retomada de seu ensaio feito dois anos antes: “Para a paz perpétua”, que ficou confinada na sua filosofia.
Isto porque o objetivo era resolver a paz no interior de um só Estado, ou no plano das relações entre diferentes Estados, que podemos ver mesmo com o surgimento da ONU e com o aumento de nações democráticas, que em essência a ideia de Estado permanece iluminista.
Deste ensaio pode-se supor que o que o filósofo entendia por filosofia significa que se os sistemas da filosofia encontrassem uma solução para seus conflitos eles poderiam auxiliar os sistemas políticos a resolverem seus conflitos, por isso permanece no campo idealista.
O conflito entre objeto e sujeito, que faz supor que é no objeto que se encontra o conflito e não no sujeito é a hipótese do sistema idealista/iluminista, mas é na facticidade dos sujeitos históricos que estão os conflitos, entendo estes não como a historicidade romântica, pois facticidade é o conceito heideggeriano do sujeito lançado no mundo com seus fatos.
Assim o que se entende por paz além do idealismo é aquela passível de ser construída na facticidade do dia-a-dia, em cada conflito encontrado em cada fato, sem estar confinado aos pressupostos teóricos ou filosóficos, mas ali onde está o “ser lançado no mundo”.
A paz, portanto, é construída e não um acordo entre estados ou no seu interior, o tratado de paz da 1ª. guerra mundial levou a segunda, dizem alguns leitores da história mundial, o fato é que houveram duas guerras e os estados “modernos” não só não evitaram, como são autores.
“Se deseja a paz, constrói a paz”, dizia um político italiano, bem poucos entendem isto.
Um pós-pandemia será problemático, pode inclusive caminhar para uma crise civilizatória, onde muitas providencias deveriam ser tomadas já a partir de agora.