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Espiritualidade e cosmovisão
Espiritualidade é a busca de um sentido para a vida, ela pode parar na physis, que para os gregos era a natureza ou pode ir além e contemplar a meta-physis, que significa μετα (metà) = depois de, além de tudo; e Φυσις [physis], ou seja, além da natureza e da física.
Assim uma espiritualidade que para na natureza, a explicação por exemplo da origem do universo, ainda que seja uma cosmovisão física, carece de uma cosmovisão escatológica que explique a origem e o fim de tudo, cairá em algum ponto nos sofismas e no niilismo, conforme o sofista Górgias (485-380 a.C.) nada existe.
Se nada existe o sentido da vida é sem sentido, muito se explora superficialmente o sentido da vida, para muitos é ser feliz apenas, ainda é uma cosmovisão limitada, dores e sofrimentos são parte da vida, assim é preciso passar por eles para que a vida de fato tenha sentido.
A espiritualidade necessidade de uma cosmovisão, ou se preferir o termo mais filosófico, de uma visão de mundo (Weltanschauung), usada de maneira quase oposta por Kant e Heidegger, enquanto Kant usa-a como transcendência idealista (do sujeito ao objeto), Heidegger retorna a tradição metafísica, com o propósito de dela se distanciar.
O conceito de eidos (no grego é forma e essência) transformado em ideia, e a separação do sujeito com o objeto, relegou as questões do espírito (nem espiritualidade pode ser chamada) ao campo da subjetividade, marco inicial do movimento filosófico denominado idealismo alemão foi a publicação da Crítica da razão pura em 1781 por Immanuel Kant (1724-1804), terminando cinquenta anos mais tarde com a morte de Hegel (1770-1831).
Martin Heidegger inicia pelo questionamento do sentido de ser do ser-aí. Isso porque “não se compreende por esse termo apenas a concepção da conexão entre as coisas naturais, mas, ao mesmo tempo, uma interpretação do sentido e da finalidade do ser[1]aí humano e, com isso, da história [Geschichte]” (HEIDEGGER, 2012, p. 13).
Grande parte do que se chama de espiritualidade é na verdade apenas uma busca de sentido pela vida, um exercício mental que é diferente do espiritual, carece de uma ascese, de uma verdadeira “ascensão”, por isto retorna sempre a physis, a natureza ou ao chão.
Uma cosmovisão completa deve ir além do fato e chegar a intencionalidade, tudo existe com uma intenção, ter consciência é “ter consciência de algo”, conforme pensa a fenomenologia de Husserl, então consciência do “universo” portanto tem uma intenção de existência do universo, que é em parte metafísica e em parte espiritualidade, algo ou alguém tem (e não teve) uma intenção primária, algo grande, infinito, superior a natureza, ao universo e a tudo que conhecemos, algo inefável.
HEIDEGGER, Martin. Os problemas fundamentais da fenomenologia. Trad.: Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2012.
Mal-estar da civilização e do ser
A frase bastante usada na literatura, as vezes no domínio público é de uma obra de Freud: O Mal estar da civilização, no entanto, não é apenas no campo da psicologia que ela se confina, diz o autor ser: “impossível desprezar até que ponto a civilização é construída sobre a renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não satisfação (pela opressão, repressão, ou algum outro meio?) de instintos poderosos. Essa “frustração cultural” domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos. … Não é fácil entender como pode ser possível privar de satisfação um instinto. Isso não se faz impunemente. Se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar certo de que sérios distúrbios decorrerão disso”. (Freud, 1930/1997, p. 118).
Vejam que “opressão, repressão ou algum outro meio” é do autor, que mal imaginaria um mundo digital capaz disto, e frustração cultural colocada em aspas pelo autor domina os relacionamentos, e que afirma ainda mais curiosamente, que a busca da “compensação econômica” é um refúgio.
Mas isto foi registrado também em outras áreas, escreveu Edmund Husserl sobre a crise das ciências: “Na urgência de nossa vida – ouvimos dizer – esta ciência nada nos tem a dizer. Ela exclui de um modo inicial justamente as questões que, para os homens dos nossos desafortunados tempos, abandonados às mais fatídicas revoluções, são as questões prementes: as questões acerca do sentido ou ausência de sentido de toda existência humana” (A crise das ciências europeias), também pode-se falar da crise ou noite de Deus, da identidade e o esquecimento do Ser.
Assim na Pós-modernidade, se dispensamos os recursos superegoico no sentido freudiano, o que nos assegura uma máscara cultural é a disputa entre nações e uma nova forma de defesa da honra, por exemplo que são disfarces para os diversos tipos de violência urbana, a drogadição, a nova presença agora da psicopolítica que nos impulsiona ao consumo e a polarização e nos encoleriza.
Esta onipresença da violência camuflada nas diversas relações sociais, é o que caracteriza o fim do respeito que caracteriza uma distância saudável entre Eu e o Outro, ou incluímos o igual que é o meu espelho, ou repelimos violentamente como um Outro.
FREUD, S. (1997). O mal-estar na civilização. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira (Vol. 21, pp. 75-174). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1930).
Topologia da Violência
O livro a Topology of violence (não há ainda tradução em português), pode-se considerar uma sequencia da análise da Sociedade do Cansaço, em que mostra porque a sociedade está a beira de um colapso, e mostra que ao mesmo tempo um tese geral sobre seu desaparecimento, uma tendência de guerra que agora dá lugar ao outro, mudando a sua maneira de operar.
Suas ideias sobre a violência são inovadoras e fogem do senso comum, que pensa sempre na concepção moderna da sociedade em liberdade, individualidade e sua realização pessoal, vai em busca do lado obscuro do assunto, onde ele se inicia.
Essa violência é aquela que tende a eliminar o outro, anônimo, “subjetivado” e sistêmico, que não é relevado à medida que aceita a liberdade do antagonista.
Seu conceito de violência é então aquele que define como funcionando numa individualidade livre, motivado pela atividade de perseverar e não fracassar, e com a ambiência da eficiência renuncia até mesmo faz sacrifícios ao mesmo tempo, mas que entra num redemoinho de limitação, auto-exploração e colapso.
Tudo isto tem uma relação com a sedução, que ele explicou numa entrevista ao jornal El Pais que a sedução não pode ser confundida com compra: ““Penso que não apenas a Grécia, mas também a Espanha, estão em estado de choque após a crise financeira . O mesmo aconteceu na Coréia, após a crise asiática. O regime neoliberal instrumentaliza radicalmente esse estado de choque . E aí vem o diabo, que é chamado liberalismo ou Fundo Monetário Internacional , e dá dinheiro ou crédito em troca de almas humanas.”
Tudo isto para aumentar o crédito e dar maior incentivo a uma suposta eficiência, e ele explica que no final: “estamos todos exaustos e deprimidos. A sociedade da fadiga na Coréia do Sul está agora em um estágio mortal”, revelando o lado pouco conhecido do país de onde veio e que fala com propriedade.
E não é uma sociedade mais feliz, explica, “o invisível não existe, então tudo é entregue nu, sem segredo, para ser devorado imediatamente, como disse Baudrillard”, explica que tudo deveria ter um véu ainda que fino, uma interioridade.
Arroyo, Francesc. Aviso de derrumbe. entrevista de Byung Chul Han ao diário El País, Espanha.
O diálogo e o essencial
O essencial está distante da sociedade moderna porque é exigido de todo ser humano, até mesmo daqueles que tem alguma limitação física ou diferença social o máximo de desempenho, Byung-Chul Han no seu livro a Sociedade do Cansaço (Vozes, 2015), define-a também como sociedade do desempenho.
Ela nos projeta para fora do essencial, ao contrário de uma “época imunológica” ela é uma “época neuronal”, a divisão entre “dentro e fora, amigo e inimigo ou entre o próprio e estranho”, é definido como “ataque e defesa” (HAN, 2015, p. 8) por isso ela tende para o confronto e não a paz.
A paz exige diálogo, e o essencial exige escolhas interiores que nos movam ao essencial exterior.
Este esgotamento do desempenho é o que “nos incapacita de fazer qualquer coisa” (Han, 2015, p. 76) e o diálogo se torna difícil, proselitista ou mesmo mera retórica, mas só ele pode levar a paz.
Edgar Morin, que completou 100 anos (veja o post anterior), estabeleceu como operador dialógico aquele capaz de operar: a razão e a emoção, o sensível e o inteligível, o real e o imaginário, a razão e os mitos, e, a ciência e a arte.
Pode-se ver que a polarização sempre se coloca de um dos lados, não articula “o dentro e o fora” como propõe Chul Han, então dialogizar é admitir a ligação estes polos e não sua mútua exclusão.
Devido a questão identitária, fortes em nossos tempos que envolvem culturas, religiões e nacionalidades, o polo entre a razão e os mitos torna-se exacerbado onde o diálogo é difícil.
É preciso respeitar o diferente ao dialogar, permitir-lhe também a palavra e não excluí-la com argumentos apenas racionais, há razões ontológicas, históricas, culturais e sociais para seus argumentos, e se não estivermos “desarmados” o diálogo não se realiza.
Ao enviar os discípulos para levar a “boa nova”, são interessantes as instruções dadas aos apóstolos, em Mc 6,8-10 ele pede para não levarem nada, nem mesmo bolsas ou sacolas, e ao entrar numa casa desejassem a paz, e fiquem ali até a vossa partida, e diz a leitura que curavam doentes e expulsavam demônios, o essencial e o diálogo têm esta potencialidade.
O desiquilíbrio da performance, do cansaço e da frivolidade levam a sociedade a exaustão e a dificuldade de diálogo, porque também estamos cheios “dentro” de convicções e razões.
HAN, B.-C. Sociedade do cansaço. Tradução Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.
Entre o Ser, o Nada e a interioridade
A primeira sensação ontológica, diante da racionalidade foi uma tentativa de confinar o Ser em sua subjetividade (que vem de sujeito) para tornar a relação com o Ente uma “objetividade” que existe fora do Ser (para a modernidade fora do sujeito).
Como ambas negam a a ex-sistência, aqui significa ex “sair de” e o verbo sistere “ser colocado”, assim existir é o que está colocado fora do ente, mais que a subjetividade é a própria essência do Ser, além do imaginário e do simbólico, do imaginário porque é o irrepresentável e o simbólico porque significa o não-sentido, mas aí estão toda essência e existência do Ser.
A concepção de negar a existência do ser, que tem que negar até mesmo a razão que a concebe, vem de Górgias (485-380 a.C.), sofista que Platão refutou em um livro, para ele não havia verdade e pode-se dizer que é o princípio longínquo para o relativismo.
A existência e realidade do Ser, embora velada, está na possibilidade de uma clareira, dela depende a abertura do Dasein, sua relação com a physis (a natureza no sentido geral dos gregos) e para a qual deve ser retirado o véu que cobre o ser, e assim a relação com o ente e a interioridade.
Se nos vemos apenas como vemos num espelho vemos a imagem do nosso ente, se vemos como somos significa que temos capacidade de ver além dele nossa interioridade, nossa complexidade e a partir delas como nos relacionamos com o todo do qual somos parte.
A projeção sobre a exterioridade e negação da interioridade é parte do esvaziamento do Ser na modernidade, somos o que fazemos e não importa muito o que somos de fato interiormente.
Deste esvaziamento nasceu o niilismo (nihil – nada), o solipsismo (o eu e minhas sensações) e de certa forma o subjetivismo (considerações só sobre o que é pessoal, uma interioridade vazia) e boa parte das teorizações prezas as dicotomias infernais (subjeito x objeto) e (natureza x Cultura).
Numa interpretação mais atual, na Sociedade do Cansaço, Byung Chul Han fala da interioridade, em outro livro A Sociedade da Transparência ele afirma: “hoje o mundo não é um teatro no qual são representadas e lidas ações e sentimentos, mas um mercado onde se expõem, vende e consomem intimidades” (HAN, 2017, p. 80).
HAN, Byung-Chul. Sociedade da Transparência Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis, Vozes, 2017.
Da linguagem ao Ser
A linguagem enquanto fala e retórica é apenas aquilo que se exterioriza, porém se pensada como ontologia é a abertura (Erschlossenheit) a partir da apropriação silenciosa do si-mesmo, como Heidegger pensou em Ser e Tempo, seja a abertura (offenheit) pensada como clareira do ser (lichtung des Seins), aquela usada por pensadores e poetas, e que se mostra na medida que sua correspondência silenciosa como ser, expressa em Carta sobre o Humanismo.
Escreve neste texto: “O destino se apropria como clareira do Ser, que é, enquanto clareira. É a clareira que outorga a proximidade do ser. Nessa proximidade, na clareira do Da lugar, mora o homem como ex-sistente, sem que ele já possa hoje experimente e assumir esse mora” (Heidegger, 1967, p. 61)
Em termos gerais linguagem é um veículo da expressão de algo interno ao homem, isto é, uma ponte que vincula o dentro e o fora do homem, tal forma de falar é pensada como uma atividade que acontece na qual o homem é o próprio meio, por isto há o silêncio antes.
Mas segundo a concepção ontológica da linguagem, não é a linguagem que pertence ao homem, mas antes o próprio homem concebido ontologicamente como ser-para-a-morte resoluto ou ser ontologicamente que responde como mortal à solicitação silenciosa do Ser.
Em termos mais simplistas trata-se aqui da diferença entre o ente que “tem” uma linguagem, no sentido de capacidade de falar, e a concepção ontológica que pensa o homem como “sendo” por meio de ser possuidor da capacidade de falar, a linguagem aqui não é apenas a transmissão de informações, mas o modo no qual manifesta o próprio existir humano.
Neste contexto comunicação começa com o silêncio, é preciso um vazio, um epoché na comunicação, que pressupõe um Outro que será destinatário, não é assim receptor, mas destino de sua fala, e este é o modo pelo qual se manifesta o próprio existir humano.
Assim para Heidegger, mas de outro modo também para Niklas Luhmann, seria preciso rever toda a teoria da Comunicação, pois receptor e transmissor são eles próprios o meio não humanos, e não “substituem” o homem, não podem existir nem ter relação como se o homem fosse algo acessório, aí está toda a alucinação da Inteligência Artificial atual, colocar receptor e transmissor no lugar de fonte e destino, seria preciso prever uma “clareira” do ente “fora” do Ser.
Por isto a clareira é interna, já postamos em outro oportunidade aquilo que Heidegger afirma em sua obra magna Ser e Tempo: “Na medida em que o ser vige a partir da alethéia, pertence a ele o emergir auto-desvelante. Nós denominamos isso a ação de auto-iluminar-se e a iluminação, a clareira” (cf. Ser e Tempo). (* aletheia do grego: a- não, lethe- esquecimento, desvelar).
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 61.
O que é compreender
Compreender se tornou na estrutura analítica ocidental um círculo vicioso que tende apenas a repetir aquilo que considera verdade partindo de algum aforisma histórico, o que Gadamer chama de historicismo romântico em sua crítica a Dilthey.
O esquecimento do ser ignora que o círculo hermenêutico que vai da interpretação até uma nova compreensão é a própria estrutura de um novo sentido, um sentido existência, que está no Ser.
Assim a circularidade da compreensão não é primeiramente uma exigência lógica, a partir de um método A ou B, mas o próprio desdobramento ontológico: “a reflexão hermenêutica de Heidegger tem o seu ponto alto não no fato de demonstrar que aqui prejaz um círculo, mas um círculo este tem um sentido ontológico positivo” (GADAMER, 2013, p. 355).
Heidegger (2014) em sua obra magna Ser e Tempo elaborou uma hermenêutica da facticidade a partir da analítica temporal da existência humana (Dasein), aqui facticidade é o modo de ser em seu Dasein que encontra, na existência temporal, a possibilidade de revelação, de clareira:
“A estrutura da temporalidade aparece assim como a determinação ontológica da subjetividade. Mas ela era mais que isso. A tese de Heidegger era o próprio ser é tempo” (Gadamer, 203, p. 345), eis a essência mais profunda da obra de Heidegger, que aponta para o círculo hermenêutico:
“O decisivo não é sair do círculo, mas nele penetrar de modo correto. Esse círculo do entender não é um círculo comum, em que se move um modo de conhecimento qualquer, mas é a expressão da existenciária estrutura-do-prévio do Dasein ele mesmo. O círculo não deve ser degradado em vitiosum nem ser também tolerado. Nele se abriga uma possibilidade positiva de conhecimento o mais originário, possibilidade que só pode ser verdadeiramente efetivada de modo autêntico, se a interpretação entende que sua primeira, constante e última tarefa consiste em não deixar que o ter- prévio, o ver-prévio e o conceber-prévio lhe sejam dados por ocorrências e conceitos populares” (Heidegger, 2014, p.433), mas dirigir-se as coisas mesmas.
O compreender visto assim pode parecer filosófico demais ou uma teorização sobre o pensar, não o é, pois, mesmo no esquecimento do Ser, estrutura atual de fragilidade do pensamento, este é o processo de aprendizagem que envolve desde o aprendizado da linguagem por uma criança até os mais elaborados métodos de descoberta e inovação, ou são apenas repetição de algo já feito, e assim sem a facticidade, pois é mera repetição.
GADAMER, H-G. Verdade e método Trad. Flávio Paulo Meurer, revisão da tradução de Enio Paulo Giachini. 13. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2013.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo Tradução, organização, nota prévia, anexos e notas de Fausto Castilho. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2014.
A linguagem como pluralidade
O problema da interpretação quando estamos pensando na linguagem surge como uma proposição demonstrativa, ocorre quando se torna tal interpretação como única e verdadeira, a proposta de Heidegger esta é uma das possibilidades da linguagem, mas não a única nem a principal, quando tratamos apenas de lógica ela não compreende a pluralidade da linguagem.
Isto está presente naquilo que hoje seja chama narrativa ou discurso, já tratamos em vários posts quando tratamos da Metáfora Viva de Paul Ricoeur, mas aqui a problemática é ontológica: o Ser.
A ciência e a técnica, assim como também a narrativa ideológica sequer tangencia o problema essencial da questão do ser, está voltada àquilo que se chama ciência natural ou da natureza:
“a ciência natural só pode observar o homem como algo simplesmente presente na natureza (…) dentro desse projeto científico-natural só podemos vê-lo como ente natural, quer dizer, temos a pretensão de determinar o ser-homem por meio de um método que absolutamente não foi projetado em relação à sua essência peculiar” (Heidegger, 2001, p. 53).
Este é o devaneio da tradição na concepção de linguagem e de verdade, aquela que traz a noção de finitude do ser: ser é tempo, assim por exemplo, acelerando o tempo pensamos em acelerar o ser, quando na verdade é o que provoca seu esvaziamento, tema comum dos heideggerianos.
Separamos o Ser ontológico do existencial, citando o próprio Heidegger, porque a analítica cai em outra armadilha que é ligar o ser ao sujeito, cópula e atributo, criando uma possibilidade estrutural da linguagem, ela é tentadora justamente por sua composição analítica, mas no fundo é essencialmente lógica e não onto-lógica, escapa-lhe o Ser.
Tal evasiva já era prevista por Heidegger: “a essência do ser em sua multiplicidade jamais pode ser em geral recolhida a partir da cópula e de suas significações” (Heidegger, 2003,p. 391).
A linguagem carrega sua própria relação hermenêutica. Heidegger, a partir de Ser e Tempo, realoca a questão da compreensão e da busca da verdade, que estava colocada no âmbito da teoria do conhecimento, e a lança para o plano existencial, neste caminho surge o círculo hermenêutico, não preso a mera opinião ou ao logicismo funcional, nem ao analítico.
A hermenêutica de Heidegger ilumina a finitude humana enfatizando sua pertença à linguagem como o lugar que o humano habita, a noção de logos como desvelamento, como aletheia como os gregos a pensavam, verdade e realidade.
HEIDEGGER, M. Seminário de Zollikon Petrópolis: Vozes, 2001.
HEIDEGGER, M. Os conceitos fundamentais da Metafísica: mundo, finitude, solidão. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
A angustia, o ser finito e o temor
A angústia, enquanto categoria essencial, é o dado temporal mais significativo de nossa existência, o fato que o homem tem um fim, que ele morre e sua existência acaba, é a partir daí que Heidegger trabalha outro conceito que é o ser-para-a-morte [Sein-zum-tode].
Assim a morte é uma limitação da unidade originária do ser-aí, e significa a transcendência humana, o poder-ser, que contém uma possibilidade do não-ser, mas aqui só como negação, “o fim” do ser-no-mundo é a morte, este fim limita o poder-ser, que é a sua existência, e limita a totalidade possível do Dasein (1989, vol. II, p. 12)
É possível separar o medo do temor, deixar o primeiro dentro dos limites do finito, e o temor fora destes limites, aquilo que o imaginário humano penetra e projeta como não-ser, além da ser-para-a-morte, um ser-para-além-da-morte.
Byung Chul Han alerta que assim como a positividade a negatividade também é perigosa: “ela é definida pela negatividade da proibição. O verbo modal que a governa é o ´não-pode´ (…) A sociedade do desempenho, cada vez mais, está no processo de descartar a negatividade. A crescente desregulamentação está abolindo isso. O ilimitado ´poder´ é o verbo positivo modal da sociedade da conquista (…) proibições, comandos e leis são substituídos por projetos, iniciativas e motivação. A sociedade da disciplina ainda é governada pelo ´não´. Sua negatividade produz loucos e criminosos. Em contraste, a sociedade do desempenho cria depressivos e perdedores.”
Assim é possível pensar na negatividade como um processo importante, embora gere medo, e a partir dela gerar um processo do temor, que longe de negar as proibições, demonstra que elas podem nos levar a resultados mais amplos que os prometidos pelo desempenho, é o além-do-ser.
Nem a transcendência do idealismo que é mera projeção do ser sobre o objeto, o assim chamado subjetivismo, nem o ser-para-a-morte como transcendência fatal, mas um temor produzido pela negatividade que nos leva a reconhecer limites, tal como aqueles que foram impostos na Pandemia e que não geram a morte, nem se confundem com o negacionismo que é o positivo modal, negar que a vida humana precisa de limites em situações de perigo.
A leitura Bíblica de Marcos (Mc 4, 35-41), pode neste quadro do temor, desvelar novas coisas sobre o ser, diz a leitura que “ao despedir as multidões”, Jesus foi com os discípulos “para a outra margem”, diria longe do ser-aí da pura positividade do ser-no-mundo, o barco enfrenta forte ventania e ondas fortes começam a encher a barca, o temor toma conta dos discípulos, temem pela morte e dizem ao mestre “estamos perecendo”, o mestre diz para o vento e o mar: “cala-te”.
Não se trata de mágica nem de simples demonstração de poder, a frase dita por Jesus explica muito: “Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?”, mas eles ainda sentiam “um grande medo”, é a angústia.
A angustia e o temor diante da existência
O traço constitutivo do Dasein, em Heidegger está além do fenômeno psicológico e ôntico, não sendo algo que se refere somente a um ente ou a algo dado, nos remete a totalidade do ser como um ser-no-mundo, isto é sua verdadeira dimensão ontológica, nela se explica a angustia do Ser.
A categoria surgiu com Kierkegaard porém para ele a angústia revela o nosso ser finito, o nada de nossa existência diante da infinitude de Deus, por seu caráter eterno, ao passo que Heidegger não pensa apenas como categoria ontológica tornando-a apenas um fenômeno da finitude humana.
Preso a finitude humana é que encontra-se em Heidegger a diferença entre angústia e temor (furcht), mas na obra Ser e tempo o temor também é uma existência fundamental mediante o qual o homem se encontra no mundo (Heidegger, 1989) e isto torna a angustia um estágio suave.
Já o temor constitui para o autor uma disposição anima forte [Befindlichkeit] é ela que nos remete a algo que tememos e com isso se manifesta o todo do mundo, em sua estranheza e assombro, ela é o que acontece antes que possamos realizar um ato de conhecimento do mundo.
Há nela uma força de revelação do mundo, mesmo que num primeiro momento seja só fuga, nela por exemplo a alegria ou a felicidade, explica o autor são muito transitórios e menos marcantes, este ser-aí encontra-se lançado [geworfen] em meio a estados de ânimos, capaz de suportar o peso da existência, e nela “O humor torna manifesto ‘como a gente se sente’. Neste ‘como a gente se sente’ o estar disposto traz o Ser em seu estar-aí” (HEIDEGGER, 1986, p. 134).
Dito de forma mais precisa, ou mais de acordo com o pensamento de Heidegger, o medo é uma disposição central na nossa existência pelo fato de que manifesta o mundo no ator de fuga do ser-aí de si mesmo, mesmo sendo o homem o tema objetivo de Heidegger e Kierkegaard, o endereço últimod e ambos é o temor não como um objeto fora dele, mas sim ele mesmo: o homem somente teme por algo determinado porque em última instância ele é afetado e interessado.
Faço uma digressão porque o estar “fora” para o mundo contemporâneo, Byung Chull Han e Hanna Arendt retomaram de forma diferente o “estar dentro” na “vitta contemplativa”, em Heidegger o medo se volta para quem teme e não para o que teme, em Kierkegaard o temor é a Deus, porém já em período do idealismo projetado sobre o mundo, não como um Ser “fora”.
O importante no discurso heideggeriano é que consegue estabelecer três formas de medo: o diante do que [wofür] tememos algo, o que nos ameaça (as dificuldades da co-presença), o próprio temer [fürchten] enquanto tal, que abre para nós o mundo (as esferas de Sloterdijk ajudam esta reflexão), e, e o porquê [worum] nós tememos, que é o nosso próprio estar-aí.
Por fim, o temor pode ter variações: ele pode ser o que é assustador; pode ser o horror e também a decepção” (Heidegger, 1986, p.142), porém a diferença entre medo e temor ajudaria a separar melhor a categoria de Heidegger de Kierkegaard, que temor é de algo “maior”.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo Traduçăo de Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Vozes, 1989.