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Arquivo para a ‘Virtual’ Categoria

A luta do bem contra o mal, fragilidades do bem

15 jul

O mal em Agostinho de Hipona no livro VII das Confissões, é ausência de bem, assim como todo o universo é ordenado, ainda que agora descobrimos um universo com energia e massa escura, buracos negros, seminovas e galáxias sumindo e aparecendo, e muitas leis novas na astrofísica, ainda assim, há uma hierarquia, onde algumas coisas sobressaem as outras, e é para isto que Agostinho chamou a atenção, e já havia em Agostinho a questão do livre-arbítrio.

Mas uma lição dura mesmo para religiosos como Agostinho, que abandonou a filosofia de maniqueu, é a luta do bem contra o mal, e isto ainda domina parte do dualismo filosófico, onde ser inferior não é ser do mal, há coisas boas inferiores e coisas más superiores, assim o importante é a perda de sentido do que é bom ou mal, aquilo que Hanna Arendt chamou de “A banalidade do mal” (Companhia das Letras, 1999), assim alguém pode fazer algo “inferior” sem ser “mal”.

Assim há dicotomia entre a “luta” pelo bem e a “guerra”, trabalhar e lutar pela vida, ou eliminar o adversário.

Aqueles que querem dar a vida o puro deleite, ou que afirmam que há sentido numa vida bem vivida é o de sermos “produtivos” e “ativos”, inspirados no mitos como um QI superior ou herança fortuita (fortuna no sentido grego é diferente, é destino), mesmo que isto seja feito por meios opressores, indo até o argumento racial, que é o mais repugnante de todos, mas de onde vem estes mitos da “guerra”, do “vencedor” que se confunde com o opressor? 

Um dos grandes mitos que surgem desde a antiguidade é Ulisses de Odisséia e Ilíada (cantos VIII da Odisseia e IX de Ilíada), que significam um símbolo da capacidade do homem de superar as adversidades, embora exista o personagem Odisseu (o nome em grego de Ulisses), seria nascido em Ítaca, filho do rei Laerte, que reinou em Anticléia.

Embora Ulisses de James Joyce escrito de 1914 a 1921, fala de um personagem Leopold Blum, considerado pelo autor um homem moderno que é ao mesmo tempo forte e fraco, cauteloso e precipitado, herói e covarde, numa tentativa de criar um ser humano representante da humanidade, no entanto, é na verdade o herói solitário moderno, um dom Quixote requintado.

A contextualização do herói épico grego e o “herói” moderno são, entretanto, diferentes, assim para ler Ulisses de Joyce é necessário quase um roteiro, que inclusive foram feitos alguns.

Foi o psicólogo Carl Jung que chamou a atenção para o aspecto de “monólogo” do Ulisses de Joyce, embora pareça um homem “comum”, é um homem só e sua “luta”, alertou Jung: “O que é tão assustador em Ulisses é o fato de, atrás de mil véus, nada ficar escondido; de não estar virado nem para a mente nem para o mundo, mas, tão frio quanto a lua vista do espaço cósmico, permite que o drama do crescimento, do ser e da decadência siga o seu curso”, eis um mito moderno.

Os heróis que apareceram na pandemia, não são heróis de “guerra” nem mitos imortais, eles próprios não estão imunes da pandemia e convivem com o medo, e até o isolamento familiar, o que deveriam pensar é a vida que vale a pena ser vivida por todos, pelo planeta e pela saúde.

JUNG, Carl Gustav. Ulysses: A Monologue, UK: Haskel House, 1977.

 

A questão do Mal na História

14 jul

Um filósofo hermeneuta Jan Patocka, é citado por Ricoeur, ainda que não seja diretamente ligada ao mal, pode dar origem socrática da questão da questão do mal: “A perda de ´sentido´não é a queda no ´não-sentido´, mas o acesso à qualidade do sentido implicada na própria busca. Jan Patocka reencontra, assim o tema socrático do ´cuidado da alma’ e da ‘vida examinada’ “ (Ricoeur, 1999, p. 16), está no prefácio do livro de Jan Patocka “Ensaio heréticos sobre história da filosofia”, sem tradução para o português.

Platão elaborou o Sumo bem, que na verdade é a elaboração de uma ética, o Bom e Belo devem ser buscados pelo sujeito moral para harmonizar-se interiormente, e ter consciência do Bem, neste sentido que que pode ser pensado o cuidado da alma e a vida examinada de Sócrates.

Aristotéles elabora sua famosa Ética a Nicômaco, onde explora a ideia de busca da virtude, assim o homem natural não é bom, é pela pratica das virtudes que ele torna-se bom, mas tanto em Platão como em Aristóteles esta virtude tem o sentido social, embora se confunda com o moral, não o é.

O sentido de Mal moral, no sentido de vícios da alma, está elaborado em Agostinho de Hipona, no livro VII intitulado “A ideia de Deus e a Origem do mal”, o mal é a ágape desordenada (diferente da filosofia do eros e da filia), assim é na ausência da escolha de coisas superiores para escolha das inferiores (este é o sentido mais profundo do ágape), que aderimos aos vícios, e desarmonizamos.

Embora o tema possa ser encontrado em vários autores medievais, como Tomás de Aquino e Duns Scotto, o sentido de mal é aprofundado no sentido teísta e o filosófico fica ligado a Ética de Platão, permanecendo a ideia da virtude, trabalhada em torno da Ética de Aristóteles, escreveu Tomás de Aquino: “A virtude designa certa perfeição da potência“, (Suma Teológica, Iª seção, IIª parte, q. 55 a.1).

Na modernidade é Paul Ricoeur que retoma a questão no seu livro “A simbólica do mal”, porém é na delicada passagem do Renascimento a Modernidade que é aprofundada e confundida a distância entre o mal moral e o ético, como se fossem o mesmo, deixando a virtude de ser pensada.

RICOEUR, P. Prefácio a PATOCKA, J. – Essais hérétiques sur la philosophie de l’histoire. Trad. Erika Abrams, Lagrasse: Verdier, 1999.

 

O velamento do conhecimento, noite do pensamento

09 jul

A Carta da Transdisciplinaridade de Arrábida, escrita pelo físico Nicolescu Barsarabi, o serigrafista português Lima de Freitas e Edgar Morin, aponta o processo (anterior a Web), onde a excessiva especialização e um empobrecimento do Ser criaram um velamento do pensamento, diz a carta:

“ …a ruptura contemporânea entre um saber cada vez mais acumulativo e um ser interior cada vez mais empobrecido leva à ascensão de um novo obscurantismo, cujas consequências sobre o plano individual e social são incalculáveis.” (Arrábida, Portugal, 1994).

O problema então é como criar um saber que une e uma cosmovisão que amplie o espírito humano empobrecido e embrutecido, segundo a receita do próprio Morin: “é preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une”.

Toda a polarização e barreiras entre pensamentos distintos são a raiz onde o diálogo é ignorado, mesmo que as vezes afirmado, o fechamento semântico do pensamento, seja quais forem os princípios e muitos vezes morais, religiosos e até culturais são importantes, devem ultrapassar os pré-conceitos e ir ao encontro do positivo no Outro.

Diz a Carta de Arrábida no artigo 14: “A Abertura comporta a aceitação do desconhecimento, do inesperado e do imprevisível. A tolerância é o reconhecimento do direito às ideias e verdades contrárias as nossas”, este é o sentido de substituir um pensamento “que isola e separa” por outro que “distingue e une”, ter diferença não significa isolar ou mesmo separar.

É a ideia totalitária da verdade única, mesmo que religiosa, pragmática ou científica que muitas vezes isola e não une, em diálogos fundamentados sempre há elementos novos a serem considerados e poucas vezes eles são devidamente ouvidos e respeitados.

O físico Barsarab Nicolescu, um dos signatários da Carta de Arrábida, em seu próprio Manifesto da Transdisciplinaridade, a respeito da física quântica escreveu: “… de onde vem esta cegueira? De onde vem este desejo perpétuo de fazer o novo com o antigo? A novidade irredutível da visão quântica continua pertencendo a uma pequena elite de cientistas de ponta”, embora a realidade física a comprove e surpreenda.

Disse na referida carta sobre a “realidade”, “Em nosso século, Husserl e alguns outros pesquisadores, num esforço de questionamento a respeito dos fundamentos da ciência, descobriram a existência dos diferentes níveis de percepção da Realidade pelo sujeito observador”, mais do que isto o observador é parte do experimento, do todo, e não é neutro.

Toda a nossa lógica e as nossas ações se baseiam em três axiomas: O axioma da identidade: A é A, O axioma da não-contradição: A não é não-A;  e o terceiro é chamado axioma do terceiro excluído: não existe um terceiro termo T (T de “terceiro incluído”) que é ao mesmo tempo A e não-A.

O que Nicolescu afirma é o que aconteceria se tornássemos o terceiro incluído, foi o que fez Stefan Lupascu (1900-1988) ao criar a lógica do terceiro incluído (tertium non datur), incluindo o estado-T que não é nem “atual”  nem “potencial”, substituem a lógica clássica do “verdadeiro” ou “falso”, e cria um nível mais generalizado que inclui a física, a epistemologia e o que é “consciência”.

NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdisciplinaridade. Triom : São Paulo, 1999. PDF

 

Eucaristia e o efeito aórgico

11 jun

Assim como viemos da natureza inorgânica (seja o barro como acreditam os que creem, seja pela evolução das primeiras espécies primitivas) a evolução aórgica do mundo, o homem com sua mão plantará a videira e com seu trabalho fará o pão, alimento ancestral e presente em todas culturas.

O desvelar aórgico da virgem que concebe em seu ventre o Filho-Deus e recria em seu seio maternal a própria criação, e depois se manifestará em Pentecostes na vinda do sobre os Apóstolos como segunda manifestação aórgica, conforme afirma São Gregório Nazianzeno sobre este momento: “o amor de Deus não é ocioso; opera grandes coisas, se de fato existe”.

Este desvelar irá se completar como testamento do filho-Deus como uma aliança com os homens na Eucaristia: “em memória de mim o fareis”, a última manifestação aórgica de Jesus entre os homens, o Ser supremo torna-se Corpo no pão e vinho: a Eucaristia.

Diz sobre este fato Agostinho de Hipona: “O Senhor confiou-nos o Seu Corpo e o Seu Sangue em coisas tais que são reduzidas à unidade a partir de muitas outras, porque o pão é um, embora conste de muitos grãos, e o vinho é feito a partir de muitas uvas”.

Agora o Deus trinitário revela-se no Corpo Sagrado da Eucaristia em bebida e cozimento feito pelas mãos humanas, o vinho feito da videira e o pão cozido do trigo, e conforme diz-se no Cantico dos Canticos: : “Comei, amigos, e bebei; e inebriai-vos, caríssimos”, a festa do Corpus Christis deveria levar a milhões a alegria, mas a pandemia ainda limita a festa.

Porque Deus nos privou de tão grande festa, haveria uma manifestação aórgica ainda maior ? a relação da mãe Maria e seu Filho poderá ainda dizer algo mais sublime para a humanidade ? o sofrimento de milhões de pessoas e o medo desta pandemia talvez prepare algo ainda maior.

Conforme afirma o poeta Hölderlin: “onde há medo há salvação”, mas não é ainda agora.

 

A trindade e os padres capadócios

04 jun

O filósofo coreano-alemão Byung Chul Han da “A sociedade do cansaço”, partiu da análise de Vita Activa de Hanna Arendt (traduzimos Vita do latim, para vida até aqui), explicando que ela parte da prevalência na vida cristã da vida contemplativa, esclarece em nota que ela busca “uma mediação entre vita activa e vida contemplativa”, e mesmo não sendo cristão usa assuma passagem descrita por São Gregório: “temos de saber: quando exigimos um bom programa de vida, que passe da vita activa para a vita contemplativa, então, muitas vezes, é útil se a alma retorna da vida contemplativa para a ativa, de tal modo que se chama da contemplação que se acendeu no coração transmita toda sua perfeição à atividade.” (HAN, 2015, p. 39)

O corre corre do dia a dia não possibilita este balanço, porém em tempo de pandemia fomos chamados a repensar a nossa vida social, a nossa relação com as pessoas da nossa casa e também o consumo e a solidariedade aos que nestes tempos perderam empregos, passam limitações e estão vulneráveis.

Porém São Gregório tem um outro viés em seu pensamento sobre a trindade, com seus amigos também capadócios, esses padres se viram obrigados a fazer uma autodefesa da acusação do Triteísmo *3 deuses) que pesava sobre eles e então três grandes teólogos da Capadócia (Ásia Menor): São Basílio Magno (330-379), seu irmão de sangue Gregório de Nissa (+349), resolveram a questão.

Visto pela filosofia grega, que é a que dominou a cultura ocidental, “Mia Ousia treis hypostasis”, significa que ousia garante a unidade enquanto substantia et três persone garante que cada uma das três pessoas é única, e talvez o que seja mais difícil de compreender que são de fato três pessoas distintas.

Foi são Basilo o primeiro que estabeleceu a distinção dizendo que em Deus há três pessoas ou três hipóstases, como já escrevemos significa o prosopon que é o que para os gregos a pessoa.

Conforme escrevemos na semana passada houve um esquecimento da relação trinitária, em termos filosóficos é o dualismo de pensamento, a incapacidade de entender situações que são sempre de visões diferentes de mundo, mas que devem manter a unidade.

Já em termos religiosos significa a perda da capacidade relacional, a solidariedade e fraternidade com o outro, buscando uma religião ora maniqueísta, ora fundamentalista, sem qualquer apelo a unidade (ousia) e o respeito a dignidade da pessoa (hipóstases), enfim a relação trinitária.

Curiosamente o filósofo oriental e budista Byung Chul Han faz um diagnóstico muito atual, ele acrescenta que a “perda moderna da fé, que não diz respeito apenas a Deus e ao além, mas á própria realidade, torna-se vida humana radicalmente transitória” (Han, pag. 42).

HAN, B. C. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017

 

A retomada ontológica e o esquecimento trinitário

29 mai

A ideia de uma substância espiritual absoluta, infinita, única e eterna (veja o post) longe de ser uma ideia de Deus, longe de ser o desvelamento da Trindade Santa, é um esquema idealista da racionalidade para um Deus abstrato, porém compatível com o hegelianismo, o deus idealista.

A crítica severa de Sloterdijk ao humanismo faz sentido agora ainda mais com as perspectiva do pós-pandemia, colocando a “vontade de poder” das duas guerras e um possível cenário futuro, como “síntese do humanismo e do bestialismo” (Sloterdijk, 2000), é claro temos outras possibilidades, as variadas teses ideológicas que muitos apostam ou uma terceira excluída: a fraternidade planetária e uma via solidária.

Assim como a retomada ontológica propôs uma lógica e uma epistemologia nova, que vem da epoché (colocar todos conceitos entre parêntesis) husserliana, junto a uma teologia nova, esta sim trinitária, onde existe uma terceira pessoa na Trindade, que é o Espírito Santo, mas não é simples.

O teólogo cristão e católico Karl Rahner escrevia sobre o “esquecimento trinitário” (Rahner, 1961), mesmo antes do Concílio Vaticano II (1962-1965), que marcou uma virada no pensamento católico, primeiro concílio ecumênico que gerou algumas polêmicas e que até hoje não é bem aplicado,

O Concílio Vaticano II marcou uma profunda mudança na relação da igreja com a sociedade, devia abrir uma nova perspectiva da participação dos popular (dos leigos), uma nova visão da missão da igreja e em especial apresentação da atualização e inserção da igreja no seu tempo com vários aspectos litúrgicos e pastorais.

Muitos cristãos em geral entendem bem o Pai e o Filho, mas o Espírito Santo é um mistério, não síntese e nem apenas a relação com Deus Pai (Aquele que ninguém viu) e nem o Jesus (O Deus visível), o Deus vivo, histórico, mas sem deixar de divino e o Espírito Santo.

A teologia clássica tratava o “mistério” da Trindade com a ideia de uma “substância espiritual absoluta, infinita, única e eterna”, assim Deus seria uma única substância, essência ou natureza, explicado como três subsistemas e pessoas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo, nestas ideias do sistema hegeliano (e de Feuerbach) se encaixam bem.

Já a compreensão do Ser como ato e potência (própria de Tomás de Aquino), e potência assemelha-se ao virtual, coloca as pessoas divinas como relação e se integram numa nova síntese que vê Deus como comunhão pericorética* de amor, teólogos de diferentes tendências como von Balthasar, Rahner e Kasper caminharam nesta direção e a questão ontológica é um viés comum. (* mais que relacionamento, interpenetração)

 O Concílio Vaticano segunda já refletia já a virada de uma perspectiva metafísica de uma teologia que prioriza uma compreensão mais histórica, fenomenológica, hermenêutica e existencial da realidade, mais em sintonia com a cosmovisão e a cultura atual. 

A compreensão do ser como ato (tão própria do Aquinate) e das pessoas divinas como relação, se integram numa nova síntese que entende Deus como comunhão pericorética de amor.

A compreensão por outro lado de potência como virtus, possibilidade virtuosa do Amor que é essencial para entender que o pecado é não-amor e não mera oposição maniqueísta do mal.

RAHNER, K. Advertencias sobre el tratado dogmático “de Trinitate”. In: Escritos de Telogía IV, Madrid: Taurus, 1961.

 

O que é espírito e transcendência hegelianos

27 mai

Já fizemos vários posts para explicar que a transcendência de Kant nada mais é que a separação de sujeitos e objetos, porém Hegel completa e sistematiza toda esta filosofia em Fenomenologia do Espírito, obra que influenciou profundamente as filosofias do direito, da história, da estética e da religião, o próprio Marx e muitas correntes que daí derivam, não escaparam disto.

Também já fizemos posts sobre a questão da consciência histórica de Gadamer, crítica as ideias principalmente de Dilthey sobre a história, agora analisemos o “espírito” em Hegel.

Primeiro como o nome diz é uma fenomenologia, portanto não um conjunto de fatos ou mesmo de realidades tangíveis, mas um conjunto de fenômenos colocados sob um certo esquema  (veja ao lado).

Hegel entende a história, a arte, a religião e a própria filosofia como fenômeno objetivo, e como  tal (ou seja, um objeto) está direcionado ao espírito para um autoconhecimento.

Sua capacidade de síntese, fará que sua história da filosofia, com esquemas e elementos específicos sobre a transcendência e a metafísica na filosofia, deem força ao seu pensamento, e a Fenomenologia do Espírito é central para este esquema.

Para entender o que ele pensava como fenômeno, é preciso entender o que ele chama de “consciência natural” que era o que abria caminho para o conhecimento filosófico, e é por ela que vai fazer uma leitura da história da filosofia e assim elaborar o que é conhecimento.

Só para fazer um contraponto, por isso Husserl vai dizer ao contrário, que só existe consciência de “algo”, enquanto Hegel constrói esta categoria como sendo “natural” e nela está a objetividade.

Mas o “natural” de Hegel não é só natural e sim histórico, portanto, sua introdução a um sistema de filosofia, é construído no percurso histórico do pensamento, parece “natural”, mas é sua ideia de filosofia da história.

O que está escondido por trás deste esquema é o que Nietzsche vai chamar de genealogia da moral, mas depois surgiram outras genealogias a viragem linguística a partir de Wittgenstein por exemplo, vai ver os objetos na sua relação com os outros: “também não podemos pensar em nenhum objeto fora da possibilidade de sua ligação com outros” (Wittgenstein, Tractatus, 2.0121).

Para entender o que é Espírito em Hegel, e que influencia profundamente as concepções de artes, história e religião de hoje, são as formas correlacionadas a uma ideia de subjetividade absoluta, portanto “fora” do objeto, e relacionada a ela por um tipo especial de lógica essencial que leve ao conhecimento da realidade, por isto não é um realismo fenomenológico como vê Husserl, está separado da existência na “ontologia” de Hegel (ramo superior do esquema acima).

O espiritual e transcendente em Hegel é “o mais interior, do qual toda a construção do mundo espiritual ascende”, era aquilo que Marx chamava do “céu para a terra” e que ele (Marx) a inverteria, construindo assim uma história da filosofia, e dizia que se tratava de “colocar em ação” a filosofia, porém, a separação de sujeito e objeto permanecerá, assim espiritual é um tipo de Espírito Absoluto da Religião (veja também no esquema).

 

 

 

 

Entre a essência e o Ser

21 mai

Como o dualismo permanece presente hoje, se concebe a essência por analogia ao Ser, e esta também era a doutrina tomista, ela permaneceu como uma onto-teologia até o século XX, foi preciso todo um percurso da fenomenologia para encontro o Outro, o não-Ser não como contradição, que o fim do dualismo entre Ser e essência iniciasse.

A longa discussão do período medieval entre realistas e nominalistas, tinha como base um termo hoje desconhecido que era a quididade, que significa que coisa a coisa é, desde a hylé grega até os modelos modernos da metafísica de Heidegger, onde a coisa que pode ser material ou não, e também o que pensamos sobre ela, na linha de Husserl só existe consciência de algo, ou da coisa.

Mas existiu um filósofo na idade média, Duns Scotto (1266-1308) que não fazia distinção entre a coisa que existe (si est) e o que ela é (quid est), e teologicamente era complicado pois a tese de Tomás de Aquino (1225-1274) era pela analogia, ou seja, o significado de semelhança entre coisas ou fatos (dicionário Houaiss, 2009, p. 117),  e os religiosos sempre apressados cuidado porque no século XX Duns Scotto foi aceito dentro da doutrina cristã católica, tornando—se beato (João Paulo II o declarou).

A sua teoria do conhecimento usava as duas distinções conhecidas distinctio realis (distinção real) e existe entre dois seres da natureza, e a distinctio rationalis (distinção de razão) que se dá entre dois seres, mas na mente do sujeito que conhece, mas rompe o dualismo ao criar uma terceira possibilidade a distinctio formalis (distinção formal) que se dá no ente percebido e não é nem real e nem na mente.

Assim além de seu discípulo William de Ockham, famoso pelo princípio a simplificação chamado Navalha de Ockham, mas de certa forma Descartes, Leibniz, Hobbes e Kant tiveram sua influência.

Porém a recuperação de Duns Scotto é fundamental para superar o dualismo nominalismo/ realismo e a superação do puro realismo pelo hermenêutica filosófica, e assim também o correspondente moderno do nominalismo que é a viragem linguística faz sentido e abre diálogo.

Não é, portanto, a afirmação do realismo nem do nominalismo, mas o fato que podem dialogar dentro de um círculo hermenêutico é que importa, a recuperação filosófica do nominalismo na viragem linguística, e na fé cristã do nominalismo de Duns Scotto não é sua verdade, mas sua importância para o diálogo filosófico.

Em tempos de pandemia seria muito mais importante a fraternidade de socorrer vítimas, que o debate ainda incerto da ciência e das “crenças” que este ou aquele procedimento é certo, em ambientes hostis quem venceu foi a morte, assim dogmáticos e autoritários só atrapalharam.

 

 

O caminho de Emaús: da inteligência ao coração

24 abr

A parte 2 de Como Viver em tempo de crise, é escrita por Patrick Viveret e além de um olhar de admiração pela obra de Morin, o coautor, ele tem um olhar ainda mais generoso sobre a humanidade, apesar da pergunta grave do título do capítulo: O que faremos com a nossa vida?.
Viveret vai ligar a sabedoria ao amor, citando Martin Luther King: “Devemos nos preparar para viver como irmãos e irmãs, ou nos preparar para morrer como imbecis” (p. 55), e a completa com a inteligência emocional “coletiva” (é um diferencial importante) que é não é psicologismo.
O autor afirma “se não tratarmos a relação entre razão e coração, das razões do coração de que falava Pascal, a inteligência puramente mental, a famosa ciência sem consciência que não passa de ´ruína da alma’ como dizia Rebelais, pode construir piores monstruosidades” (pag. 55-56).
Afirmava sobre a crise anterior o que é muito mais próprio para a crise atual: “a humanidade corre o risco de acabar prematuramente com sua própria história, mas também pode aproveitar esse momento crucial para viver um salto qualitativo. “(p. 56)
Não podemos olhar para milhões de mortes e dizer, ainda bem que não foi comigo, ou um pouco mais humanamente, não podemos nem chorar os entes perdidos.
Números desfilam friamente sem que autoridades se toquem, serão provavelmente 3 mil mortos no pico da curva em São Paulo, mas podemos pensar em abrir o comércio aos poucos.

Em Wuhan onde a crise começou esperaram não ter nenhuma morte para abrir, mas aqui pensamos que não há como salvar vidas, dizem o custo econômico pode ser alto, mas quanto custa uma vida ? E a imprudência poderá custar mais ainda.
A crise pode ser pior que imaginamos, ontem alguns pacientes de Wuhan voltaram a dar positivo no teste, penso que não sairemos desta crise se não dermos aquilo que Morin disse e Viveret reafirmou: “Só poderemos chegar a isso se enfrentarmos a questão da barbárie interior” (p. 57), aquilo que Peter Sloterijk usou como metáfora falando de co-imunidade, é agora uma personificação, estamos prontos a ajudar o Outro para proteger a nós mesmos ?
Precisamos produzir riquezas mesmo que isto custe vidas, e antes não era exatamente uma parábola e, no entanto, foi assim que aconteceu na história, mas agora é exatamente uma personificação, (figura de linguagem como parábolas e metonímias) que significa dar ao que era “objeto” o atributo do Ser.
A passagem bíblica que Jesus usa a personificação é o caminho de Emaús, quando caminha a noite inteira aparentemente falando metáforas, e estes só descobrirão a personificação ouvindo o coração que finalmenre lhes despertou a inteligência (Lc 24,31-33): “Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frente deles. Então um disse ao outro: “Não estava ardendo o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho, e nos explicava as Escrituras?” Naquela mesma hora, eles se levantaram e voltaram para Jerusalém onde encontraram os Onze reunidos com os outros”, a cegueira fora superada.
Não se trata de uma apologia da religião, apenas pensar que muitas vezes não ouvimos o que nos é dito da maneira mais clara possível, porque a nossa inteligência não está ligada ao coração e vice-versa.

 

A subida ao Divino, como viver na crise

23 abr

É nestes momentos de crise que se descobre a natureza humana de Deus e a divina do homem, mãos que salvam, que socorrem, que se solidarizam e que apontam caminhos impensados, mas onde estará Deus, o que nos diz esta pandemia com tanta gente morrendo.
Edgar Morin e Patrick Viveret escreveram “Como viver em tempo de Crise”, a tradução brasileira é de 2013 e versão original francesa de 2010, não estão portanto falando desta crise, conhecendo Morin e lendo o livro percebemos que é aquela noite do pensamento que falamos (ver post).
Coerentes com nosso pensamento, ele vai de encontro a ambiguidades, e faz logo de início uma comparação entre Pascal e Descartes: “ Pascal traz o senso de ambiguidade para ele, o ser humano traz em si o melhor e o pior. Descartes não, devemos ser Pascalinos“ (pg. 10) e se permitimos o senso religioso também seres pascais, passar da morte para a vida, e viver na crise.
Há um pensamento profundo em Morin, que já expressou de outras formas, que neste livro é mais surpreendente: “Gostaria de propor, a respeito do período histórico que entramos, uma leitura próxima àquela do Apocalipse, no sentido original da expressão (sic), não de catástrofe, mas de revelação (grifo nosso), de um tempo crítico da humanidade consigo mesma, permitindo-lhe trabalhar o essencial” (pg. 34), acusá-lo de religioso seria ignorância e de sem esperança, má leitura.
Chama o modelo da crise que vivemos de DCD, “desregulação, competição desenfreada, deslocamento*”, em nota explicando este último, é a produção manufatureira deslocada de um país para outro, concentrada na China por exemplo, o caso de equipamentos e máscaras necessários para o combate ao corona vírus.
Este modelo com fundamentos econômicos, é chamado por Karl Polanyi de “sociedade de mercado” e que atualmente é chamado por Joseph Stiglitz de “fundamentalismo mercante” (p. 36), os autores dão o diagnóstico da crise: “formado por esta dupla excesso/mal-estar” (p. 40).
Dão ainda dois diagnósticos essenciais e surpreendentes, dizendo que Bin Laden que era muçulmano citava o Satã do Apocalipse para se referir a Roma, e diz “qual é a grande força dos profetas É precisamente dizer que a questão do desumano nos é interior” (p. 58), “A ideia que o mal são os outros nos impede de tratar a própria barbárie interior” (idem).
Parece que ficamos sem saída, mas a resposta dos autores é precisa: “O provável é aquilo que, em determinado lugar e momento, projeta um observador inteligente, dispondo das melhores informações sobre o passado e presente, para o futuro. O provável, portanto, é que caminhamos para o abismo. E, no entanto, sempre houve o elemento improvável na história humana” (p. 21).
Assim tanto a mudança interior, como alguma intervenção “improvável” acontecem na história.
Todo o capítulo 3 do evangelista João é marcado por uma revelação, que se faz ao caminhar com os homens, e mostra como a realidade divina de Jesus Ressuscitado é contextual e adaptada ao mundo, no entanto “aquele que Deus enviou fala a linguagem de Deus” (Jo 3, 34), e é claro que boa parte do discurso religioso não expressa isto, mas apenas a ambiguidade humana, que existe como afirma Morin, mas só é superada pelo improvável, ao aderir a ela há uma nova mudança.
MORIN, Edgar; Viveret, Patrick. Como viver em tempo de crise. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.