Arquivo para a ‘Antropotécnica’ Categoria
O ser e o mundo
Heidegger criou uma escola filosófica ao criar uma visão de ser e de mundo, que retorna a uma questão básica essencial que a filosofia deixou escapar: existir e ser.
Mas a expressão ser no mundo, com grande influencia social e também psicológica, foi rapidamente consumida na banalização conceitual por ser aparentemente óbvia.
A expressão ser no mundo, que fez e faz escola no conhecimento psicológico e social, é daquelas que facilmente se prestam à banalização e a empobrecimentos, talvez mesmo pela sua abrangência e aparente obviedade.
O tema está no seu tratado Ser e Tempo (Sein und Zeit), de 1927, que tinha como tarefa recolocar a questão do “sentido do ser”, que foi esquecida pela metafísica tradicional ocidental a partir da modernidade, mas para ele também pelos antigos.
Isto aconteceu na modernidade por ter-se convertido o ser numa ontologia da substância, aquela que visualiza o ser em geral a partir da primazia da “coisa”, ou, dito de outro modo, que toma a “coisa”, como paradigma de representação para tudo o que “é”, pressuposto básico do que a filosofia objetivista traduziu como tudo que é objeto, reduzindo a metafísica e a visão da essência em “superstição”.
Assim para se alcançar a visão do ser é preciso em primeiro lugar, entender o que ée o ser do ente que recoloca a questão do ser (para Heidegger esquecida), ou seja o ser do homem, o dasein (deixo aqui propositalmente sem tradução).
Toda a primeira seção da obra é devotada a análise do dasein (daseinsanalyse), ou seja o desenvolvimento da estrutura do ser no mundo, com um horizonte fundamental para poder ser abordada a questão do ser em geral.
Estas estruturas ontológicas vistas na análise do dasein como: ocupação, disposição, compreensão, discurso, etc. não podem e não devem ser confundida com os seus correlatos ônticos ou empíricos (ah a prática!), elas são: afeto, desejo, conhecimento, linguagem, que na verdade são apenas fundamentação existencial.
A analítica existencial “está antes de toda psicologia, antropologia e, sobretudo, biológica” (Heidegger, 2015, p. 89), embora Paul Ricoeur observe que há uma antropologia filosófica “em função de sua abertura ontológica” (Tempo e Narrativa, 1994).
Heidegger, M. Ser e tempo, 10a. edição, Trad. Revisada de Marcia Sá Cavalcante, Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2015.
Luta pela paz, com mansidão e justiça
A história da humanidade é até os dias de hoje uma história de guerra do Mesmo contra o Outro, o livro A expulsão do outro de Byung-Chul Han não é senão a constatação desta realidade.
É nosso destino, uma fatalidade, penso que não, quando mais se falou de paz se fez a guerra, talvez quando mais se fale de guerra possa ser pensada a paz, a Terra como pátria humana.
Os desafios são imensos, e os medos crescem a cada novo governo autoritário, é bom que se diga também há ilhas de esquerda, e fortaleza de direita que não são senão pessoas “eleitas”.
Não penso em resistência nem em oposição, continuo a pensar em transformação, o grande retrocesso que acontece em toda humanidade, se fosse localizado seria fácil tem uma só leitura: não conseguimos ir a frente, os saudosistas dizem: “como era bom aquele tempo”, qual ?
Lutar pela paz deve ser também pela justiça e contra toda sorte de opressão, engrandecer a sabedoria simples e entender que é preciso profundidade para ser simples, uma “sofisticação” como disse Leonardo da Vinci, e estabelecer um espírito de mansidão onde seja possível pensar.
Sem deixar de perceber uma dose excessiva de autoritarismo é hora de perguntar, qual o lugar exato do estado na vida cotidiana? sua abrupta interferência até na vida pessoal não é senão uma forma de autoritarismo? temos câmaras e radares a cada quilômetro, não é exagero.
Armas para a paz, não faz o menor sentido, mais armas mais violência, nunca o contrário.
Lembram as bem-aventuranças bíblicas Mt 5,5: “bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra”, claro o que vejo hoje é o poder na mão de raivosos e autoritários, mas não é o fim.
O verso longo seguinte é praticamente um alerta para a justiça Mt 5,6: “Bem-aventurados os que têm fome e se de justiça, porque serão saciados”, e, mais a frente Mt 5,9: “os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus”, será que o humanismo morreu ?
O fato que todos, ou pelo menos uma grande parte da humanidade, tem uma percepção que algo precisa ser feito com urgência para superar os “perigos contra a humanidade” nos desafia.
É urgente uma governança mundial, e não menos urgência programas de distribuição de renda.
O colapso ecológico, e nas grandes metrópoles também o urbano pedem medidas mundiais.
Lembro as duas bem-aventuranças como estímulo para aqueles que lutando pela humanidade sofrem perseguições, injustiças e calúnias.
Mt 5,11 “Bem aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim”, isto é cristianismo, o resto maldade.
O estado está nu ou de roupa nova
O conto de Hans Christian Andersen A roupa nova do imperador, parece estar na origem da frase o “rei está nú”, que conta a história de um rei que passou a vida preocupado com suas roupas e um dia encontrou dois charlatães que diziam ter um pano mágico que rapidamente se transformava em uma roupa pronta.
Fantasiado o rei deu-lhes uma boa quantia em dinheiro e os dois puseram-se a trabalhar com um fictício fio, chegando o dia do rei estrear sua roupa vai busca-la e embora não veja nada, veste a roupa imaginária e vai para uma grande procissão sem roupa alguma, mas os seus súditos também fingem que o rei está vestido, até passarem por uma criança que inocente que é disse que o rei não vestia nada, o pai pede para ela se calar, pois não se põe o Rei em questão.
Assim é hoje a situação do estado, corrupções e desmandos estão em toda parte, em alguns lugares há punições, mas a maioria das pessoas prefere acreditar que o estado moderno tem sua razão de existir, afinal os governantes são necessários e foram eleitos democraticamente.
Acontece que governantes que são verdadeiras caricaturas de ditadores, até mesmo o tempo deles passou, como o Welfare State (a ampliação do conceito de cidadania com o fim dos governos totalitários no pós-guerra) já passou estamos agora no rescaldo e o estado está nú.
O rei representa a crença em normas e convenções, que no caso do estado é sua constituição e suas interpretações, no caso humano é a impossibilidade de ver algo além de seus interesses imediatos, como o rei era a sua roupa bela e que o faz apostar numa roupa mágica.
As roupagens são novas, mas os impérios que assombram a todos já são conhecidos.
Não há magia, uma economia em ruínas, uma educação decadente e uma violência que cresce.
ANDERSEN, H. C. A roupa nova do imperador. São Paulo: Brinque-Book, 1997.
Entre a lógica da proibição e da permissividade
O fato que o estado moderno vive uma crise é fácil de observar pelo número de governos autoritários que cresce em todo o planeta, de modo especial no Ocidente e nas Américas, não era de imaginar até anos atrás, um discurso nacionalista nos Estados Unidos da América e ainda a volta de alguns governos autoritários na América Latina.
A educação para a democracia e para o humanismo fracassou na modernidade, é o que constatava Peter Sloterdijk em Regras para o parque Humano, que não é senão uma resposta (dialogal é bom que se frise) as Cartas sobre o Humanismo de Heidegger, onde pergunta: “o que domestica o homem se em todas as experiências prévias com a educação do gênero humano permaneceu obscuro quem ou o quê educa os educadores e para quê? Ou será que a pergunta pelo cuidado e formação do ser humano não se deixa mais formular de modo pertinente no campo das meras teorias da domesticação e educação?” (Sloterdijk 2000).
A educação moderna é para com os direitos e deveres do estado, ainda que o nome tenha sido apagado, a famosa “educação moral e cívica”, onde civismo e moral remetem-se ao estado.
Na lógica bíblica, onde é fundamental o amor agápico e que nem sempre é facilmente compreensível pela cultura teológica, ainda mais quando há polarização social e política, é fundamental que se estabeleçam relações e que elas tenham respeito à opinião e à ação alheia, e isto se dá diante da máxima: “não faça ao outro o que não quer que seja feito a você”, a chamada regra de ouro.
É comum o uso do discurso do outro, pela escassez de pensamento, não se trata de plágio, apenas o uso de máximas ao invés de algo elaborado, assim que algo entra em evidencia. logo já há aqueles que adotam os slogans, sem nem sempre adotarem as ações, mas Jesus diz aos discípulos aos que usavam seu nome Mc 9,39-40: “Não o proibais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a nosso favor”.
Esta devia ser a lógica paraconsistente do diálogo, nunca a lógica exclusivista: “quem não está conosco é contra nós”, mas esta lógica penetrou na política e no seio da sociedade, assim os discursos vão se tornando mais autoritários e mais excludentes aos que não estão de acordo com determinada bandeira.
O que é ilógico, em qualquer sistema lógico, é considerar que seja inclusiva a lógica do ódio, o humanismo não acabou, acabou um humanismo que prega a lógica da força do estado.
Sloterdijk, Peter. Regras para o parque humano – uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad. José Oscar de A. Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
Da lógica ao Ser
O conceito de antropotécnica, inicialmente polêmico que chegou a sacudir a cultura alemã e gerou uma polêmica entre Junger Haberrmas e Peter Sloterdijk, chegando a ser comparado a forças conservadoras, na verdade pode estar relacionado tanto a “melhora do mundo” (em alemão Weltverbesserung) e “melhora de nós mesmos” (Selbstverbesserung).
Ultrapassa e ao mesmo tempo dialoga com o conceito foucaultiano da biopolítica, mostra ainda uma dificuldade na relação entre sujeito e poder, apesar de sua Microfísica do Poder, vê assim a relação com a técnica:
“Procurei, antes, produzir uma história dos diferentes modos de subjetivação do ser humano em nossa cultura: tratei, nessa ótica, dos três modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos. […]. Não é, pois, o poder, mas o sujeito que constitui o tema geral de minhas pesquisas.” (FOUCAULT, 2014, p. 118-119).
Embora a biopolítica pareça uma superação da “tecnologia do eu” (a estética da existência), ela não se desvinculou da polaridade objeto x sujeito, cuja essência é a lógica idealista.
Se a biopolítica é em última análise o governo da vida, a vida está além da relação com o poder, pois uma mudança radical aconteceu na Modernidade: a técnica.
A obra de 2009 de Sloterdijk “Voce deve mudar a sua vida” (Du musst dein Leven ändern) ele estabelece duas formas de produção artificial (não é virtual) do comportamento humano nas chamadas “grandes culturas” sob impacto da Idade Moderna.
A primeira é a produção do homem pelo homem, o que ele chama de técnicas de “deixar operar” (Sich-operieren-Lassen) e a segunda é a produção de homens, mas de si mesmos, que passaria então a técnicas de “auto-emprego” (Sloterdik, 2009, p. 589).
O que Sloterdijk quer nos apontar é que há uma forma nova de relação com o estado em andamento que ultrapassa a biopolítica, esclarece em sua obra fundante “Regras para o parque humano” que desde Platão, criador do estado-ideal e da ideia de cidadania politica, onde o filósofo-político era superior, vejamos:
“O que Platão pronuncia pela boca de seu estrangeiro é o programa de uma sociedade humanista incorporada na figura do único humanista completo: o dono da ciência do pastoreio real. A tarefa desse super-humanista [o filósofo político treinado para isto] não seria outra senão o planejamento de propriedades em uma elite [de políticos] que teria que ser levantada expressamente para o bem de todos.” (Sloterdijk 2001, p. 82-83).
Esta lógica foge do dualismo esquerda-direita, libertadores e opressores (eles estão dos dois lados), para uma lógica de redefinir o papel de estado e da política, é uma lógica paraconsistente, no sentido que exige nova linguagem, de diálogo amplo.
O filósofo peruano Francisco Miró Quesada, que cunhou a palavra Paraconsistente, diz que o pensamento latino americano nasce: “diante de todos, desnudado e fraco, como um órfão desvalido”, em meio a possibilidades ditatoriais um pensamento novo pode abrir-nos ao Ser.
SLOTERDIJK, P. Regras para o Parque Humano. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.
FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos – IX. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
Existe pensamento latino-americano
Sim, é evidente que existe, mas como escola de filosofia ainda está vinculado secularmente a diversas formas de pensamentos exógenos, que ao adaptar-se a nossa realidade ficam vagos.
Considero Miró Quesada, junto com Mario de Andrade (de Macunaíma principalmente) e Sérgio Buarque de Holanda (de Raízes do Brasil principalmente) aqueles que possuem algo genuíno.
Há toda uma filiação à esquerda de Eduardo Galeano, o argentino Nestor Canclini, e outros menos lidos: Manuel Ugarte (Argentina), José Martí (Cuba) e Manoel Bomfim (Brasil).
Claro há bravos pensadores da esquerda como Florestan Fernandes e Caio Prado, pensadores anárquicos como Bento Prado, o nem sempre valorizado Milton Santos, e pensadores conservadores como Olavo de Carvalho e o esquecido Mário Ferreira dos Santos, que é bom .
Gosto da divisão didática de Quesada, dizendo que o filosofar latino-americano nasce no fim do século XIX, combatendo o positivismo (quanta gente ainda nem saiu desta), mas ainda vinculada com um instrumental europeu.
A segunda, que chamou de “forgadores” e “patriarcas”, mas que ele de modo inteligente divide em regional e universal, resolvendo isto, que fez o trabalho de recuperar línguas e fontes dando cores ao pensamento latino-americano.
A terceira geração, curiosamente é também o período de Mário de Andrade e Sergio Buarque de Holanda, lançam a pergunta se possível uma especificidade do pensamento latino-americano, isto fundou o Grupo Hiperión.
Miró Quesada definiu-se como um ateu nostálgico e depois adotou um tipo de panteísmo, que penso ser muito presente na cosmogonia latino-americana.
Sua primeira obra publicado foi “Sentido del movimento fenomenológico” (1941), e como já dissemos no post anterior, foi ele que cunhou o termo Lógica Paraconsistente em 1976.
Teve encontros marcantes, há registro disto, com Madre Teresa de Calcutá e Kurt Gödel.
Suas principais influências são os filósofos José Ortega y Gasset e Leopoldo Zea, o fato que há fortes vínculos a primeira geração, que é a critica ao positivismo é uma vertente dele, mas ainda hoje há resistência a passarmos para a segunda das nossas raízes e chegarmos a terceira para ir além das raízes e olhar o futuro.
Entre a pureza e a fraternidade
A maioria do pensamento religioso cotidiano, é que estamos imersos em uma cultura da impureza, de coisas que não são saudáveis, isto levou ao que Peter Sloterdijk chama de imunologia, a ideia que devemos nos separar de tudo que é “impuro”.
Mas este conceito pode ser ampliado para etnias, culturas xenofóbicas, endogenia, culto a determinada forma de género, entre muitas outras, também a religiosa.
Talvez a maior impureza de nosso tempo, seja justamente considerar o Outro impuro, ou indigno, ou inferior ou qualquer forma de exclusão, que nada mais é do que recusar a sair de nossa “esfera”, de nossa segurança, parte fundamental deste raciocínio é a desconfiança.
O fato que alguém pense diferente não deveria ser motivo, para considerar o pensamento e o modo de vida do Outro algo perigoso ou mesmo nocivo a nossa “cultura”, é algo novo, curioso pelo qual devemos nos interessar e tentar entender o seu modo de viver, que é sua “esfera”.
Em termos bíblicos foi isto que escreveu o evangelista Marcos, no Capitulo 7, 14-23, ao mostrar a visão do Mestre sobre o que torna de fato os homens impuros: “Escutai, todos, e compreendei: o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior. Pois é de dentro do coração humano que saem as más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo. Todas estas coisas más saem de dentro, e são elas que tornam impuro o homem”.
É fácil compreender quanto do raciocínio “esférico” está presente em diversas redomas de proteção, são os muros virtuais que erguemos em nossa volta e parecem dar segurança.
O zoológico humano e a antropotécnica
Numa conferência realizada em 17 de julho de 1999, que era dedicada a Heidegger e Lévinas, no castelo de Elmau na Baviera, o filósofo Peter Sloterdijk tratou de temas polêmico como a manipulação genética e lançou a ideia de uma “antropotécnica”, provocando fortes reações na Alemanha e também no Brasil no caderno Mais+ da folha de São Paulo “O novo zoológico do homem” foi destaque de capa em 10 de outubro de 1999.
As ideias do filósofo já haviam sido apresentadas em uma cidade Suíça da Basiléia, mas agora a reação era a relação do humanismo com os meios de comunicação, uma interpretação mais midiática do humanismo, que provocou reação do filósofo Habermas e de um articulista da prestigiosa revista alemão Der Spiegel, onde uma polêmica se iniciou com o articulista Thomas Assheuer que o indicava que Sloterdijk “propagandeia a seleção pré-natal e o nascimento opcional: técnica genética como crítica social aplicada .. traços de retórica fascistas” foi publicada na prestigiosa revista.
Em 9 de setembro do mesmo ano Sloterdijk publicou na Die Zeit, duas cartas abertas uma dirigida a Assheuer e outra a Reinhard Mohr, que o atacou também, mas afirmando que o mentor destes ataques era Jürgen Habermas, e de modo ainda mais provocativo intitulou seu artigo de “Die Kritische Theorie ist tot”, traduzindo A teoria crítica está morta.
A polêmica cresceu e os artigos de Manfred Frank e Ernst Tungendhat publicados em 27 de setembro no Spiegel, fazia um dossiê do livro de Sloterdijk, as Regras para o Parque Humano já era um livro, trazendo na capa uma estátua no estilo de Arno Breker, escultor do III Reich, agrupando ícones de Hitler, Nietzsche e o Superman das histórias em quadrinhos, a ovelha Dolly e Lara Croft, uma heroína de jogos virtuais de computador, a polêmica se formou.
O ponto de partida de Sloterdijk não era esse, confesso que foi minha reação numa primeira leitura também, mas o seu ponto de partida era, e sua presença no colóquio dedicado a Heidegger e Lévinas provam isto, uma frase do poeta Jean-Paul no inicio do livro: “livros são cartas dirigidas a amigos, apenas mais longas”, um humanismo ligado a escrita.
Também a referência á humanitas de Cícero, uma oposição à selvageria e brutalidades que era os espetáculos no anfiteatro humano, mostra ao contrário de seus detratores, a preocupação com um pré-fascismo atual (ler o post de ontem), que vinha se desenhando e agora já é realidade em várias partes do planeta, e lembramos que o “humanismo nacional” do século XIX foi justamente onde se desenharam as duas guerras mundiais do século XX.
O que levou Heidegger a perguntar na sua Carta sobre o humanismo, e o livro de Sloterdijk é uma resposta, se uma manifestação cega de antropocentrismo levou a três concepções de confrontos trágicos do século XX: “o bolchevismo, o fascismo e o americanismo”, em sua resposta afirma Sloterdijk que o cristianismo, o marxismo e o existencialismo foram as três alternativas humanistas que “evitam a radicalidade última da questão sobre o ser humano” (Sloterdijk, 1999, p. 23).
A separação do homem em relação a natureza, e ao animal que na visão de Heidegger não +e a racionalidade, na imagem de Sloterdijk, Heidegger caminha entre eles como um anjo colérico em sua espada de fogo (idem, p. 25), marcando a clivagem ontológica entre o ser da biologia e o homem enquanto clareira do Ser, para quem o Ser se apresenta como Ser que escolhe para sua guarda, em sua busca para a “pacificação” que duas guerras mundiais sepultaram, e agora parecem esta no horizonte ao longe.
Porque é importante ler Sloterdijk
Informei no último post que além das esferas de Sloterdijk, li somente as Esferas I que foi publicada em português, que tenho minha própria esfera emprestada de Chardin: a noosfera, e as outras de Sloterdijk tenho comentários do próprio autor e de leitores e interpretes dele.
Um resposta que li recentemente de uma entrevista dele, me deu uma síntese importante de minha proximidade do pensamento dele, ao ser perguntado sobre o que esperava do mundo acadêmico, afirmou em tom cerimonial: “A partir do século 19 (pensemos em Kierkegaard, Schopenhauer ou Nietzsche), o mundo dos filósofos se divide entre aqueles que, como eu, buscam uma aliança com os meios de comunicação de seu tempo (naquela época, a literatura; hoje, a imprensa, o rádio e a televisão), e aqueles que não o fazem, apostando no clássico vínculo entre a universidade e as editoras de livros como seu único biótopo cognitivo”, entre muitas coisas que li, esta é a mais genial.
Não aposto nas Mídias de redes sociais, blogs como este que escrevo a dez anos, por modismo ou afirmação do meu pensamento, mas porque penso que é importante dialogar com o que é hoje mediático, me recusei a algum tempo, por exemplo, ao Twitter que é impulsivo e colérico.
Outro ponto de contato é sua visão da zona de conforto, na mesma entrevista veiculada no caderno Mais+ da Folha de São Paulo de 2003, mas que fortuitamente encontrei num site para reler o que havia me influenciado na época, que me fez logo comprar o livro: Regras para o Parque Humano, publicado pela estação Liberdade na virada do milênio, mas logo parei de ler.
Só retomei anos mais tarde alertado por um aluno para a importância de seu pensamento.
Esse ponto de segurança, portanto não é zona de conforto, explica: “Estamos pensando como o ser humano arquiteta a segurança de sua existência. Como ele vive? Como previne futuras eventualidades e catástrofes? Como se defende? Como se integra em suas culturas, entendidas como comunidades de luta? É uma mudança de paradigma: da filosofia para uma imunologia geral”, isto é, procuramos um “lugar” para estar seguro, há ai uma analítica do lugar, diria na minha análise, em frontal oposição ao pragmatismo niilista e kantiano.
Uma antevisão de Sloterdijk não pode deixar de ser percebida nesta entrevista, ao prever o fascismo nos EUA: “Do ponto de vista da teoria dos meios de comunicação, o fascismo é o monotematismo no poder. Se uma opinião pública se estrutura de tal maneira que a uniformização aumenta demais, temos um sintoma pré-fascista”, há vários pontos do planeta com este sintoma, e é claro, podemos mergulhar numa nova era fascistóide da pré-guerra.
Não há como deixar de ver isto em posições na America Latina, e no Brasil em particular.
Ignorância em tempos de ira
A radicalização social e política, reabrindo polêmicas raciais, ideológicas e religiosas vem levando a limites de raiva e ódio que podem abrir abismos intransponíveis, mas a raiva leva a mais ignorância e maiores abismos, prometem paraísos e entregam infernos pessoais e sociais.
Isto é científico, a revista de psicologia Intelligence acaba de publicar uma pesquisa que diz que pessoas raivosas tendem a pensar que são mais inteligentes do que de fato o são, a raiva diferente de outros sentimentos negativos, está relacionada a uma ilusão de “inteligência positiva” que faz com que estas pessoas superestimem suas capacidades mentais, pensam que “os outros são donos da verdade”, quando a verdade hermenêutica surge do diálogo.
Pesquisas anteriores já haviam mostrado que a raiva é uma emoção negativa incomum, pois é frequentemente associada a traços positivos, e embora a pesquisa não afirme isto, podemos encontrar em todos tipos de fanatismos, que fechados em “bolhas” reforçam os pensamentos de convicção em geral dogmática, e desenvolvem um tipo de neurose “afirmativa”.
Filósofos e pensadores como Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Byung-Chul Han já haviam enfatizado a importância do negativo, do contraponto, do contraditório no caso jurídico, verdades absolutas e absolutismos do mal ou do bem, criam as “ontologias imperais”, uma categoria criada por Peter Sloterdijk para explicar o ser contemporâneo.
A neurose se desenvolve numa pseudo-criatividade na qual a mesma verdade procura ser expressa de modo “mais contemporâneo” quando na verdade não abandona dogmas, fundamentalismos e fanatismos de todo tipo.
O remédio é a escuta, a busca do bom senso, e muitas vezes a única resposta possível ao raivoso é o silêncio, claro há casos positivos de explosões de indignação e repulsa de atos injustos ou imorais, mas certamente uma pessoa justa procura ouvir o “negativo” para ter certeza que está do lado justo.