Arquivo para setembro, 2024
A guerra latente e o perigo iminente
Não praticamente, em nenhum setor que tenha uma voz suficientemente forte, a ideia de uma paz que não seja a rendição de um dos lados, nem na guerra de Israel contra os grupos extremistas Hezbollah e Hamas, nem na guerra Ucrânia x Rússia, o que existe é retórica de paz.
O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, disse na Onu no sábado passado (28/09) que é um perigo tentar “lutar pela vitória contra uma potência nuclear”, ou seja, que se for preciso usarão armas nucleares, enquanto o primeiro-ministro de Israel disse que “o trabalho ainda não terminou” e “dias desafiadores estão a frente”, são discursos de ódio.
Em Israel o exercito enviou duas brigas para o Norte de Israel e está acionando três batalhões de reserva que parece indicar uma incursão terrestre no Líbano (foto), enquanto a Rússia continua convocando mais soldados, incluindo pessoas de outras países que serão pagas, para ampliar ainda mais o contingente militar do país, tudo indica que não é apenas para a Ucrânia.
A morte do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, em um combate no sul do Líbano, enquanto Netanyahu e Joe Biden dizem que era responsável pelo assassinato de um grande número de israelense e americanos, mas no Irã, no Iêmen e na Palestina foi vista como um “mártir”.
Também a proposta do Brasil e China que inicialmente era apoiada pela Rússia, foi feita uma ressalva pelas autoridades russas que uma retirada russa dos territórios ocupados não leva a paz pelo fato que cidadãos russos que vivem naquela região se sentem ameaçados.
Enfim tanto na retórica quanto nas ações o perigo eminente de uma escalada ainda maior das guerras parece não ceder em nenhum ponto essencial, e isto enfraquece a ONU e as nações que desejam um maior equilíbrio nas relações internacionais entre regimes e culturas que são diferentes, porém que sempre é possível a convivência do ponto de vista do cidadão comum.
Os interesses econômicos por trás destas guerras, e de seus aliados de lado a lado é flagrante, ainda que oculto, então também neste campo é preciso repensar as relações econômicas, sem que isto impliquem na rendição de uma das partes.
A continuidade do discurso e a escalada das guerras nestes pontos mais sensíveis é visível e não abordar estes aspectos oculta verdadeiras saídas possíveis e não favorece a paz.
Verdade, linguagem e método
A compreensão de qualquer fenômeno passa necessariamente por uma linguagem e um método, a linguagem como meio de comunicação do fenômeno e o método como um caminho estratégico que a verdade pode ser alcançada sobre alguma questão.
Verdade dogmáticas e ideológicas conduziram a narrativas e distorções da realidade, mesmo aquelas que passam pelo imaginário, que não é necessariamente uma inverdade, mas muitas vezes uma analógica ou metáfora para dizer a verdade.
A linguagem como “morada do ser” é para a interpretação fenomenológica e ontológica da verdade, isto é, aquela que passa pela questão do “ser” do “ente” é a base para comunicar a verdade entre fonte e destino, porém não se pode confundi-la com emissor e receptor.
Quando temos um “ente” como meio de comunicação, seja ele analógico ou digital (outra confusão é dar categoria ontológica ao analógico) significa que ele está restrito a ser apenas “um meio” de comunicação, assim ele torna a mensagem codificada em um sinal, por exemplo uma onda acústica analógica (radio fm por exemplo) ou um sinal codificado em zeros e uns, neste caso digital, ambos não podem ser interpretados como “morada do ser”, mas apenas código, isto é, algo mais propício ao ente do que ao ser.
O sinal com vista a diminuição do ruído e autenticidade da mensagem que foi codificada não deve ser confundido com a própria mensagem já que ela provém do Ser e carrega em si não uma lógica, mas uma onto-lógica, ou seja, algo originariamente do Ser.
É nesta ontologia que podemos entender o significado de diálogo, mesmo entre mensagens opostas logicamente, já que ontologicamente elas podem compartilhar uma fusão de horizontes e podem a partir daí criar um método, desenvolvido por Heidegger e formalizado por Hans-Georg Gadamer.
A explicação do círculo hermenêutico em Gadamer é expressa como:
“O círculo não deve ser degradado a círculo vicioso, mesmo que este seja tolerado. Nele vela uma possibilidade positiva do conhecimento mais originário, que, evidentemente, só será compreendido de modo adequado quando a interpretação compreender que sua tarefa primeira, constante e última permanece sendo a de não receber de antemão, por meio de uma ‘feliz ideia’ ou por meio de conceitos populares, nem a posição prévia, nem a visão prévia, mas em assegurar o tema científico na elaboração desses conceitos a partir da coisa mesma”. (GADAMER, 1998, p. 401).
Por isto os estudos de Gadamer, intitulado de Hermenêutica Filosófica, perpassam muitos aspectos peculiares de estudos e escritos, com uma contribuição além da própria Filosofia, da Linguística e, de certo modo, da hermenêutica teológica, de onde partiu os trabalhos e estudos de Schleiermacher que falava de “esferas” e “círculos” em seus estudos sobre hermenêutica.
Somente nesta ideia da fusão de horizontes, de ir além do círculo vicioso é que podemos entender um raciocínio inverso ao de um contra todos, e entender a dialogia entre opostos, “quem não está contra nós, é a nosso favor” (Mc 9,40), diz o evangelista ao explicar o mal menor, é melhor cortar a mão ou o pé que o leva a pecar, do que ser condenado com ele.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
A narrativa e a verdade
Não são apenas alguns pensadores como Edgar Morin, Peter Sloterdijk e Mario Bunge que reclamam da dificuldade de elaborar o pensamento de modo verdadeiro, os fundamentos se perderam e as narrativas dominam até mesmo áreas como a ciência e a religião, sem falar da política que é o reino das narrativas, a paz, o clima e a seguridade social são parte da retórica.
No livro de Byung-Chul Han “A crise da narração” ele recupera um ensaio do escritor húngaro Peter Nadás “Betsutsame Ortsbestimmung” (penso que não há tradução para o português, mas Han traduziu o título como Localização pendente), narra a história de uma aldeia onde ao centro se encontra uma enorme pereira selvagem.
Nadás descreve esta aldeia como uma comunidade narrativa que se reúne ao redor da pereira “nas noites quentes de verão” para uma “contemplação ritual” e ratifica o “conteúdo coletivo da consciência” (Han, 2023, p. 121), nela não há “opinião sobre isso ou aquilo, mas narram ininterruptamente uma única grande história” (Há, p. 122) e onde se costumava “cantar baixinho … Hoje já não há mais dessas árvores e o canto da aldeia emudeceu” (Nadás, apud Han, 2023, p. 122).
Acrescenta o filósofo coreano: “Aquela ´contemplação ritual´ que ratifica o conteúdo coletivo da consciência dá lugar ao barulho da comunicação e da informação” (Han, p. 122), “aquele “canto” que sintoniza os moradores da aldeia em uma história, e assim, os une” (Idem).
Aquilo que vivem da comunicação “barulhenta” “não cria nenhuma coesão social, não cria um Nós. Pelo contrário, ela desmantela tanto a solidariedade quanto a empatia” (Han, 2023, p. 123).
A crítica filosófica de Han é clara: “Mas nem todas as narrativas constitutivas de uma comunidade se baseiam na exclusão do Outro, na medida em que existe também uma narrativa inclusiva que não se apega a uma identidade” (Han, 2023, p. 124) e cita até mesmo A paz perpétua de Kant, em que pese todo seu idealismo conservador.
Seu universalismo é claro: “todo ser humano usufrui de hospitalidade irrestrita. Todo ser humano é um cidadão do mundo … Ele [Novalis] imagina uma ´família mundial´ para além da nação e da identidade. Ele eleva a poesia como uma forma de reconciliação e amor” (p. 125).
O autor, apoiado em Novalis, refere-se também a questão da complexidade que contempla o todo: “O indivíduo vive no todo e o todo no indivíduo. É por meio da poesia que se origina a mais alta simpatia e coatividade, a comunicação mais íntima” (Han, 2023, p. 125).
HAN, B.-C. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
Sofistas e o relativismo
A questão política e a polarização atual envolvem um problema milenar: o sofisma, sua origem na Grécia antiga é o que Platão iniciar uma escola de formação de filósofos para criar homens da “polis” que servissem não apenas a governo autoritários, mas as cidades-estados Gregas.
O discurso feito em Teeteto sobre a natureza do conhecimento, escrito em 369 a.C., é onde aparece, ao menos claramente pela primeira vez, explicitamente na Filosofia, o confronto entre verdade e relativismo.
Nele um personagem chamado de “o Estrangeiro de Eléa”, que seria tanto um companheiro de Parmênides quanto de Zenão”, elabora um tema acerca de três figuras importantes na escola platônica: o sofista, o político e o filósofo, porém nele somente não escreveu acerca da definição do filósofo que seria investigada em outros textos, porém o político para ele, por excelência, seria o filósofo, que entre outras coisas deveria ter “Aretê”, ou seja, virtudes.
A razão que há coincidência com o discurso político atual, e esta origem do relativismo, pode ser vista na explicação que ele dá sobre a realidade e a imagem que procuram representar, ambas não são aquilo que representam, no então, claramente, são alguma coisa, por exemplo a imagem de uma casa pode parecer e mostrar muito bem o que é uma casa, sem sê-la.
Assim como as imagens de um cão, se caracteriza por não ser realmente um cão, o conteúdo de um discurso falso caracteriza-se por não ser o que realmente de fato é, ambos dizem algo sobre a verdade, mas são em essência coisas diferentes.
Apesar disto no discurso permanece uma contradição ontológica, como anuncia emblematicamente o Estrangeiro: “tal afirmação supõe ser e não ser”, tese clássica de Parmênides, embora a raiz de seu pensamento seja lógica e não ontológica.
Assim a aparência e a imagem não coincidem com a verdade real, embora possa confundir um espectador pouco atento elas não são a mesma coisa, discerni-las é condição essencial para exercer a verdade, assim podemos não permanecer na verdade ao embarcar em “imagens”.
Há um dito popular, não se sabe quem falou isto pela primeira vez, mas na guerra a primeira coisa que morre é a verdade, e suas consequências mais que trágicas, levam a uma crise do que realmente somos como humanidade e com nossos direitos inalienáveis que são roubados.
Enfrentar de fato a questão da miséria
Basta distribuir a renda ou apenas dar um prato de comida, resolve a questão emergencial, mas mantém a pobreza latente e não propicia a ascensão social e estabilidade econômica.
A questão da miséria é um problema complexo embora sua consequência seja facilmente vista, porém, a elevação da qualidade de vida e a sobrevivência digna de milhões de pessoas deve ser encarada de modo além do emergencial, ainda que este seja necessário.
Entre as causas poucas vezes analisadas da pobreza estão a corrupção, as guerras, a infraestrutura precária e a dificuldade em gerar empregos e cria-los com salários dignos, assim a informalidade e até mesmo os crimes e mercados ilegais (até de drogas) são consequências.
As consequências são conhecidas: fome, desemprego, falta de moradia digna, ausência de saneamento básico, violência, propagação de doenças epidêmicas, discriminação e vulnerabilidade social.
Combater um dos aspectos ignorando outros, por exemplo, a questão do saneamento básico é crucial e não é facilmente visível para muitos gestores públicos que veem apenas aspectos que dão mais visibilidade e ajudam a melhorar a visão dos gestores, que no Brasil é sempre crítica.
A questão da distribuição de renda é um aspecto fundamental, mas não se trata de resolver só o emergencial, criar possibilidades de mobilidade social entre os níveis de renda mais baixos é um fator essencial para erradicação da pobreza, assim como promover aspectos de escolaridade e criação de empregos.
O problema global a ser enfrentado é a emigração, não só a fome e a pobreza, mas principalmente as guerras e perseguições a determinados grupos étnicos é um fator muito grave e pode escalar em uma guerra mundial, era visível isto no final das duas grandes guerras.
Programas públicos claros não apenas que resolva o problema emergencial, que é o visível para a população, mas de médio e longo prazo são essenciais, a pouca mobilidade social e a dificuldade das camadas de mais baixa renda de acesso a bens e serviços públicos é ainda um fator crucial em muitos países do mundo, e a miséria extrema persiste, apesar de programas e política, onde elas fracassaram foram exatamente onde a propaganda era mais forte e as medida menos efetivas.
Mudar a retórica do assistencialismo e da distribuição das sobras sociais é fundamental, é preciso devolver a dignidade a toda pessoa humana, superando não só o preconceito, mas principalmente o modo de encarar estas pessoas que tem a mesma dignidade das outras.
Perigo real, semana decisiva para a paz
Diversas são as articulações para a paz, porém as guerras vão revelando seus aspectos mais sombrios, a morte de Ibrahim Akil, um dos chefes das operações militares do Hezbollah, fez a organização declarar “guerra indefinida” contra Israel.
Neste domingo trocaram fogo pesado, com aviões de guerra israelenses realizando o mais intenso bombardeio em quase um ano de conflito no sul do Líbano, o Hezbollah por seu lado disparou foguetes em direção ao norte de Israel.
As negociações de paz assim ficam paralisadas, ainda que o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin tenha trocado seis telefonemas na semana com o colega israelense, ele mostra uma preocupação séria com a escalada do conflito, pedindo solução diplomática.
Na Ucrânia, as articulações para a paz mostram também neste aspecto uma polarização, Brasil e China tentam dialogar com Putin, enquanto países da Europa e os Estados Unidos tentam o diálogo mais favorável as pretensões de paz da Ucrânia.
O que mais assusta são as ameaças nucleares, a Rússia sempre lembra o assunto e agora a Ucrânia diz que os russos também planejam ataques a usinas nucleares cujos efeitos seriam aterrorizantes, basta lembrar Chernobyl, claro neste caso foi um acidente, mas os efeitos deveriam estes dois países que vieram aquele momento, jamais desejarem repeti-lo.
Em 26 de abril de 1986, o reator número 4 da central nuclear de Chernobyl, então republica soviética ligada a Moscou, sofreu um colapso catastrófico que fez o governo evacuar 30 km em torno da usina, cuja área é inabitável até hoje, a temperatura chegou a 2.600 o. C, 4 vezes maior que a lava de um vulcão.
As fontes indicam de 2 a 50 pessoas morreram na explosão, dezenas de outras pessoas contraíram doenças graves provocadas pela radiação, algumas das quais morreram mais tarde. Entre 50 e 185 milhões de curies (unidade de atividade de radiação) de radionuclídeos (formas radioativas de elementos químicos) escaparam para a atmosfera – várias vezes mais radioatividade do que a criada pelas bombas atómicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japão (na foto monumento aos trabalhadores que combateram o incêndio de Chernobyl).
Os reatores modernos incorporam mais dispositivos de segurança para evitar um desastre como Chernobyl, porém no caso de um “acidente” de guerra o controle pode ser difícil.
Espera-se que seja possível um retrocesso nas guerras, o fato que existem países empenhados, ainda que polarizados, é um alento e também aqueles que veem a crise civilizatória que iriam desencadear pode servir para que mentes inflamadas pelo ódio possam arrefecer sua ira.
Por uma ontologia política
Diversos autores falam do que é poder, desde os clássicos contratualistas (Hobbes, Locke e Rousseau), passando pelas leituras modernas de Marx, Weber, Tocqueville, Bobbio e Norbert Elias, até Byung-Chul Han (psicopolítica) e Foucault (biopolítica), mas Hannah Arendt foi além ao vislumbrar uma ontologia política e escapa completamente do pensamento hegeliano.
Em seu livro do final dos anos 1960 (e portanto, a maturidade de Arendt), ela critica a “nova esquerda” que pensava em lutar contra um mundo ameaçado pela destruição nuclear e dominado pelas grandes administrações estatais e elas seriam responsáveis pela violência e em última análise a essência de todo poder, escreve sobre as origens deste equívoco:
“Se nos voltarmos para as discussões do fenômeno do poder, rapidamente percebemos existir um consenso entre os teóricos da política, da esquerda à direita, no sentido de que a violência é tão-somente a mais flagrante manifestação do poder. ‘Toda política é uma luta pelo poder; a forma básica do poder é a violência’, disse C. Wright Mills, fazendo eco, por assim dizer, à definição de Max Weber, do Estado como o ‘domínio do homem pelo homem baseado nos meios da violência legítima, quer dizer, supostamente legítima’ “. (Arendt, 2001, p. 31)
Para a autora, seguindo a tradição greco-romana, este conceito fundamenta o poder no consentimento e não na violência, assim numa relação de mando e obediência.
A autora constata que este conceito é “um triste reflexo do atual estado da ciência política” (p. 36) e uma identificação natural da tradicional entre visão de poder e violência, já que “poder, vigor, força, autoridade e violência seriam simples palavras para indicar os meios em função dos quais o homem domina o homem; são tomados por sinônimo porque têm a mesma função” (idem) e não raro se observa esta “virilidade” desde a Grécia até hoje.
Para a autora “o poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido. Quando dizemos que alguém está ‘no poder’, na realidade nos referimos ao fato de que ele foi empossado por um certo número de pessoas para agir em seu nome” (p.36).
Para a autora é preciso rever estes conceitos: poder, vigor, força, autoridade e violência, uma vez que “violência não identificaria qualquer ato coativo, mas apenas aquele que opera, no caso das relações sociais, sobre o corpo físico do oponente, matando-o, violando-o, enfim, parece descrever apenas o uso efetivo dos implementos” (pg. 37) e assim a guerra.
Arendt fala de “isonomia” onde Chul Han fala de “simetria”, conceitos parecidos, e assim o poder é de fato aquele que “emerge onde quer que as pessoas se unam e ajam em concerto, mas sua legitimidade deriva mais do estar junto inicial do que de qualquer ação que então possa seguir-se” (p. 41, com destaque feito no meu texto).
Assim é preciso uma ação de “unidade”, de “serviço” e na melhor das hipóteses como aquele que serve à comunidade e não o que e serve dela, e para isto precisará sempre da violência.
ARENDT, H. Poder e violência Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001.
A diferença do Amor divino
É como no dia-a-dia pela secularização ou por descrença colocar o Amor em um patamar meramente humano, a leitura que Hannah Arendt faz de Santo Agostinho em sua tese de doutorado, permanece entre estas duas interpretações o Amor humano e o Divino.
Para analisar isto, Arendt qualquer interpreta a obra de Agostinho governada por três princípios que aparecem sem aparente contradição, ele aumentou sua rigidez dogmática de Agostinho na medida em que o cristianismo se insere em seu pensamento, esta consiste de sua da passagem do pensamento pré-teológico, filosófico, para o pensamento teológico, conforme a autora.
Assim a primeira parte da tese da autora, intitulada o “Amor como desejo: o futuro antecipado”, ela aborda o amor dentro de uma perspectiva filosófica de continuidade do pensamento helênico, em que o amor é visto como uma disposição sempre movida pela falta, por algo que não se possui, mas que se espera ter, como meio de alcançar a felicidade, assim o desejo é algo ainda não alcançado enquanto o Amor é o desejo obtido, e isto é filosófico.
Estes dois tipos de Amor recebem em Agostinho dois nomes: a caritas e a cupiditas, diferem no amor pelo objeto que amam, “porém, tanto o amor certo quanto o errado (caritas e cupiditas) possuem isto em comum – ânsia desejosa, quer dizer, appetitus”, escreveu a autora.
Caritas é o amor puro, verdadeiro, porque deseja a Deus, a eternidade e o futuro absoluto, enquanto a cupiditas ama o mundo, as coisas do mundo, aqui é pré-teológico, porque a caridade não é apenas um amor passageiro, ou desejo de um bem passageiro, mas do eterno.
Seja religioso ou não, estamos entre o desejo e a posse, depois que obtemos o objeto desejado em geral, e usufruindo do prazer desta posso a cupiditas passa e ficará algo eterno se nela houver a caritas, isto é um Amor Eterno, que dá uma posse eterna e então não passa.
Assim o homem que tem esta busca, deve se recolher em seu interior, e dentro de si, se isolando do mundo, penetra na “quaestio” agostiniana, o fio condutor que Arendt persegue: “pois quanto mais ele se retirava para dentro de si e recolhia a si mesmo na dispersão e da distração do mundo, mais ele se tornava uma ´uma questão para si mesmo´”, escreveu a autora.
Toda filosofia tem uma questão básica, e a de Agostinho se torna teológica: “O que eu amo, quando amo o meu Deus?” (Confissões X, 7, 11 apud Arendt p. 25), ainda que seja “no mundo”.
Assim a segunda parte de sua tese recebe o nome “e “Criatura e Criador: o passado rememorado”, no livro X de Confissões. “A memória, então, abre o caminho para um passado transmundano como a fonte original da própria noção de vida feliz” escreveu a autora sobre Agostinho.
Ao se propor ao relacionamento com Criador, o homem não se perde, e sim se encontra e isto é diferente de todo tipo de apego mundano, o deus do dinheiro, do consumo ou do desejo.
ARENDT, H. O conceito de amor em santo Agostinho. Tradução de Alberto Pereira Dinis. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
Hannah Arendt e o Amor Mundi
Hannah Arendt foi, a nosso ver, instigada pelo seu drama existencial, e dentro dele, a tomar a questão do Amor, desde cedo com uma questão essencial, escreveu Safransky:
“Em começos de 1924 chegara a Marburg uma estudante judia de 18 anos querendo estudar com Bultmann e Heidegger. É Hannah Arendt. Vinha de uma boa família judia assimilada de Könisberg, onde crescera. Aos 14 anos, sua curiosidade já havia despertado. Leu a Crítica da razão pura, de Kant, dominava grego e latim tão bem que aos 16 anos fundou um círculo de estudos e leitura de literatura antiga. Antes mesmo de suas provas finais no liceu de Könisberg, passou uma temporada em Berlim, onde leu Heidegger e tomou aulas com Romano Guardini (especialista em Kierkegaard)”, escreveu Safranski sobre Hannah.
Ainda adolescente, a pensadora que já havia formado um círculo de filosofia ainda adolescente, escreve suas primeiras preocupações, Hannah Arendt redige o poema Consolo (Trost):
“As horas correm, Die Stunden verrinnen / Os dias passam, Die Tage vergehen, / Resta uma graça Es bleibt ein Gewinnen / O simples persistir. Das blosse Bestehen.” (Young-Bruehl, Hannah Arendt, Por amor ao mundo, p. 53).
Numa carta de Heidegger a ela, “E o que podemos fazer além de nos abrirmos, além de deixarmos ser o que é? Deixar ser de tal modo que o amor se torne para nós uma alegria pura/ casta (reine Freude) e a nascente de cada novo dia de vida. Ser elevado ao que somos. De qualquer maneira, seria possível que um de nós ‘dissesse’ e se abrisse ao outro. Só podemos dizer, contudo, que o mundo não é mais meu nem seu, mas nosso”.
Pensar o mundo como “nosso” e não meu é uma necessidade de nosso tempo, um passo essencial para nossos problemas mundiais, ao ler A tese de doutorado de Hannah “O conceito de amor em Santo Agostinho” (ARENDT, 1998), entendemos que houve uma tentativa de ultrapassar o existencial e chegar à essência do amor e a busca do amor mundi.
Ao ler Agostinho de Hipona, objeto de sua tese de doutorado, ela observa a separação entre Amor e gozo: “essa alegria está em amar o amor sem inscrevê-lo em algo particular e passageiro”, e então enfatiza: “O amor espera encontrar com a eternidade a sua própria realização” (Arendt, O conceito de amor em Santo Agostinho, p. 35).
Apesar desta referência à “eternidade” Arendt não chega àquela virtude teologal: amor, que deve ser conjugada de modo “existencial” como fé e esperança, já que na eternidade, para os que creem, a fé e a esperança já estarão em plenitude no Amor.
ARENDT, H. O conceito de amor em santo Agostinho. Tradução de Alberto Pereira Dinis. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
SAFRANSKI, R. Heidegger, um mestre da Alemanha entre o bem e o mal (biografia). Tradução de Lya Luft. Apresentação de Ernildo Stein. São Paulo: Geração Editorial, 2000.
Poder, punir e psicopolítica
Após Vigiar e Punir, Foucault se deu conta que a sociedade disciplinar não era exatamente o que refletia a sociedade moderna, está dito assim no livro sobre Psicopolítica de Byung-Chul Han, “o problema, contudo, foi que permaneceu ligado tanto ao conceito de população quanto ao de biopolítica [citando Foucault] “se depois que soubermos o que era esse regime governamental chamado liberalismo é que poderemos, parece-me apreender o que é biopolítica” (Han, 2020, p. 37).
Byung-Chul descobre que “a técnica disciplinar passa da esfera corpórea àquela mental. O termo inglês industry (indústria) significa também “esforço”. A locução industrial school pode significar casa de correção. Bentham também sugere que seu pan-óptico melhoraria moralmente os internos. Conteúdo, a psique não está no foco do poder disciplinar” (Han, 2020, pg. 35).
O ensaísta coreano-alemão desenvolve todos os pressupostos desenvolvidos por Foucault para realizar a passagem da biopolítica à psicopolítica, a qual tem razão, porem está totalmente vinculada a ideia que é o princípio neoliberal e não o hegeliano que estabelece essa lógica de poder, ainda que tanto no livro O que é poder quanto no livro No enxame, examine outros aspectos que vão da tecnologia ao comportamento humano, por exemplo, no ensaio No enxame, ele afirma que a única forma de poder simétrica é o respeito.
De modo mais analítico não deixa de considerar a filosofia idealista também dentro de um aspecto comportamental:
“Como na relação de conhecimento (Kant), não existe continuidade do Ego, sem o Alter, como ele atesta, ao denotar que, o poder permite ao ego ser no outro por si mesmo. Ele gera uma continuidade do self. O ego realiza no alter suas decisões. É desse modo que o ego continua no alter. O poder proporciona ao ego espaços que são seus, nos quais, apesar da presença do outro, ele pode estar em si mesmo.” (HAN, 2019, p. 11).
Assim é preciso escapar dos conceitos egoístas, exclusivistas para penetrar num nível de alter para realizar plenamente nossos sentimentos e decisões, não é um esforço do self nem do poder egocêntrico que atingimos este estado de paz e felicidade tão desejados.
Assim egos inflamados, senhores que se apossam do poder para dominar os outros não são capazes de criar uma política saudável que contemple toda a sociedade e quiçá toda a sociedade, por que não é possível viver em harmonia sem respeitar a diversidade, a diferença enfim o Outro.
Todos regimes totalitários caminham para a guerra porque precisam eliminar o Outro, o diferente e a voz de quem vê o mundo sob outro prisma.
HAN, Byung-Chul. A psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas do poder, Petrópolis: Vozes, 2020.
HAN, Byung-Chul. O que é Poder? Tradução de Gabriel Salvi Philipson. Petrópolis: Vozes, 2019.