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A porta larga dos equívocos modernos
Um grande número de enunciados, proposições e teorias científicas ou não emergem em meio ao período de pouca luz na cultura ocidental, crescem teorias apocalípticas e uma visão cada vez mais maniqueísta da realidade, a visão de uma lógica dualista e sem terceira hipótese.
Ao mesmo tempo descoberta como a física quântica, a holografia, e uma nova cosmovisão do universo emergem, porém há quem acredite que a terra é plana e que nunca fomos a Lua.
São demasiados problemas específicos para serem tratados, mas a filosofia de um modo geral contemporânea mais que neoliberal, este é seu aspecto pragmático econômico, ela é idealista e mesmo filosofo-youtubers que discursam sobre filosofia a seguem.
Kant é complexo, mas seu ponto central é a dicotomia entre sujeito e objeto, como elas não podem ser separadas, ao menos em termos de teoria do conhecimento, ele criou os juízos analíticos e sintéticos. Quem curamos a doença ou o doente, para Kant seria a doença, com olhar “de fora”.
O juízo analítico é aquele que o predicado está dentro do sujeito, e assim é ele que especifica sua lógica, e esta lógica vem de uma visão físico-matemática do conhecimento na modernidade.
Exemplifica usando figuras geométricas como o triângulo e o quadrado, claro este tem quatro lados, mas isto não é uma dedução e sim uma tautológica, definições circulares.
Já o juízo sintético ao contrário não pode estar contido no sujeito, assim acrescenta um raciocínio como algo completamente novo, ou seja, a novidade é o predicado.
Está muito simplificado, mas essencialmente desenvolve-se uma lógica onde Ser e Ente são coisas confusas e desmonta a possibilidade de uma ontologia, mesmo que seja parcial, e imaginava com isto jogar toda as “superstições” fora, o famoso “Sapere audi”, ousar saber.
Como a razão por si só não bastava, foi necessário introduzir a ideia do empirismo, que vinha das argumentações de David Hume (1711-1776, assim os juízos podem a priori, que já existem no sujeito, e a posteriori, adquirido experimentalmente.
Moritz Schlick (1882-1936), que fundou a escola neologicista do Circulo de Viena, criticou a base idealista de um conhecimento a priori, afirmando que uma vez que os enunciados têm uma verdade lógica, eles não são nem analíticos nem sintéticos, tal como argumentava Kant, pois era paradoxal; e que se a verdade depende do conteúdo factual, os enunciados são, portanto a posteriori e não a priori, uma vez que os fatos devem acontecer, Schlick foi assassinado pelo nazismo.
No círculo de Viena estiveram presentes Kurt Gòdel, Karl Popper, Hans Kelsen e outros.
Uma mesma proposição pode ser conhecida por agentes cognitivos tanto a priori como a posteriori, usando o mesmo exemplo de Kant, uma criação só sabe que o quadrado tem 4 lados depois que aprende a contar, enquanto para um adulto parece “indutivo”.
Assim o conhecimento é uma relação entre agentes cognitivos e as proposições, que primitivamente não são nem a priori nem a posterior, poderão ser conhecidas por fatos.
Em 1936 Husserl escreve sobre a “Crise dsa ciências europeias e a fenomenologia transcedental”, o conhecimento estava em plena crise, em meio a II guerra mundial.
O vídeo abaixo elucida o pensamento de Kant, com comentários de Antonio Joaquim Severino;
O futuro e diálogos pouco abertos
A ideia que estamos próximos a uma grande mudança está na boca de muitos apocalípticos e de alguns teóricos e até filósofos idealistas, embora a maioria reivindique abertura e diálogo, o que pensam sobre ele não é elaborado, fazem longos discursos e tecem narrativas irreais, porém querem ouvir a própria voz.
O verdadeiro diálogo entre tradição e mudança, felizmente há neste campo muita gente fazendo isto de modo apropriado, deve propiciar ao mesmo tempo uma releitura do passado, um respeito e a compreensão do porque dos fatos aconteceram desta ou daquela forma.
Esta é a leitura desde os pré-socráticos, passando pela alta e baixa idade média, o renascimento e o iluminismo, embora cada período se possa fazer a crítica, e até ela deve ser bem feita, é fácil fazer a releitura crítica porque este tempo passou e difícil deste tempo, porque ele chegou.
Difícil principalmente do iluminismo e da modernidade, a pós-modernidade ou ainda a tardia, ou sua continuidade, ainda tem difícil leitura porque a transição não se realizou e o problema que se coloca é a dificuldade de ultrapassá-la, quase todos concordarão que a modernidade já é mais tradição do que qualquer possibilidade de uma nova “revolução” dentro do seu pensamento, embora as tentativas sejam muitas.
Nietzsche chamava este dilema de “eterno retorno”, ele já percebia em seu tempo e há quem ache que isto é novo, e em parte tinha razão pelo horizonte que via no seu tempo, mas quando o novo não nasce o pensamento tradicional padece de envelhecimento e de mesmice.
Tenta-se dar-se um ar “novo”, ou “criativo”, mas não há nada que realmente mude a realidade.
Grandes problemas socioculturais de nosso tempo, morais e até religiosos não se mudarão sem uma perspectiva nova, embora redundante dir-se-ia um “novo” novíssimo, e para que de fato não seja pura imaginação, deve-se encontrar elementos já vivos que apontam o futuro.
Três elementos novos são visíveis: um planeta mundializado, é já possível ver-se como mundo embora ainda não se respeitem culturais diferentes, um esgotamento das forças da natureza, o domínio da natureza pelo homem foi o grande modo da modernidade, e o fim da fome e da miséria no planeta, embora com recursos disponíveis para tal, não se realizou.
Claro que há muitos outros fatores, mas eles são decorrentes da falta de diálogo com o futuro, a centralização de grupos autocráticos, a ausência de uma política e cultura em rede, embora os mecanismos para isto existam, são combatidas como “alienação” e até como responsáveis por problema que existem muito antes de qualquer pensamento sobre as novas tecnologias.
As novas gerações sabem o que é novo, alguns “velhos” tentam retomar o “protagonismo”.
Morte aparente do pensamento
Se há uma esfera além da pura antropologia e do cientificismo darwinista não está apenas no pensamento religioso, mas também no pensamento que vai além do humano, este pensamento embora em crise, está presente na filosofia contemporânea.
Peter Sloterdijk escreveu A morte aparente do pensar: sobre a filosofia e a ciência como uma vida de exercícios, seu tema geral sobre a sociedade contemporânea como “uma vida de exercícios”.
O livro é o resultado de várias palestras proferidas em 2009 chamada de Palestras “unseld”, no Fórum Scientiarum da Universidade de Tübingen cujo tema era “A antropologia nas discussões da ciência”, e o autor propõe duas formas de antropotécnica, a de curto alcance (Tens de mudar sua via) e uma de longo alcance chamada Selbstverbesserung (aprimoramento do sim).
Há uma releitura de Kant e Cassirer devido a um excesso ontológico, que compensa o “déficit biológico”, explico melhor, o ser que procura transcender a uma realidade biológica deficiente, de tal forma que o seu “exercício de vida” geral novos problemas, teorias filosóficas e científicas.
Vendo que a exposição e práticas na história usual das ideias tornaram possível a existência de uma improvável ciência e filosofia, ele elabora uma genealogia do “homo teórico”, o “puro observador”.
Analisa as condições que surge no Ocidente a atitude teórica em geral, e a ciência em particular, onde vê o que ele denominará “o assassinato de um morto aparente” (p. 14), ampliará a noção husserliana do epoché, colocar entre parêntesis toda exterioridade e juízo, e amplia este conceito.
O método genealógico proposto capaz de reelaborar a origem do produto das ciências, implica o que Nietzsche adotou como atitude de suspeita: “Será que o homo teórico realmente vem de um berço tão alto quanto ele garante-se desde os primeiros dias? Ou é melhor um bastardo que quer impressionar com títulos falsos? ” (p.57), a provocação tem um caminho anterior já trilhado.
Ira e Tempo (2006), refere-se ao produto do fracasso no espaço da polís), psicológico (para uma disposição psíquica de se distanciar do meio), sociológica (por uma pedagogia de formação do indivíduo) e meio-teórico (o resultado de uma cultura escrita que predispõe a distância de um texto, que por sua vez mantém a distância do tempo da vida.
Todo este arcabouço e para dizer que estamos diante de dilemas extremamente duros para o homem, para o pensamento e para o próprio processo civilizatória, é além e aquém da pandemia, a irrupção do real em Marx e nos neohegelianos, o perspectivismo nietzschiano, a consciência de classe em Lukács, a trajetória de Heidegger, a revolução ética nas ciências naturais depois de Hiroshima e Nagasaki, o compromisso existencialista, o conhecimento em Scheler, Kuhn e Foucault, a desmistificação do isolamento em pesquisa científica de Latour e CTS (Ciência, tecnologia e Sociedade) (pags. 121-129).
SLOTERDIJK, P. Muerte aparente en el pensar. Sobre la filosofía y la ciencia como ejercicio. Siruela. Barcelona, 2013.
As meditações cartesianas e a fenomenologia
Um pequeno livro de Edmund Husserl, que foi uma compilação de uma conferência em Paris, foi o opúsculo Meditações Cartesianas, onde faz cinco aportes e é a partir daí que dá origem a uma formulação consistente da fenomenologia.
O caminho de um Ego Transcendental, diferente da transcendência idealista em direção ao objeto, é uma direção ao Outro, ou outros eu´s, uma superação do estatuto do transcendente ligado ao objeto, assim descreve Husserl: “…. imediatamente se torna patente que o alcance de uma tal teoria é muito maior do que parece à primeira vista, dado que ela também conjuntamente funda uma teoria transcendental do mundo objetivo …” (HUSSERL, 2010, p. 134).
Ao admitir e se relacionar com a subjetividade alheia (um outro alter ego) tanto os objetos da cultura como o mundo compartilhado, cria uma intersubjetividade (HUSSERL, 2010, p. 134-35), agora do fenômeno transcendental “mundo” é retirada uma camada de sentido que possa ser remetida à constituição intersubjetiva.
A crítica da experiência feita por Husserl no início das Meditações, leva a primazia da experiência Imanente (apodítica do cogito, preso a lógica) enquanto a experiência transcendente (o mundo exterior e os outros incluídos) não se reduzindo a experiência transcendental em direção ao objeto.
Husserl usa também o conceito de solipsismo que é a ideia que que só existe o ato de pensar e o próprio eu, veja que neste raciocínio a própria existência do objeto é postar em dúvida o que é resolvido pela experiência, neste caso há um solipsismo gnosiológico onde os outros entes (seres humanos e objetos) só existem na mente e não na consciência.
A doutrina fenomenológica fundamenta-se que o mundo objetivo da ciência está voltado a experiência e no pensamento pré-reflexivo e pré-científico porque está ligado a subjetividade, para modificar esta relação de ser no mundo, incorporando o mundo da vida (Lebenswelt) de onde surge a necessidade de uma antropologia filosófica e uma epistemologia que responda estas a este desafio.
Como consequência deste pensamento surgiu a ontologia fenomenológica como uma possibilidade clara no próprio projeto de Husserl, embora não tenha aprovado num primeiro momento o trabalho de Heidegger.
Outra possibilidade de uma hermenêutica filosófica como foi elaborada por Hans-Georg Gadamer também estava ali desenhada e o círculo hermenêutico já estava em projeto no pensamento de Heidegger.
HUSSERL, E. Meditações cartesianas e conferências de Paris. Tradução de P. M. S. Alves. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2010.
João Damasceno e a pericorese
Mesmo aos que não creem o conceito de pericorese é importante porque torna a ideia de relação algo mais substancial, embora já se admita que o homem é um ser relacional, a relação está cheia de dualismos e interpretações não trinitárias (no caso dos cristãos) e pode levar a indiferença.
Depois de resolvido o dogma trinitário pelos padres capadócios, que explicaram que Deus é Uno e Trino, são pessoas (hipóstase) e mantem a unidade (ousia), Damasceno vai se debruçar sobre a relação entre as três pessoas e cria um termo usado também na filosofia: pericorese, a interpenetração nas relações, isto é a possibilidade de ouvir o Outro não apenas por respeito, que já seria um passo, mas tentando penetrar e entender as razões de seu pensamento.
Foi João Damasceno (675-749) ou de Damasco foi um padre Sirio, que estudo direito e musica e na teologia estudou relação de pericorese ou a relação trinitária, o termo emerge propondo a articulação entre a unidade e a comunhão na Trindade, parece simples dizer isto, mas difícil de entender e praticar, pois a maioria das relações excluem o Outro que é diferente, seja ele de cor, raça, credo ou cultura, muito a frente do seu tempo João Damasceno era amigo dos sarracenos, mas tarde a igreja católica o tornou santo.
No seu percurso teológico histórico procurou buscar algo que explicasse a relação, que estive de acordo com aquilo que as escrituras diziam de Deus e sua relevância na história: a articulação entre o conceito de Deus que é trino e uno, mas sendo cada um, uma pessoa singular (prosopon) e Deus, João estruturou a via intra-trinitária, a partir do conceito grego de pessoa: hipóstase.
Na palavra grega significa hypo, o que é sub, debaixo, e stasis, o que está sub-posto, como se fosse um suporte, porém como relação divina este conceito devia ser ampliado e explicado.
O termo pericorese emerge nesta Teologia Patrística, como a articulação entre unidade e comunhão da Trindade, mas indo além, assim o Pai é uno no Filho e o Filho uno no Pai, e ambos unos no Espírito Santo, assim há uma interprenetração, é mais que pura relação, é Ser no Outro.
O problema de algumas interpretações religiosas é a relação estática dos três, que é a relação dualista que vem da filosofia idealista, onde sujeito e objeto estão separados e são relacionais por um tipo de transcendência, que na verdade nada tem a ver com o mistério Divino nem é religiosa.
O mistério divino tem a ver com o período Pascal, morte e ressurreição numa relação trinitária, na filosofia há algo semelhante que é a epoché, a suspensão de conceitos (ou juízos religiosos) porém colocados entre parênteses, gera assim uma abertura que permite a relação, e como resultado que cada pessoa é compreendida, ela não perde sua identidade e é capaz de entender o Outro.
Numa ascese espiritual mais profunda é o esforço de entender e amar o Outro que é diferente, que não é meu espelho, não tem os meus conceitos e juízos, não classifica o mundo como eu, a grande tragédia de nossos dias é a falta de pericorese, e assim de relações trinitárias.
Penso que a pandemia nos mostra isto, mesmo tendo uma grande dor que mata a todos e que sensibiliza muita gente, que abre o coração para olhar o sofrimento do outro, há aqueles que se fecham em grupos, ideias e esquemas para não olhar a dor, a fome e o desespero que a pandemia gerou, ou acordamos juntos ou perecemos juntos, ficar na nossa trincheira é não relacional.
A importância do legado de Droysen
Afirmamos na semana anterior (ver o post) que tanto a perspectiva do helenismo de Droysen (ele cunhou o termo) quanto a perspectiva do verdadeiro significado da história sua eram mais amplas, muito antes das críticas de Gadamer ao historicismo “romântico”, este autor que foi aluno de Hegel, já o tinha feito e com muita propriedade pois além de aluno, penetrou neste conceito do qual Hegel é fundador na filosofia moderna.
Johann Gustav Droysen (1808-1884) questionava o princípio da historicidade, e, muito antes do seu tempo questionou os historiadores sobre os fundamentos “científicos” de um certo perspectivismo e relativismo, assim como também indiretamente questionava Dilthey na tentativa de usar a história para fundamentar as Ciências do Espírito.
Droysen em seu Compêndio sobre a História (Grundriss der Historik) que não era adequado à História, tendo esta a pretensão de ser ciência, tomar seu método emprestado de outra perspectiva do conhecimento, que é a ciência natural, mesmo que como “exemplo”.
A solução por ele apresentada, parecida a de Gadamer, sintetizável na noção metodológica de Compreensão Investigativa (forschendes Verstehen), visava dar a História a possibilidade de uma ciência autônoma, assim para ele existe algo que precede ao dualismo explicação x compreensão, que é a história, o que chamamos na semana passada de “forma” do pensar.
A sua obra Compêndio da Historia (Grundiss der Historik) de 1857/1858 está disponível em versão espanhola (1983) e versão italiana (1989), ainda ser versão em português.
É de interesse particular, pelo menos o foi para mim, o capítulo 3 que trata do problema hermenêutico da compreensão, que dá uma noção da aplicabilidade do seu método.
A ligação que podemos e devemos fazer com a questão moral, do tópico anterior, pode ser encontrada na página 386 de seu trabalho Teologia dela Storia (tradução italiana):
“… nós temos a necessidade de um Kant, que examinasse criticamente não a matéria histórica, mas o movimento teórico e prático diante e no interior da história, e que demonstrasse, a exemplo de qualquer coisa análoga a lei moral, um imperativo categoria da história, a fonte viva da qual jorra a vida histórica da humanidade. ” (DROYSEN, 1966, p. 386).
Droysen observa naquilo que chama de “Sistemática” três tipos de comunidades éticas: “as comunidades naturais”, “as comunidades ideais” e “as comunidades práticas” (figura acima), e a elas relaciona da história, dito assim: “a nossa sistemática resultou da noção de que o mundo história é o mundo ético, mas enquanto concebido sob um determinado ponto de vista; porque o mundo ético pode ser considerado sob outros pontos de visa …” (Droysen, 1994, p. 413).
O seu devir, portanto, está longe da dialética hegeliana, mas ao mesmo tempo dialoga com ela.
DROYSEN, J. G. Teologia dela Storia. Prefazione ala Storia dell´Ellenismo II – 1843. In: Istorica. Lezioni sula Encilopedia e Metodologia dela storia. Trad.: I. Milano – Napoli: Emery, 1966.
_______. Istorica. Lezioni di enciclopédia e metodologia dela storia. Trad. Silvia Caianiello. Napoli: Guida, 1994.
Tradição e inovação tem alguma relação ?
No âmbito cultural imagina-se muitas vezes que não, ou estabelece inovação apenas no âmbito estrito da cultura, enquanto ela tem relação com as crenças, valores, e principalmente com as formas de relações sociais que envolvem a produção de riquezas, o uso de técnicas, por exemplo, a passagem da cultura oral para a escrita, significou uma mudança profunda.
Inovação está ligada a alguma mudança cultural significativa, em geral, com influência de novas técnicas e modos de produção para consumo, mas o termo é mais amplo.
A mudança hoje é das mídias para as transmídias, isto é, as mídias se complementam pode-se fazer um vídeo a partir de um texto ou de uma exposição oral de determinada cultura, assim pode-se falar de narrativa de transmidia, ou de “storytelling”, ou seja, contar estórias.
O termo foi utilizado pela primeira vez pelo professor Marsha Kinder, da Universidade de Sourthern California (EUA), em 1991, mas em 2003 o professor Henry Jenkins criou uma definição que ficou consagrada em seu livro “Cultura da Convergência”, onde definiu-a como: “[…] uma nova estética que surgiu em resposta à convergência das mídias”.
Ao remeter a estética o termo, este ultrapassa a pura produção de produtos de consumo para atingir a arte, a cultura e de certa forma o sistema de crenças como um todo, mesmo que a rejeição em diversos âmbitos seja comum, o processo de “inovação” avança.
Também há uma redefinição de storytelling, a tradição da cultura oral de contar estórias, onde a tradição se perpetua muda para uma nova forma, agora torna-se o uso de recursos audiovisuais para transmitir uma história, que pode ser contada de improviso (como na tradição oral), mas pode também ser trabalhada e enriquecida com recursos visuais.
JENKINS, Henry. Convergence Culture: Where Old and New Media Collide. NY: New York University Press, 2006.
Phronesis e serenidade
Não por acaso Gadamer adota a Phronesis como um dos elementos chave em seu discurso sobre Verdade e Método, incompletamente traduzida como prudência, o termo na verdade dever-se-ia ser confundido com “sabedoria” prática da serenidade, tradução livre.
Isto porque a nosso ver, Gadamer é reabilitador da filosofia prática, os que clamam por pratica, objetividade (sic! bem idealista), são pouco práticos por ausência de sabedoria, são impulsivos e activos (no sentido de vita activa de Chul-Han), típicos da sociedade do cansaço.
No sentido grego, está agregada a ética, mas não é um saber privado no sentido da moral e sim público e social, que visa minimizar exacerbações da impulsividade egocêntrica do eu, quando colocada numa perspectiva da obra de arte atinge um patamar de princípio universal.
Esta inclui a obra de arte porque foi a excessiva centralização no eu que reduziu a relação da ética com a estética, a amoralidade pública, o escrachado não é uma nova estética, nem mesmo a negatividade as vezes necessária a arte, é a sua ausência por falta de relação com a ética e o processo formativo.
Gadamer recupera a phronesis a partir da proposta de Aristóteles na Ética a Nicômaco, onde busca estabelecer a articulação entre o universal e o particular, mais ainda entre o indivíduo e a sociedade, dentro de formas históricas da vida, mas com um ethos comum.
Pode-se assim estabelecer uma relação com a educação, num momento que se fala em escola sem partido é preciso pensar que há um outro, sem desejar a neutralidade porque ela será uma ilusão, exploramos num post a seguir.
Falta estabelecer a relação da phonesis com a techné e a episteme, que é o saber teórico e o saber fazer da techné, que está ligada etimologicamente a arte (τέχνη) e ao artesanato.
A harmonia entre as três formas de sabedoria resulta numa sabedoria prática, a práxis.
O dasein e a razão
Antes de penetrar no conceito de ser-no-mundo, tradução provisória de dasein, é preciso compreender em que ponto a ontologia se distancia do racionalismo cartesiano, em que ponto se aproxima, para quem deseja um mergulho mais profundo “Meditações Cartesianas” é muito recomendável (post), já quem Husserl foi professor de Heidegger e este guardou alguns conceitos.
As duas categorias cartesianas bem conhecidas para “coisa” são a res extensa e a res cogitans, sobre as quais escreveu Heidegger: “Sem dúvida esse ente [com relação a Deus] necessita de produção e conservação, mas dentro dos entes criados [ou só considerando estes] … existe algo que não necessita de outro ente, no tocante a produção e conservação das criaturas, por exemplo do homem. Tais substâncias são duas: o res cogitans e o res extensa” (Heidegger, 2015, p. 144).
Assim o dualismo cartesiano não é só entre duas substâncias finitas, que são naturalmente distintas, mas entre as duas finitas e o infinito, e Heidegger esclarece logo a seguir retomando a ontologia medieval, as vezes chamada de fundamental ou ontoteologia por outros autores, a questão de como o ser é designado como “ente cada vez referido” (Heidegger, 2015,p. 145), ou seja, “nas afirmações Deus é ou o mundo é, predicamos o ser … a palavra ´é´ não pode indicar o ente cada vez referido no mesmo sentido (αυυωυúς, unívoce), já que entre ambos existe uma diferença infinita do ser, se a significação do ´é´ fosse unívoca, então o criado teria o mesmo sentido do não criado ou o não criado seria rebaixado a um criado” (idem).
Resolve a querela do universal, entre realistas e nominalistas, “Ser não desempenha a função de um simples nome [pensavam os nominalistas] pois em ambos casos compreende-se ´ser´ “ (ibidem), explicita e supera a escolástica que “apreende o sentido positivo de significação do ´ser´ como significação ”analógica” para distingui-la da significação unívoca ou meramente sinônima” (ibidem).
As aspas são do próprio Heidegger para indicar a analogia do ser enquanto substância, e estendendo para o contemporaneidade nem o analógico nem digital são ser, pertencem só ao ôntico, ou em nossa denominação aos artefactos.
Finalmente rebaixa a ontologia cartesiana que “fica muito aquém da escolástica” que deixou sem discussão o sentido do ser e o caráter da ´universalidade´ desse significado contido na ideia da substancialidade” (ibidem), embora reconheça que mesmo a ontologia medieval questionou muito pouco este sentido.
Embora vá recuperar em alguns aspectos Descartes, constata para o seu tempo e vale ainda hoje, sequer nos libertamos da crise do pensamento europeu do século passado, “a ontologia cartesiana do mundo ainda é hoje vigente em seus princípios fundamentais”, a materialidade.
Heidegger, M. Ser e tempo, 10a. edição, Trad. Revisada de Marcia Sá Cavalcante, Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2015.
Desaceleração e a técnica
Depois de criticar de modo convincente Baudrillard e de afirmar de modo categórico que “a mera velocidade não supõe grande influência na produção do sentido histórico” (p. 36).
O que conta sobretudo é a instabilidade da trajetória, o desaparecimento da própria gravitação, as irritações (irritationen) ou oscilações temporais.” (pag. 36), Byung-Chul Han cede a tentação de Baudrillard de que é a moderna tecnologia responsável por isto, ora, mas qual a origem disto?
O livro Cultura e Simulacro de Baudrillard é da década de 70, a internet era nascente com usuários acadêmicos, o Mal-estar na civilização de Freud é da década de 30, isto sem falar de Nietzsche que faleceu no início do século passado, mais precisamente em 25 de agosto de 1900.
Portanto é preciso retornar aos primeiros argumentos de Han que são mais sólidos, “a aceleração não é a única explicação plausível do desaparecimento do sentido” (pag. 35), e a “expressão ´átomos de sentido´ também conduz a um erro, porque o sentido não é nuclear” (idem), dá um pequeno passo na direção correta: “o repouso não é causado pela aceleração e pelo movimento de trocas, mas pelo já não-se-saber-para-onde” (pag. 38), uma falta de metas.
Vai criticar também Bauman, para quem o homem moderno é um peregrino no deserto, que pratica uma “vida a caminho” (pag. 43), e num relance retorna ao sentido afirmando “a secularização não comporta uma desnarrativização (Demarratovosoerimg)”, mas volta a trás e diz que a modernidade continua a ser uma narrativa, porém a cultura impressa e reprodução não tem o caráter mítico e escatológico da cultura oral, é outra narrativa, a romântica, já esclareceu Gadamer.
A crítica a técnica e ao progresso técnico é a tentação comum, apontá-la como religiosa é no mínimo contraditório já que ela é herdeira legítima das luzes e da razão, não é história como história da salvação, mas como determinismo histórico romântico a moda de Dilthey.
A imersão na cultura digital, ou na cibercultura, não desterritorializou (o rádio, a TV e o cinema o fizeram antes) nem secularizou, quem o fez foram as luzes e o capital financeiro que não reconhece pátria nem lugar, a narrativa que omite o processo de produção de vídeos, imagens, fotografias e também de código digital em todo planeta não é só uma inversão técnica ou tecnológica, é uma inversão cultural, graças a elas culturas e povos renasceram.
Não é preciso andar pelo mundo, porque o mundo anda por você, e isto é o que estimula jovens a conhecer outros países e lugares, o enraizamento pátrio que é anti-evolutivo e conservador, o homem andou pelo mundo antes de fixar fronteiras, quem fixou foram os impérios, que agora erguem muros e discursos pátrios radicais, o mundo já é uma aldeia global, o que há agora é um sentimento saudosista de um mundo que não volta mais.