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Tempo de pausa: será que conseguimos
Ainda há um resto de novembro e dezembro já aparece no horizonte, em todo mundo é um tempo esperado para algo que deveríamos fazer sempre: pausa, espera e encontro com os amigos e familiares, a questão é: será que conseguimos?
Olhando o mundo os sinais sombrios continuam, maiores que os líquidos, pois se algo fosse realmente mudado de estado, do sólido para o líquido, até seria desejável porque algo estaria se movendo, mas parece a mesmice, tudo vai ficando com cara parecida.
Os protestos contra Macron e seus impostos, não é tão diferente de Portugal ou do Brasil, o Estado é enorme e pesa para a sociedade, quem pagará as contas, e os aposentados serão os que pagarão a conta ? incertezas e uma única coisa realmente clara: crise de época.
Há sinais de algum reflorescimento, palavra usada pela filósofa Martha Nussbaum, diria que sim, mas justamente onde as críticas mais pesadas caem: o mundo globalizado, a internet e o Estado “sólido” que vai tomando um feito mais sombrio, perigos à direita.
Participei de um evento de 100 anos do Padre Manuel Antunes, esse homem transdisciplinar, foi o tema de uma palestra escrita com um amigo, em sua obra Repensar Portugal, dizia que era preciso buscar em política, as “zonas temperadas” onde a natureza humana se sente mais confortável, porém a amostra de 2018 é de regiões mais radicalizadas, no sentido mal do termo.
É preciso pausa, ainda que forçada e no desconforto, olhar o futuro de modo que seja possível ter esperança, a paz e uma maior aproximação dos povos, o radicalismo nacional é perverso, a Europa costura um acordo possível para a saída da Inglaterra do bloco, o chamado Brexit.
Os EUA terminam o final do ano com o sonhado muro de Trump, e mexicanos pressionando do outro lado do muro, o que prova que não foi uma solução, mas o anúncio de uma crise.
Novos governos à direita no Brasil e na Colômbia, a esquerda no México vence depois de muitos anos de um partido monopolizar o poder, enquanto Nicarágua e Venezuela desfilam catastróficos governos de esquerda, Bolivia, Equador e Uruguai ficam em zonas temperadas.
Pensar um mundo mais integrado, a questão climática e a distribuição de renda se tornou mais difícil, o que se pode esperar é uma vigorosa reação do pensamento humano, o homem sempre foi capaz de enfrentar os desafios que apareceram, talvez o recuo seja uma retomada.
A verdade para além da prática e da ação
A verdade da assim chamada pós verdade, deve ser lida não a partir de fake news, de grupos editoriais que são quase sempre polarizados e cheios da “doxa” (opiniões particulares), mas vista de uma busca teleológica da verdade além das culturas, das intolerâncias e das ideologias.
A interpretação de como Gadamer vê esta questão relacionando violência/não violência vem das lições dadas por Heidegger nos anos 20 nas Interpretações fenomenológicas de Aristóteles (Heidegger, 1992), onde penetra na estrutura dialógica da Phronesis, que é a sabedoria direcionada a prática, que na filosofia grega distingue-se da episteme e techné.
Abro um parêntesis, porque isto é importante e qual a relação com uma política cada vez mais sujeita ao direcionamento “prático” da ação e de certo tipo de violência, porque nem mesmo a perspectiva de mudança consegue distanciar-se do que Jacques Ranciére chama de Engagment, diria sendo mais direto, que há falta de prudência e de tato com a prática.
Falta uma noção de mutualidade, uma noção fundamental no pensamento de Gadamer, ressalta o traço dialógico e prático presente no seu projeto da hermenêutica filosófica, que pode parecer um distanciamento da práxis no sentido puro de engagment, mas não o é, no dizer do próprio Gadamer é uma prática que se volta a ela própria sem perceber seus fundamentos e sem compreendê-la como fruto de reflexão e por isto de teoria.
Vamos a obra de arte ou ao campo da educação, ou ainda ao domínio das relações com as questões econômicas, o engagment pode roubar a essência do fazer artístico, pedagógico ou económico, e isto não quer dizer arte, educação ou economia desumanizada.
De acordo com as aulas de Heidegger e a filosofia Aristotélica da retórica, além da phronesis (prática), há outros dois recursos do “ethos”, os apelos a aretê (virtude) e a eunoia, ou seja, o bom pensamento ou a boa vontade que cultiva outros a recebe-la.
Assim a ação prática sem o necessário aceite dos demais, então entra o Outro, sem a virtude pode tornar-se hipocrisia ou inconfiável, sem a simpatia do ouvinte poderá se tornar um discurso repugnante e sem apelo, mesmo com palavras amáveis e doces.
HEIDEGGER, Martin.Phenomenological Interpretations with Respect to Aristotle: Indication of the Hermeneutical Situation. Trad. de Michael Baur. In Man and World, 25, p. 355-393, 1992.
Incompletude da pós-verdade
Antes de saber o que é pós-verdade, é preciso saber se há alguma definição de verdade, e isto nos leva aos primórdios da civilização ocidental, onde sabia-se que a verdade estava oculta, ou seja, seja para Aristóteles ou Platão, o ápice da cultura grega da antiguidade, a verdade estava oculta, ou seja, era necessária uma aletheia, termo grego para não oculto, manifesto, ou ainda mais a (negação) lethõ (esquecer), portanto só há verdade sobre um fato ocorrido.
Para a filosofia grega era claro que a “doxa” ou a opinião era contrária a episteme, ou ao conhecimento sistematizado e organizado, mas toda episteme implica num método, ou seja, vem daí epistemologia, ou a forma de organizar e comprovar determinado conhecimento.
O assunto surgiu no contexto da política atual pelo fato de alguns políticos, evito os nomes para evitar a polarização doxológica (de opiniões) passaram a querer negar fatos, ou seja, o que estava registrado e comprovado, e mesmo assim negavam, mas isto não é novo.
Já no seu ensaio de 1967 “Verdade e Política”, Hannah Arendt estabeleceu que a verdade que é baseada em fatos podia ser comprovada e verificada, mas os políticos insistiam em revidar e fazerem discursos baseados em opiniões, portanto não é novo, e a ver com a midia é outra coisa, o monopólio de opinião e que quase sempre não está fundamentada em dados.
O fato de existirem midias de redes sociais não é novo, grupos de opinião sempre existiram só que eram hegemônios donos de jornais e revistas, e agora não são, passa a ter um confronto aberto de opiniões, que transformam-se em torcidas organizadas, com apelos emocionais e doxológicos.
Não é por acaso que políticos populistas, que todos beiravam ou eram declaradamente fascistas eram grandes oradores e capazes de provocar fascínios nas massas, o fascínio hoje é outro, a capacidade de articular fatos e usar imagens ou dados que simulam falsas epistemes.
O Brasil foram os casos do mensalão, do petrolão e outros mal esclarecidos que geraram um corpo de meias-verdades que inflamaram e atingiram grande parte da opinião pública, outra foi a pouca consideração com valores culturais e morais da sociedade, quer seja os religiosos, quer seja a cultura negra, indígena e as regionalidades brasileiras, houve muitas não-verdades.
É tão difícil compreender as vezes, que mesmo tentando esclarecer os fatos ficamos confusos, por exemplo, em Portugal ocorre agora um famoso caso de Tancos, um quartel de armas onde um caminhão de armas foi roubados e precisei de um amigo português para entender, há meias-verdades de todo lado e muita gente alta parece envolvida, e as armas foram devolvidas com até uma caixa a mais, parece piada mas não é, um brinde dos ladrões.
A parte da verdade dos fatos, existem as correntes de “opiniões” onde o termo talvez seja inadequado, seria melhor correntes de culturas divergentes ou até opostos, sem o diálogo amplo necessário a tendência são as torcidas (claques em Portugal) crescerem e aumentar o número de conflitos, onde a intolerância impera o risco de graves conflitos é eminente.
Separa-se aqui então “opinião” de divergência epistemológica, cultural ou metodológica, pois diferentes caminhos para se obter a verdade devem ser pensados a parte das paixões, senão a possibilidade de caminhos concretos para superar crises ficam bloqueados e a razão desaparece.
É possível repensar o Brasil ?
O momento político diz que não, mas para quem pensa e consegue enxergar estas “zona temperadas”, como a chamava o Padre Antunes repensando Portugal, que é no plural porque há “além da democracia política, a democracia social”, e o pensador afirma que “foi um erro pensar as estruturas da liberdade geral, atomizada”, escreve Padre Antunes a repensar Portugal.
O Padre Antunes afirmou que “não viram os seus formuladores e apologistas – ou viram-no demasiado bem – que o “direito natural”, por eles preconizado, era, de facto, o direito do mais forte, que “a mão invisível” que dirigia os negócios ia só aumentar os lucros e proventos dos já possidentes, que a harmonia, que eles visionavam na
realização das “leis naturais” do mercado da oferta e da procura, constituiria na realidade uma terrível desarmonia se não fosse corrigida pelo imperativo do bem comum social, que a liberdade concedida a todos, num grande ímpeto de
generosidade, funcionava, na prática, apenas como o privilégio de alguns” (Antunes, 2011).
Por isso, esclarece o Padre Antunes: “durante mais de século e meio, para que ‘essa liberdade de coração se traduzisse na efectividade da aplicação, muitas lutas, ásperas lutas, foram travadas”, falando é claro das lutas em Portugal.
“Em nome da justiça e da equidade, em nome da história que caminhava – ou devia caminhar – no sentido da igualdade, em nome da fraternidade que a todos devia unir – sobretudo os mais fracos e oprimidos, aos deserdados e aos deixados por conta: homens, grupos, classes e nações”, dizia o padre Antunes sobre Portugal nos anos 70
“Até aos nossos dias. É hoje a conjugação da democracia política e da democracia social a grande preocupação do sector mais consciente e mais crítico, mais lúcido e mais generoso, de toda a Humanidade” (Antunes, 2011), mas no Brasil o projeto foi adiado, e o momento que ainda está em compasso de espera, e parece adiado.
Ao que se seguiu da Revolução dos Cravos em Portugal foi um momento de abertura e lucidez, mas com a entrada na Comunidade Europeia tudo isto veio a ser abalado, com denuncias de corrupção no governo José Sócrates (2005-2009), e com a crise financeira em 2010-2014, e uma intervenção da Comunidade Europeia que o povo português chamou de Troika, composta pela Comissão Europeia, BCE (Banco Central Europeu) e FMI, que administrou a crise financeira com muitos protestos dos portugueses.
O que o Brasil pode fazer com sua crise económica, política e moral? sem o diálogo e a abertura necessária, um intervencionismo financeiro será um desastre, no plano político se for repressor será odioso, e o social quase impensável.
É preciso atualizar discursos, interpretações e autores, quase todos datados de referencias do início do século, que ignoram as novas mídias e diversos pensadores novos e sair de uma discussão de torcidas de futebol.
Haverão canais de diálogo com a sociedade? a imprensa permanece livre? parece que Repensar o Brasil neste momento é quase impossível, mas não podemos antecipar os fatos mesmo que sejam facilmente presumíveis, é um erro político que pode piorar o frágil estágio da democracia brasileira, criaríamos uma pré-verdade ou um pré-factual.
Violência, poder e mudança
A ideia de ‘violência’ no discurso de Arendt tem o sentido de meio ou instrumento de coação que constituem recursos ao serviço exclusivo e soberano de uma dada autoridade (ou entidade), no exercício de uma dada forma de poder, em última e instância o Estado, ou a quem ele delega poder, mas pode ser visto e desenvolvido também para a vida cotidiana.
O que interessava para Hannah Arendt era entender os mecanismos de violência no sentido da instrumentalização da violência para servir determinados fins políticos, e nos casos paradigmáticos, sejam os revolucionários ou fascistas, como tendo sempre uma opção violenta.
O conceito de revolução, segundo Arendt, não está ligado apenas à mudança, mas, sobretudo, à fundação das liberdades, e neste sentido, podem fazer pouco sentido quando se tem armas nucleares, guerras cibernéticas ou mesmo propaganda direcionada de ódio como violência.
Claro Hannah Arendt não viveu para ver as modernas mídias, e não poderia supor um mundo onde o fato pudesse ser manipulado de forma a modificar a verdade, a chamada pós-verdade, porém este paradigma já existia e foi tratado no livro de Hans-Georg Gadamer Verdade e Método, ambos eram contemporâneos e sofreram fortes influências de Heidegger.
Não interessou a Arendt, qualquer estudo da natureza ou dos mecanismos que desenvolvem os instintos de agressão ou a investigação sobre a possibilidade de tais fenômenos terem uma origem intrínseca ao próprio sujeito (inata) ou a hipótese de serem mero resultado de um processo de aculturação (adquiridos) em regiões de guerra, de miséria ou de exclusão.
Ao falar da banalização do mal, a violência completamente instrumentalizada, pensava em uma situação de guerra, mas a volta de instrumentos sociais de coação e repressão pode e deve trazer o tema da violência de volta: a discriminação, o ódio e a violência instrumental.
Pior ainda se ela vem sob a chancela de parte da população, o que aconteceu em regimes fascistas: “a diminuição do poder, seja individual, coletivo ou institucional é sempre um fator que pode levar à violência … muito presente da presente glorificação da violência é causada pela severa frustração da faculdade de ação do mundo moderno” (ARENDT, 2009, p. 62).
Quando pensamos em violência, no sentido da banalização de Hannah Arendt, estamos dizendo quem alguém está “no poder” na realidade: “nos referimos ao fato que ele foi empossado por um certo número de pessoas para agir em nome […] sem um povo ou grupo não há poder” (Arendt, 2009, p. 60-61).
A violência cotidiana é um problema, mas instrumentalizada como poder é uma tragédia.
ARENDT, H. Sobre a violência. Trad. André de Macedo Duarte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
Luta pela paz, com mansidão e justiça
A história da humanidade é até os dias de hoje uma história de guerra do Mesmo contra o Outro, o livro A expulsão do outro de Byung-Chul Han não é senão a constatação desta realidade, pode-se revolucionar esta história ?
É nosso destino, uma fatalidade, penso que não, quando mais se falou de paz se fez a guerra, talvez quando mais se fale de guerra possa ser pensada a paz, a Terra como pátria humana.
Os desafios são imensos, e os medos crescem a cada novo governo autoritário, é bom que se diga também há ilhas de esquerda, e fortaleza de direita que não são senão pessoas “eleitas”.
Não penso em resistência nem em oposição, continuo a pensar em transformação, o grande retrocesso que acontece em toda humanidade, se fosse localizado seria fácil tem uma só leitura: não conseguimos ir a frente, os saudosistas dizem: “como era bom aquele tempo”, qual ?
Lutar pela paz deve ser também pela justiça e contra toda sorte de opressão, engrandecer a sabedoria simples e entender que é preciso profundidade para ser simples, uma “sofisticação” como disse Leonardo da Vinci, e estabelecer um espírito de mansidão onde seja possível pensar.
Sem deixar de perceber uma dose excessiva de autoritarismo é hora de perguntar, qual o lugar exato do estado na vida cotidiana? sua abrupta interferência até na vida pessoal não é senão uma forma de autoritarismo? temos câmaras e radares a cada quilômetro, não é exagero.
Armas para a paz, não faz o menor sentido, mais armas mais violência, nunca o contrário.
Lembram as bem aventuranças bíblicas Mt 5,5: “bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra”, claro o que vejo hoje é o poder na mão de raivosos e autoritários, mas não é o fim.
O verso longo seguinte é praticamente um alerta para a justiça Mt 5,6: “Bem-aventurados os que têm fome e se de justiça, porque serão saciados”, e, mais a frente Mt 5,9: “os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus”, será que o humanismo morreu ?
O fato que todos, ou pelo menos uma grande parte da humanidade, tem uma percepção que algo precisa ser feito com urgência para superar os “perigos contra a humanidade” nos desafia.
É urgente uma governança mundial, e não menos urgência programas de distribuição de renda.
O colapso ecológico, e nas grandes metrópoles também o urbano pedem medidas mundiais.
Lembro as duas bem-aventuranças como estímulo para aqueles que lutando pela humanidade sofrem perseguições, injustiças e calúnias.
Mt 5,11 “Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim”, isto é cristianismo, é preciso conjugar Amor com paz e justiça.
A cura do cego de nascença
Em seu Ensaio sobre a cegueira (Companhia das Letras, 2002), José Saramago dá uma lição muito simples sobre ontologia: “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”, o convívio social, a cultura e a política revela-nos aos poucos aos outros.
De certa forma todos vemos um pouco e todos temos “pontos cegos” e precisamos do Outro para ver melhor.
Entre todos os milagres bíblicos, certamente muitos consideram a ressurreição de Lázaro algo extraordinário, mas lembro muitos casos de pessoas que ficaram em coma até durante anos e voltaram a vida, considero o caso do cego de nascença a mais fantástica (João 9:6-7), porque?
Uma pessoa que nunca enxergou não tem a parte funcional cognitiva preparada para discernir os mundos, até os 2 anos são as sensações de distância e obstáculos que são estimuladas ligadas aos movimentos, até a criança andar, até chegar a idade das construções simbólicas onde cada objeto do universo complexo das coisas é identificado.
Portanto curar a cegueira, é em última instância reconfigurar o sistema simbólico de um cego, numa democracia significa ir tateando a partir do universo “infantil” até chegar a um universo simbólico dos valores que devem estar presentes numa democracia madura: respeito, tolerância e discussões essenciais sobre o universo simbólico.
Diríamos que a democracia em amadurecimento no Brasil, ela teve pouco espaço na história para se desenvolver, está no final da idade crítica da adolescência, pais enérgicos parecem resolver os problemas, mas ao mesmo tempo afastam os jovens do diálogo.
Mas há outra passagem que é a do cego Timeu, que quer ardentemente ser curado da cegueira, é o caso de alguns na democracia brasileira, e pede a Jesus: “Jesus filho de Davi, tem piedade de mim!” Mc (10,49) e Jesus o cura e diz: “tua fé te salvou”.
O voto daqueles que tem fé verdadeira, e que querem a cura da cegueira verdadeira, pode decidir uma eleição, se desejamos a paz, a justiça e um país que nos orgulhe a todos, podemos refletir sobre nossa própria cegueira, a dificuldade de ver tudo claramente e pedir a cura.
Há uma grande noite sobre o pensamento ocidental por isto somos todos um pouco cegos.
Cegueira e medo
A euforia de um recuo conservador dura pouco, porque apesar de recuos a sociedade como um todo, incluindo a economia, os valores culturais e até mesmo a ecologia (em crise a um bom tempo, a ponto de catástrofes anunciadas) devem dar sinais vitais ou de perigo.
Foi o alerta americano sobre possibilidades de verdadeiras bombas contra a democracia, que inclui o ex-presidente Barack Obama, a candidata Hillary Clinton e alguns deputados democratas, lá como aqui a suspeita de atos autoritários e até mesmo condenáveis dão sinais.
O resultado refletiu nas economias, as bolsas caíram e o dólar subiu, pouco é claro, mas é uma amostra clara que se estamos no caminho errado a euforia logo cai na realidade: o medo.
Em nota oficial o FBI esclareceu que as embalagens direcionadas ás famílias Clinton e Obama foram identificadas durante “procedimentos de rotina de triagem de correio”, o que fez a Casa Branca tentar minimizar os fatos dizendo que eram “desprezíveis”, o que se viu foram fatos.
O edifício Time Warner, por exemplo, em Nova York foi evacuado (foto) onde estão gabinetes de deputados democratas, e segundo agências de notícias, o primeiro a receber pacotes teria sido o investidor em bolsas, conhecido no Brasil por suas manipulações, George Soros.
Assim é o obscurantismo e a cegueira que espalham o medo em primeira instância, o discurso pode parecer como tendo fundamento, mas ao revelar sua face verdadeira, a cegueira segue o medo e muitas vezes levam ao terror.
Claro que é só um sintoma, um evento pequeno, porém não “desprezível” como aponta a Casa Branca, se não levado a sério pode desencadear na sociedade um clima de pânico que segue ao medo, e as repercussões no “bolso” da economia que dói aos poderosos, é afetado.
Todos queremos uma sociedade segura, os caminhos que levam a ela é que são diferentes, sem um caminho que garanta direitos a todos indistintamente, superando desigualdades e preconceitos, geramos uma “paz” duradoura, diferente daquela proposta por Kant como “pax eterna”, a sociedade moderna que assistiu a duas guerras mundiais sabe que ela não é efetivamente duradoura.
Escreveu Byung Chul Han em A expulsão do outro (Relógio d´água, 2018, p. 22): “o medo de cada um por si provoca inconscientemente a nostalgia de um inimigo. o inimigo é, ainda que de modo um provisor de identidade”, retirado do texto Theorie des Partisan de C. Schmitt, citando-o textualmente.
A vontade de poder e o sagrado
É fato que os conceitos de Nietzsche são fortes: em nossos instintos estão sempre presentes as ideias de vontade de poder, enquanto nada muda ficamos no eterno retorno (Ewige Wiederkehr) e nos imaginamos um super-homem (übermensch), porém isto é uma forma de esvaziamento, o niilismo.
Há outros instintos que nos ligam ao sagrado, a ideia de servir e o respeito ao outro (que são os limites para nossa vontade), e sem eles qualquer âmbito da nossa relação social podem cair naquilo que vou chamar de “niilismo social”, ou seja, o esvaziamento do pensamento social.
Limitados a vontade de poder, são apenas nossos instintos que falam, e as atitudes mesmo na política tornam-se emocionais, apaixonadas no mal sentido, é possível apaixonar-se pelo Bem.
Coloco o Bem em maiúsculo porque não deve ser confundido com o bem maniqueísta, ao imaginar que estamos lutando contra um “mal” muitas vezes simbólico (leia-se A simbólica do mal de Paul Ricoeur) voltamos em “eterno retorno” aos nossos instintos de poder e intolerância.
O ponto que Nietzsche tinha razão é que tais instintos existem, são eles que levam ao falso conceito de autoridade como mão de ferro, e estes levam a totalitarismos, mesmo na vida cotidiana, que esvaziam o sentido de educação, de serviço, o que chamo de “niilismo social”.
Ligado ao sagrado este conceito se purifica, pode tornar-se generosidade, benevolência e até mesmo uma virtude teologal que é a “caridade”, e sem este o “niilismo social” é um caminho.
É isto que faz mesmo pessoas com boa intenção cair na tentação da mosca azul, o poder pelo poder, mesmo os discípulos que caminharam ao lado de Jesus tiveram esta “tentação”, pedem a Jesus no teu reino: “deixa-nos sentar um a direita e outro a tua esquerda” (Mc, 10,37).
Jesus dirá que não sabem o que pedem, diríamos nos dias de hoje não sabem o que escolhem, a ideia de um poder forte que resolva questões sociais profundas, que dependem de uma nova visão de mundo, para sair do eterno retorno, dependem da mobilização da vontade popular e não de um poder central mais forte, é uma tentação também para quem defende o social.
Foi a ideia de um estado forte, conduzido por líderes com “carisma”, que levou o mundo a uma segunda guerra mundial, a sociedade em rede, e a rede são pessoas, precisa sair do seu “niilismo social”, saber que é preciso passar por sacrifícios para mudar, Jesus perguntou aos apóstolos que queriam sentar-se ao seu lado: “Podeis beber o cálice que vou beber?” Mc 10,38.
A grande mudança que necessitamos requer uma cidadania global e não um retorno ao tempo da “Riqueza das nações” de Adam Smith, ainda que o sentimento de nação e povo sejam bons.
Visão científica e ontologia
A ciência contemporânea é fruto de uma construção de conceito “a priori”, que pode ser pensada como aquilo que é anterior a experiência ou à percepção, em termos de filosofia isto corresponde a duas formas de conhecimento ou argumento, quando dizemos na minha experiência eu sinto que … é o argumento da percepção, quando digo vejo isto da seguinte forma … significa que tenho uma visão de mundo e estou recorrendo a ela.
Na fenomenologia ontológica também é admitido um “a priori”, mas não significa uma “construção apriorística”, pois ela deve estar desvinculada da “empiria”, pois na verdade mesmo que não consigamos explicitar a nossa visão de mundo, ela foi social e culturalmente construída, o que no circulo hermenêutico são os pré-conceitos, no sentido que estão de alguma forma formulados.
Assim como tanto a pesquisa científica como a ontologia tem conceitos “a priori” elas podem convergir, mas na prática a ontologia requer uma purificação, ou seja, a explicitação de quais são os preconceitos, por exemplo, o idealismo ou a cultura.
Toda investigação Científica realiza uma a priori que é a “fixação dos setores dos objetos” e só é possível a partir de uma abertura originário ao ser do ente, ou seja, qual é a experiência ordinária que ela tem do mundo, por vezes difícil de explicitar e questionar.
Para que um verdadeiro questionamento científico seja feito é preciso determinar a região dos entes, muitas vezes chamada de contextualização mas esta no máximo só corresponde a uma visão romântica de história (ler Gadamer), a região significa ser levada ao horizonte da experiência original, o horizonte da relação fundamental do ente que questiona com o mundo questionado, em geral feito às avessas.
Na filosofia medieval, toda a discussão destes a priori levam querela dos universais de Boécio(470-525 d.C.), que traduziu a Isagoge do grego para o latim, logo percebeu o magnífico programa que as questões de Porfírio anunciavam.
No fundo a querela é se existem universais, quais seriam eles, que desencadeou uma luta entre nominalistas (tudo é nome) e realistas (eles existem independentes dos nomes).
A analítica existencial “está antes de toda psicologia, antropologia e, sobretudo, biologia.” (Heidegger, 2015, p. 89), embora já o dizemos no post anterior Paul Ricoeur afirma que há em Heidegger (diria em toda ontologia) um a priori que se fundamenta na antropologia, que chamamos de originária por razões culturais.
Heidegger, M. Ser e tempo, 10a. edição, Trad. Revisada de Marcia Sá Cavalcante, Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2015.