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Totalitarismo e vidas inocentes
Na guerra a primeira vítima é a verdade, frase atribuída a Ésquilo da antiga Grécia, porém o trágico é a proporção de vítimas inocentes, almas puras e elevadas que a guerra consome por causa do pavor que líderes totalitários tem da liberdade, de pessoas livres e de humanismo verdadeiro.
São inúmeros os casos, desde hospitais e escolas que são bombardeados até casos de tortura e requintes de crueldade com pessoas que trariam grandes frutos para uma humanidade elevada e é exatamente por isso que mentes doentias as combatem.
Descobri entre estes vários nomes, através de uma aluna, uma judia de nome Etty (Esther) Hillesum, uma holandesa filha de pai holandês Louis Hillesum e mãe russa Rebecca Bernstein (Riva), professor de línguas antigas, de quem provavelmente nasceu o interesse por línguas, mas vai estudar línguas eslavas talvez inspirada na mãe, e depois tira mestrado em Direito.
Seus diários e cartas são escritos durante a ocupação Nazista em Amsterdá, entre seus primeiros livros que tomei contato estão “Une vie bouleversée” (Uma vida virada no avesso) e 15 dias de orações com Etty Hillesum (esta publicação em português pelas Paulinas).
Uma de suas frases “dentro de mim há um poço profundo”, onde dentro dele existe areia e pedras que impedem a chegar a algo mais límpido revela um caminho místico e a busca que há dentro dela de atingir uma interioridade mais profunda, é um refúgio, diria uma resistência espiritual ao nazismo e ao clima que era gerado a sua volta.
A relação com psicoquirologista Julius Spier (que tinha influência da Karl Yung), inicialmente para tratamento e depois há um envolvimento pessoal, desperta sua intelectualidade já que em março de 1941 começa a escrever seu primeiro de 8 diários.
Em junho e julho de 1942 aprofunda seu diálogo místico, escrevendo: “Deus se tornou um interlocutor …” e é neste contexto que se pode falar de seus escritos sobre a oração.
Escrito em “15 dias de oração com Etty Hillesum”: “Ele me tomava pela mão, por assim me dizer, e me falava: “Pronto é assim que se deve viver” sobre o primeiro dia, dirá sobre o segundo: “uma hora de paz, é preciso aprender … vou voltar-me para meu interior .. uma meia hora de ginástica e uma meia oração de meditação”, terceiro dia: “Hineinhorchen: escutar interiormente”, escutar a si mesma, aos outros e a Deus.
Assim vou seguinte o itinerário de Etty: quarto dia: “perdoar meus pais e seus limites”, quinto-dia: “entregue a si mesma e á própria guarda”, enfim de uma alma pura e inocente que indica não apenas um caminho de orações repetitivas e sem sentido, mas um caminho interior.
Uma das milhões de alma inocentes morreram em campos de concentração, ela encontra ainda jovem com 29 anos sua morte no campo de Auschwitz, seus escritos são puros e profundos, lembra a pureza das crianças e das pessoas que vivem uma humanidade humana.
FERRIÈRE, P., MEEÛS-MICHIELS, I. 15 dias de oração com Etty Hillesum. São Paulo: Paulinas, 2016.
O totalitarismo e a ontologia política
As guerras giram sempre em torno de governos totalitários, porque estes tem uma visão de mundo unilateral, que despreza culturas e visões de outros povos e assim querem submeter também seus povos, que em geral aceitam culturas diferentes, a uma univisão de mundo.
Hannah Arendt encarou estes regimes com sua escrita de 1951: “As origens do totalitarismo”, estava convencida que após o final da segunda guerra o problema não acabava ali, ali fala do inferno, do pesadelo, da Metamorfose de Kafka, da cebola e até da feiura de um omelete entre tantas outras coisas, quando chegavam às suas mãos as histórias de Auschwitz.
Ao tentar descrever a experiência totalitária, Arendt se deparava com o dilema que era como essa experiência não podia ser explicada, não pela filosofia política ou pelos conceitos tradicionais, não só pela culminação de um processo do desenvolvimento de algo a partir de um passado, mas naquilo que Heidegger chamou de “esquecimento do ser”.
Lembro uma frase impactante de Lygia Fagundes Telles, falecida em 16 de abril de 2022 quando completaria 99 anos, escreveu: “Não há coerência ao mistério nem peça lógica ao absurdo”, os ditadores e suas narrativas só tem lógica numa propaganda sistemática, e numa claque que de outros fanáticos que o apoiam e com ele se identificam, enfim uma narrativa parcial da realidade.
Esta forma de narrativa que Arendt escreveu encontrou oposição em um contemporâneo como Voegelin sobre o qual ela respondia à sua análise: “eu não escrevi uma história do totalitarismo, mas uma análise em termos históricos dos elementos que se cristalizaram no totalitarismo” (ARENDT, 2007, p. 403).
Escreveu também na “Crise da República”, que a primeira diferença fundamental entre o totalitarismo e as demais categorias presentes na história está no fato de que o terror totalitário “se volta não só contra os seus inimigos, mas também contra os seus amigos e defensores”; uma segunda diferença seria sua radicalidade, que o torna capaz de eliminar não somente a liberdade de ação dos indivíduos como faziam as tiranias através do isolamento político., eliminando não só opositores como também aliados pouco confiáveis, há um claro paralelo na guerra atual.
Em sua nota de número 81, Arendt escreveu: “O total de russos mortos durante os quatro anos de guerra é calculado entre 12 e 21 milhões. Num só ano, Stálin exterminou cerca de 8 milhões de pessoas somente na Ucrânia (ver Communism in action, U. S. Government, Washington, 1946, House Document n o 754, pp. 140-1”, novamente a semelhança com a Guerra atual não é por acaso, e depois de Butcha depois Mariupol teve drama semelhante ao de Gaza (foto), mas só há narrativas ideológicas parciais.
O último tópico do livro de Arendt é: “Ideologia e terror: uma nova forma de governo”, quem tem interesse em evitar totalitarismo é só ler, é provável que toemos consciência deste terror e paremos de alimentá-lo em nosso dia-a-dia e tracemos uma política de respeito às culturas, ao ser, enfim uma ontologia política.
ARENDT, H. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Acreditar na proteção divina e fazer o bem
Apesar do clima de guerra devemos desejar a paz, alertamos no post de ontem que uma escalada era eminente e aconteceu, o clima e discursos de ódio de ambos lados na atual polarização mundial avança e só estarão em paz aqueles que continuam a fazer o bem.
Parece heroico, inocente ou mesmo pueril continuar a desejar e fazer o bem, mas este é o único caminho para não cair na banalização do mal, na polarização e no discurso desumano.
Ontem na noite de segunda no Brasil e madrugada de terça em Israel, mais de 180 mísseis do Irã foram lançados sobre Israel, eram mísseis hipersónicos que viajaram em 12 minutos até atingirem o solo de judaico, o número de vitimas e alvos atingidos não foram divulgados.
O envolvimento do mundo árabe, a Turquia, Líbano e Síria já declararam apoio ao ataque, que teve comemorações palestinas em Gaza, leva o confronto a uma escala mundial, nos Estados Unidos, Biden pediu às forças na área a defesa de Israel, que promete retaliação ao Irã.
A possibilidade de fechamento do golfo de Omã afetará o preço do petróleo mundialmente e com isto o encarecimento de produtos que dependem do transporte e da logística mundial.
Somente aderindo ao bem, a paz e sua vida no dia-a-dia é que nós podemos nos manter num clima emocionalmente equilibrado e sereno, mesmo diante de circunstâncias adversas, onde todo cedem ao pânico, ao ódio e a banalização do mal.
Para a filósofa Hannah Arendt a banalidade do mal é o fenômeno que recusamos no nosso caráter à reflexão e a tendência de não assumir as consequências de iniciativas de atos que não assumem as consequências do mal, e com isto impedem a adesão ao bem.
Somente temos uma proteção em nosso espírito e alma quando resistimos a tentação ao mal, aquilo que também o filósofo e educador Edgar Morin chama de “resistência do espírito” em meio a polarização, ao ódio e a guerra, com o bem atraímos a paz a nossa volta e a proteção divina.
A guerra latente e o perigo iminente
Não praticamente, em nenhum setor que tenha uma voz suficientemente forte, a ideia de uma paz que não seja a rendição de um dos lados, nem na guerra de Israel contra os grupos extremistas Hezbollah e Hamas, nem na guerra Ucrânia x Rússia, o que existe é retórica de paz.
O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, disse na Onu no sábado passado (28/09) que é um perigo tentar “lutar pela vitória contra uma potência nuclear”, ou seja, que se for preciso usarão armas nucleares, enquanto o primeiro-ministro de Israel disse que “o trabalho ainda não terminou” e “dias desafiadores estão a frente”, são discursos de ódio.
Em Israel o exercito enviou duas brigas para o Norte de Israel e está acionando três batalhões de reserva que parece indicar uma incursão terrestre no Líbano (foto), enquanto a Rússia continua convocando mais soldados, incluindo pessoas de outras países que serão pagas, para ampliar ainda mais o contingente militar do país, tudo indica que não é apenas para a Ucrânia.
A morte do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, em um combate no sul do Líbano, enquanto Netanyahu e Joe Biden dizem que era responsável pelo assassinato de um grande número de israelense e americanos, mas no Irã, no Iêmen e na Palestina foi vista como um “mártir”.
Também a proposta do Brasil e China que inicialmente era apoiada pela Rússia, foi feita uma ressalva pelas autoridades russas que uma retirada russa dos territórios ocupados não leva a paz pelo fato que cidadãos russos que vivem naquela região se sentem ameaçados.
Enfim tanto na retórica quanto nas ações o perigo eminente de uma escalada ainda maior das guerras parece não ceder em nenhum ponto essencial, e isto enfraquece a ONU e as nações que desejam um maior equilíbrio nas relações internacionais entre regimes e culturas que são diferentes, porém que sempre é possível a convivência do ponto de vista do cidadão comum.
Os interesses econômicos por trás destas guerras, e de seus aliados de lado a lado é flagrante, ainda que oculto, então também neste campo é preciso repensar as relações econômicas, sem que isto impliquem na rendição de uma das partes.
A continuidade do discurso e a escalada das guerras nestes pontos mais sensíveis é visível e não abordar estes aspectos oculta verdadeiras saídas possíveis e não favorece a paz.
Perigo real, semana decisiva para a paz
Diversas são as articulações para a paz, porém as guerras vão revelando seus aspectos mais sombrios, a morte de Ibrahim Akil, um dos chefes das operações militares do Hezbollah, fez a organização declarar “guerra indefinida” contra Israel.
Neste domingo trocaram fogo pesado, com aviões de guerra israelenses realizando o mais intenso bombardeio em quase um ano de conflito no sul do Líbano, o Hezbollah por seu lado disparou foguetes em direção ao norte de Israel.
As negociações de paz assim ficam paralisadas, ainda que o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin tenha trocado seis telefonemas na semana com o colega israelense, ele mostra uma preocupação séria com a escalada do conflito, pedindo solução diplomática.
Na Ucrânia, as articulações para a paz mostram também neste aspecto uma polarização, Brasil e China tentam dialogar com Putin, enquanto países da Europa e os Estados Unidos tentam o diálogo mais favorável as pretensões de paz da Ucrânia.
O que mais assusta são as ameaças nucleares, a Rússia sempre lembra o assunto e agora a Ucrânia diz que os russos também planejam ataques a usinas nucleares cujos efeitos seriam aterrorizantes, basta lembrar Chernobyl, claro neste caso foi um acidente, mas os efeitos deveriam estes dois países que vieram aquele momento, jamais desejarem repeti-lo.
Em 26 de abril de 1986, o reator número 4 da central nuclear de Chernobyl, então republica soviética ligada a Moscou, sofreu um colapso catastrófico que fez o governo evacuar 30 km em torno da usina, cuja área é inabitável até hoje, a temperatura chegou a 2.600 o. C, 4 vezes maior que a lava de um vulcão.
As fontes indicam de 2 a 50 pessoas morreram na explosão, dezenas de outras pessoas contraíram doenças graves provocadas pela radiação, algumas das quais morreram mais tarde. Entre 50 e 185 milhões de curies (unidade de atividade de radiação) de radionuclídeos (formas radioativas de elementos químicos) escaparam para a atmosfera – várias vezes mais radioatividade do que a criada pelas bombas atómicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japão (na foto monumento aos trabalhadores que combateram o incêndio de Chernobyl).
Os reatores modernos incorporam mais dispositivos de segurança para evitar um desastre como Chernobyl, porém no caso de um “acidente” de guerra o controle pode ser difícil.
Espera-se que seja possível um retrocesso nas guerras, o fato que existem países empenhados, ainda que polarizados, é um alento e também aqueles que veem a crise civilizatória que iriam desencadear pode servir para que mentes inflamadas pelo ódio possam arrefecer sua ira.
Por uma ontologia política
Diversos autores falam do que é poder, desde os clássicos contratualistas (Hobbes, Locke e Rousseau), passando pelas leituras modernas de Marx, Weber, Tocqueville, Bobbio e Norbert Elias, até Byung-Chul Han (psicopolítica) e Foucault (biopolítica), mas Hannah Arendt foi além ao vislumbrar uma ontologia política e escapa completamente do pensamento hegeliano.
Em seu livro do final dos anos 1960 (e portanto, a maturidade de Arendt), ela critica a “nova esquerda” que pensava em lutar contra um mundo ameaçado pela destruição nuclear e dominado pelas grandes administrações estatais e elas seriam responsáveis pela violência e em última análise a essência de todo poder, escreve sobre as origens deste equívoco:
“Se nos voltarmos para as discussões do fenômeno do poder, rapidamente percebemos existir um consenso entre os teóricos da política, da esquerda à direita, no sentido de que a violência é tão-somente a mais flagrante manifestação do poder. ‘Toda política é uma luta pelo poder; a forma básica do poder é a violência’, disse C. Wright Mills, fazendo eco, por assim dizer, à definição de Max Weber, do Estado como o ‘domínio do homem pelo homem baseado nos meios da violência legítima, quer dizer, supostamente legítima’ “. (Arendt, 2001, p. 31)
Para a autora, seguindo a tradição greco-romana, este conceito fundamenta o poder no consentimento e não na violência, assim numa relação de mando e obediência.
A autora constata que este conceito é “um triste reflexo do atual estado da ciência política” (p. 36) e uma identificação natural da tradicional entre visão de poder e violência, já que “poder, vigor, força, autoridade e violência seriam simples palavras para indicar os meios em função dos quais o homem domina o homem; são tomados por sinônimo porque têm a mesma função” (idem) e não raro se observa esta “virilidade” desde a Grécia até hoje.
Para a autora “o poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido. Quando dizemos que alguém está ‘no poder’, na realidade nos referimos ao fato de que ele foi empossado por um certo número de pessoas para agir em seu nome” (p.36).
Para a autora é preciso rever estes conceitos: poder, vigor, força, autoridade e violência, uma vez que “violência não identificaria qualquer ato coativo, mas apenas aquele que opera, no caso das relações sociais, sobre o corpo físico do oponente, matando-o, violando-o, enfim, parece descrever apenas o uso efetivo dos implementos” (pg. 37) e assim a guerra.
Arendt fala de “isonomia” onde Chul Han fala de “simetria”, conceitos parecidos, e assim o poder é de fato aquele que “emerge onde quer que as pessoas se unam e ajam em concerto, mas sua legitimidade deriva mais do estar junto inicial do que de qualquer ação que então possa seguir-se” (p. 41, com destaque feito no meu texto).
Assim é preciso uma ação de “unidade”, de “serviço” e na melhor das hipóteses como aquele que serve à comunidade e não o que e serve dela, e para isto precisará sempre da violência.
ARENDT, H. Poder e violência Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001.
Tensão máxima entre OTAN e Rússia
Acusações de agressões diretas entre o Ocidente e a Rússia chegaram a um limite perigoso.
As tensões em torno da guerra no leste europeu chegaram a um limite máximo, o primeiro-ministro inglês Keir Starmer e o presidente dos EUA Joe Biden estariam conversando sobre a permissão de Kiev utilizar misseis de longo alcance ATACMS americanos e Storm Shadow inglês em alvo interno da Rússia, sendo o governo russo isto já estaria acordado.
Por outro lado China e Rússia realizaram exercícios militares conjuntos que foram chamados de “Joint SEa-2024” que o Japão e países do oriente veem com desconfiança, além de Taiwan e as ilhas que são conflitos entre Japão e Rússia (ilhas Sacalina e Curilas) e China e Filipinas (Ilhas Spratlye e o Atol de Scarborough), porém o principal conflito é de mercados com o Ocidente.
A Rússia tem usado drones do Irã no confronto com a Ucrânia, e isto fortalece o elo com o mundo muçulmano, enquanto o apoio a Israel de França e EUA fortalecem a aliança da OTAN.
O Brasil e a China haviam proposto uma proposta de paz que seria “congelar as fronteiras atuais” num cessar fogo, porém isto se referia a maio, agora o avanço dos ucranianos em território russo muda este cenário, e não fica claro qual é a proposta de fato, porém o presidente da Ucrânia Zelensky já havia rechaçado a proposta, se dizendo não consultado.
O cenário é grave porque o simples ataque a território russo de mísseis de longo alcance será considerado uma agressão da OTAN, uma vez que países do ocidente ofereceram armas e deram um aval, por outro lado as forças da OTAN preparam uma possível retaliação.
Na frente do Oriente Médio, conforme explicando quase com os mesmos aliados e inimigos, também o clima é de hostilidades e um acordo parece estar cada vez mais longe.
Um alto comandante do Hamas, Oussama Hamdane, em entrevista à AFP acusando os Estados Unidos de não exercer pressão suficiente para Israel buscar um acordo de cessar-fogo, e afirma que ao contrário “está a tentar justificar a evasão do lado israelita a qualquer compromisso”, e a força política americana seria capaz de levar o Oriente Médio a uma esperança de paz num conflito que ultrapassou limites humanitários.
Restam esperanças, vozes que apelam para a serenidade e o bom senso, organismos e entidades diversas que procuram honestamente buscar uma paz razoável e duradoura.
Assimetrias, poder e sociabilidade
O ensaísta coreano-alemão Byung-Chul Han, em seu livro No enxame, ressalta que somente o respeito é simétrico, as diversas formas de comunicação e poder são assimétricas, porém isto levado ao limite causam ódios, desprezos e guerras.
Jacques Rancière que escreveu “Ódio a democracia”, ressalta que este tema tomou contornos dramáticos atualmente, mas já existem na literatura: “ O autor ressalta que a rejeição à democracia não é novidade, no entanto apresenta novos contornos:
Seus porta-vozes habitam todos os países que se declaram não apenas Estados democráticos, mas democracia tout court. Nenhum reivindica uma democracia mais real. Ao contrário, todos dizem que ela já é real demais. Nenhum se queixa das instituições que dizem encarnar o poder do povo nem propõe medidas para restringir esse poder.
Relendo a literatura lembra autores que a defendiam: “A mecânica das instituições que encantou os contemporâneos de Montesquieu, Madison, Tocqueville não lhes interessa. É do povo e de seus costumes que eles se queixam, não das instituições do seu poder. Para eles, a democracia não é uma forma de governo corrompido, mas uma crise da civilização que afeta a sociedade e o Estado através dela”, e assim não falamos de “crise civilizatória” ao acaso.
Assim a discussão de mídias e meios influenciando a política existe a séculos, também o fato de difamar adversários através de situações nem sempre verdadeiras ou mesmo descontextualizadas é prática comum para tentar impor uma opinião de modo assimétrico.
O fato atual é que temos um meio mais potente que pode potencializar estas falsidades e as novas mídias não são apenas algoritmos de controle ou mecanismos eficientes de Inteligência Artificial agora novo enfoque tecnológico, o fato que buscar um equilíbrio, uma simetria desde a relação pessoal até o poder.
Não se pode aplicar as leis unilateralmente, ou mesmo, fazê-las ao sabor de situações políticas, elas devem valer para todos e se mudarem devem seguir um rito e as instituições apropriadas para isto, atropelar os poderes, antecipar processos ou fazer ritos sumários são abusos do poder.
Assim começamos com o respeito a opinião, ao diálogo, ao diferente e chegamos ao exercício do poder com moderação e o máximo de equidade, mesmo que forças contrárias enfrentem o discurso contraditório, é preciso fazê-lo no âmbito da legalidade e da legitimidade.
No nível pessoal superar empasses, rusgas e diferenças pessoais com parcimônia e respeito ajudam o equilíbrio das relações sociais, ainda que muitas vezes para um lado beire a ofensa.
Não é uma atitude heroica, é uma defesa do convívio, da tolerância e da paz social.
RANCIÈRE, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.
A alegria em meio à crise
É possível manter a alegria em meio a crise, dificuldades econômicas e guerras que nos ameaçam ? Não se trata de ingenuidade ou mera alienação, outros preferem pensar em manter seus bens essenciais: alimentação, saúde e moradia segura.
Byung-Chul teoriza que apesar da “diferença” entre Derridá e Heidegger (vejam os posts sobre o livro do autor sobre O coração de Heidegger) há uma afinidade estrutural na visão de luto dos dois, está caracteriza pela renúncia da autonomia do sujeito em Derrida: “Por mais narcisista que nossa especulação subjetiva siga sendo, ela não pode mais se fechar a esse olhar, diante do qual nós mesmos nos mostramos no momento em que o convertemos em nosso luto ou podemos desistir dele [faire de lui notre dueil], fazendo nosso luto, fazendo de nós mesmos o luto por nós mesmos, quero dizer, luto pela perda de nossa autonomia, por tudo que nos fez a nós mesmos a medida de nós mesmos” (Han, p. 430 citando o texto de Derridá “Krafter der Trauer”, fortalecedor da dor), isto é, ambos tem em comum uma visão de renúncia a autonomia do sujeito, o “eu” do idealismo.
Aqui o importante é não deixar o luto trabalhar (lembremos o conceito já visto nos posts do “luto do trabalho”) ele é substituído em Derridá por um jogo do luto: “contudo quanto mais alegre a alegria tanto mais pura a tristeza que nela dorme. Quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria …” (Han, pg. 430-431), mas o luto de Heidegger, explica Han, não mata a morte, tentar matá-la resulta em algo ainda pior: “o querer ressuscitar, ultrapassar violenta e ativamente o limite da morte só os arrastaria (os deuses) para uma proximidade falsa e não divina e traria a morte em vez nossa vida” (Han, pg. 431-432 citando Heidegger).
Heidegger explica que é “não é um sintoma que posa ser eliminado pela contabilidade psicoeconômica. Ele não tem um traço deficitário que implique o trabalho (de luto).”.
Este “retirado” ou “poupado” para o qual bate o coração “santo e enlutado” de Heidegger não é submetido à economia, este “poupado” não se pode gastar nem capitalizar, é portanto aquele que está e caracteriza a renúncia, Han não exemplifica, mas podemos pensar em ajuda humanitária em desastres e guerras, já que vai caracterizar a identidade de renúncia e agradecimento como concebível fora da economia, usando termos heideggerianos “suportar pesarosamente a necessidade de renunciar” e promete a “impensável doação”.
Diz uma frase profunda e sábia de Heidegger, a renúncia é a “forma mais elevada de posse”, parece contrário, mas só temos de fato aquilo que podemos dar pois do contrário é mercadoria de troca, e mais ainda renúncia se torna agradecimento e “dever de agradecimento”, esta dor aumenta aprofundando se torna alegria: “quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria que nela repousa”. (pg. 433), mas não se torna nem sublimação, que nos obriga “trabalhar”, pois é a “inibição de todo rendimento” e a “consciência do vazio e da pobreza do mundo”.
Elogio da miséria alguém poderia pensar, não é um elogio a alegria moderada e contínua, diferente da euforia e êxtase que é seguida de depressão, “a falta do divino acarreta o luto, remonta a um obstinado esquecimento do ser, no qual Heidegger inscreve o divino” (Han, p. 433-434), mas certamente não é ainda o divino bíblico, mas cerca-o.
A recompensa e a alegria do Divino inscrito no ser, é aquela que renuncia e doa, mas sabe que haverá recompensa de receber cem vezes mais não em bens, mas em alegria.
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
O que é a crise do idealismo
O cenário do envolvimento mundial nas guerras é um cenário difícil, é preciso entender o que está por trás, antes tempos um confronto cotidiano entre mentes, almas e interesses econômicos que se digladiam diariamente.
Tratam no fundo de uma defesa da “sociedade livre” ou da defesa de uma “sociedade liberta do capitalismo” sem que a origem destes pensamentos e modelos sejam analisados a fundo.
Refletem a crise do pensamento contemporâneo que não é apenas filosófica, religiosa ou política, ela e uma perda de fundamentos do que é o humano, a natureza e a própria ciência.
A visão de Sloterdijk expressa em sua esferologia no volume I Bolhas, ele mostra que o tanto o fenómeno onto como antropológico são mais essenciais que a a relação entre sujeito e objeto, pois precedem a ela a experiência espacial do Ser-em (ainda que não seja exatamente o que Heideger chamou de In-Sein), esta é a principal crítica ao idealismo contemporâneo.
No campo religioso (e pode-se estender ao pensamento), o ensaísta Byung-Chul Han, reflete que o “pathos da ação, bloqueia o acesso à religião. A ação não faz parte da experiência religiosa. Em Sobre a religião Scheleiermacher eleva a intuição à essência da religião e a contrapõe a ação” (Han, Vita Contemplativa, 2023, p. 154) vale lembrar que Scheleiermacher reintroduziu a hermenêutica como método e influenciou a fenomenologia moderna.
Disse textualmente (citado por Han) Scheleiermacher afirma em Sobre a religião: “sua essência não é nem pensar nem agir, mas a intuição e sentimento. Ela quer intuir o universo, […] ela quer escutá-lo devotamente, ela quer apreendê-lo em sua passividade infantil e ser plenificada por suas influências imediatas” (apud Han, p. 154), e afirma também “toda atividade em uma intuição admirada do infinito” e afirma Han: “quem age tem um objetivo diante dos olhos e perde o todo de vista. E o pensar dirige sua atenção a apenas um objeto. Somente a intuição e o sentimento têm acesso ao universo, a saber, o ente em sua totalidade” (Han, 154, idem).
Esse desprezo pelo ente em sua totalidade, tomando apenas seus aspectos sociais particulares como os econômicos, os étnicos ou mesmo os religiosos é aquilo que Heidegger chamou de esquecimento do Ser, ainda que os gregos tenham trabalhado aspectos ontológicos.
Porém há duas convicções e diferentes visões do idealismo, ou idealismo de estado em duas propostas, o capitalista e o socialismo, não esquecendo que Marx é também hegeliano, ainda que tenha se nomeado seu grupo como “novos hegelianos”.
E a crise da democracia é uma crise de estado, modelo que foi corrompido por megalopatas e ditadores que pouco ou nada sabem dos interesses e de como vive a população simples.
A guerra atual é a crise deste modelo, ambos dispostos a provar sua superioridade através da imposição bélica, e bem disse o escritor Eduardo Galeano: “nenhuma guerra tem a honestidade de confessar, eu mato para roubar” e mais evidente ainda matam civis inocentes.