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Arquivo para setembro, 2024

Tensão máxima entre OTAN e Rússia

16 set

Acusações de agressões diretas entre o Ocidente e a Rússia chegaram a um limite perigoso.

As tensões em torno da guerra no leste europeu chegaram a um limite máximo, o primeiro-ministro inglês Keir Starmer e o presidente dos EUA Joe Biden estariam conversando sobre a permissão de Kiev utilizar misseis de longo alcance ATACMS americanos e Storm Shadow inglês em alvo interno da Rússia, sendo o governo russo isto já estaria acordado.

Por outro lado China e Rússia realizaram exercícios militares conjuntos que foram chamados de “Joint SEa-2024” que o Japão e países do oriente veem com desconfiança, além de Taiwan e as ilhas que são conflitos entre Japão e Rússia (ilhas Sacalina e Curilas) e China e Filipinas (Ilhas Spratlye e o Atol de Scarborough), porém o principal conflito é de mercados com o Ocidente.

A Rússia tem usado drones do Irã no confronto com a Ucrânia, e isto fortalece o elo com o mundo muçulmano, enquanto o apoio a Israel de França e EUA fortalecem a aliança da OTAN.

O Brasil e a China haviam proposto uma proposta de paz que seria “congelar as fronteiras atuais” num cessar fogo, porém isto se referia a maio, agora o avanço dos ucranianos em território russo muda este cenário, e não fica claro qual é a proposta de fato, porém o presidente da Ucrânia Zelensky já havia rechaçado a proposta, se dizendo não consultado.

O cenário é grave porque o simples ataque a território russo de mísseis de longo alcance será considerado uma agressão da OTAN, uma vez que países do ocidente ofereceram armas e deram um aval, por outro lado as forças da OTAN preparam uma possível retaliação.

Na frente do Oriente Médio, conforme explicando quase com os mesmos aliados e inimigos, também o clima é de hostilidades e um acordo parece estar cada vez mais longe.

Um alto comandante do Hamas, Oussama Hamdane, em entrevista à AFP acusando os Estados Unidos de não exercer pressão suficiente para Israel buscar um acordo de cessar-fogo, e afirma que ao contrário “está a tentar justificar a evasão do lado israelita a qualquer compromisso”, e a força política americana seria capaz de levar o Oriente Médio a uma esperança de paz num conflito que ultrapassou limites humanitários.

Restam esperanças, vozes que apelam para a serenidade e o bom senso, organismos e entidades diversas que procuram honestamente buscar uma paz razoável e duradoura.

 

A alegria, o sacrifício e a dor

13 set

A dor faz parte da realidade humana, e assim nenhuma alegria é perene se não entende o sacrifício, na etimologia da palavra “ofício sagrado”, não é exatamente a dor, conforme descreve Byung-Chul Han em A sociedade paliativa: a dor hoje, a dor sem sentido, é  a “aflição corporal” a dor se coisificou, perdeu um sentido ontológico e de certa forma “escatológico”, “a dor sem sentido é possível apenas em uma vida nua esvaziada de sentido, que não narra mais.” (Han, 2021, p. 46).

Han cita autores da literatura como Paul Valéry, para quem em seu livro o personagem Monsieur Teste “Se cala em vista da dor. A dor lhe rouba a fala” (Han, 2021, p. 43), e também Freud, para quem “a dor é um sintoma que indica um bloqueio na história de uma pessoa. O paciente, por causa de seu bloqueio, não está em condições de avançar na história” (p. 45).

É com a mística cristão Teresa d´Ávila, como uma espécie de contrafigura da dor, “nela a dor é extremamente eloquente. Com a dor começa a narrativa. A narrativa cristã verbaliza a dor e transforma também o corpo da mística em um palco … aprofunda a relação com Deus … produz intimidade, uma intensidade” (p. 44), para quem não sabe foi com sua leitura que a filósofa Edith Stein, discípula de Husserl como Heidegger, se converte ao ler Teresa cristianismo, não por acaso receberá o nome novo Teresa Benedita da Cruz.

O sacrifício é a arte de viver de modo alegre a dor, claro é equívoco pensar e desejar a dor, se ela vem porém, e algum dia virá, ela pode ressignificar como “ofício sagrado” oferecido, Byung-Chul Han escreveu sobre ele: “O sofrimento não é um sintoma, nem é um diagnóstico, mas uma experiência humana muito complexa”, só penetraram nele grandes místicos.

No evangelho de Marcos (Mc 9,31), Jesus choca os discípulos ensinando em segredo, E dizia-lhes: “O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão. Mas, três dias após sua morte, ele ressuscitará”, e depois nega toda forma de poder humano: “quer quiser ser o primeiro seja o servo de todos” e por último ensina a simplicidade das crianças: “quem acolher uma destas crianças é a mim que acolhe”, é diferente do que pensam hoje.

Compreender a dor, a lógica invertida de poder e a simplicidade e inocência das crianças é uma lógica distante numa civilização em crise, hedonista, autoritária e cheia de malícia.

HAN, BYUNG-CHUL. A Sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado, Petrópolis: ed. Vozes, 2021.

 

Assimetrias, poder e sociabilidade

12 set

O ensaísta coreano-alemão Byung-Chul Han, em seu livro No enxame, ressalta que somente o respeito é simétrico, as diversas formas de comunicação e poder são assimétricas, porém isto levado ao limite causam ódios, desprezos e guerras.

Jacques Rancière que escreveu “Ódio a democracia”, ressalta que este tema tomou contornos dramáticos atualmente, mas já existem na literatura: “ O autor ressalta que a rejeição à democracia não é novidade, no entanto apresenta novos contornos: 

Seus porta-vozes habitam todos os países que se declaram não apenas Estados democráticos, mas democracia tout court. Nenhum reivindica uma democracia mais real. Ao contrário, todos dizem que ela já é real demais. Nenhum se queixa das instituições que dizem encarnar o poder do povo nem propõe medidas para restringir esse poder.

Relendo a literatura lembra autores que a defendiam: “A mecânica das instituições que encantou os contemporâneos de Montesquieu, Madison, Tocqueville não lhes interessa. É do povo e de seus costumes que eles se queixam, não das instituições do seu poder. Para eles, a democracia não é uma forma de governo corrompido, mas uma crise da civilização que afeta a sociedade e o Estado através dela”, e assim não falamos de “crise civilizatória” ao acaso.

Assim a discussão de mídias e meios influenciando a política existe a séculos, também o fato de difamar adversários através de situações nem sempre verdadeiras ou mesmo descontextualizadas é prática comum para tentar impor uma opinião de modo assimétrico.

O fato atual é que temos um meio mais potente que pode potencializar estas falsidades e as novas mídias não são apenas algoritmos de controle ou mecanismos eficientes de Inteligência Artificial agora novo enfoque tecnológico, o fato que buscar um equilíbrio, uma simetria desde a relação pessoal até o poder.

Não se pode aplicar as leis unilateralmente, ou mesmo, fazê-las ao sabor de situações políticas, elas devem valer para todos e se mudarem devem seguir um rito e as instituições apropriadas para isto, atropelar os poderes, antecipar processos ou fazer ritos sumários são abusos do poder.

Assim começamos com o respeito a opinião, ao diálogo, ao diferente e chegamos ao exercício do poder com moderação e o máximo de equidade, mesmo que forças contrárias enfrentem o discurso contraditório, é preciso fazê-lo no âmbito da legalidade e da legitimidade.

No nível pessoal superar empasses, rusgas e diferenças pessoais com parcimônia e respeito ajudam o equilíbrio das relações sociais, ainda que muitas vezes para um lado beire a ofensa.

Não é uma atitude heroica, é uma defesa do convívio, da tolerância e da paz social.

RANCIÈRE, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014. 

 

A alegria em meio à crise

11 set

É possível manter a alegria em meio a crise, dificuldades econômicas e guerras que nos ameaçam ? Não se trata de ingenuidade ou mera alienação, outros preferem pensar em manter seus bens essenciais: alimentação, saúde e moradia segura.

Byung-Chul teoriza que apesar da “diferença” entre Derridá e Heidegger (vejam os posts sobre o livro do autor sobre O coração de Heidegger) há uma afinidade estrutural na visão de luto dos dois, está caracteriza pela renúncia da autonomia do sujeito em Derrida: “Por mais narcisista que nossa especulação subjetiva siga sendo, ela não pode mais se fechar a esse olhar, diante do qual nós mesmos nos mostramos no momento em que o convertemos em nosso luto ou podemos desistir dele [faire de lui notre dueil], fazendo nosso luto, fazendo de nós mesmos o luto por nós mesmos, quero dizer, luto pela perda de nossa autonomia, por tudo que nos fez a nós mesmos a medida de nós mesmos” (Han, p. 430 citando o texto de Derridá “Krafter der Trauer”, fortalecedor da dor), isto é, ambos tem em comum uma visão de renúncia a autonomia do sujeito, o “eu” do idealismo.

Aqui o importante é não deixar o luto trabalhar (lembremos o conceito já visto nos posts do “luto do trabalho”) ele é substituído em Derridá por um jogo do luto: “contudo quanto mais alegre a alegria tanto mais pura a tristeza que nela dorme. Quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria …” (Han, pg. 430-431), mas o luto de Heidegger, explica Han, não mata a morte, tentar matá-la resulta em algo ainda pior: “o querer ressuscitar, ultrapassar violenta e ativamente o limite da morte só os arrastaria (os deuses) para uma proximidade falsa e não divina e traria a morte em vez nossa vida” (Han, pg. 431-432 citando Heidegger).

Heidegger explica que é “não é um sintoma que posa ser eliminado pela contabilidade psicoeconômica. Ele não tem um traço deficitário que implique o trabalho (de luto).”.

Este “retirado” ou “poupado” para o qual bate o coração “santo e enlutado” de Heidegger não é submetido à economia, este “poupado” não se pode gastar nem capitalizar, é portanto aquele  que está e caracteriza a renúncia, Han não exemplifica, mas podemos pensar em ajuda humanitária em desastres e guerras, já que vai caracterizar a identidade de renúncia e agradecimento como concebível fora da economia, usando termos heideggerianos “suportar pesarosamente a necessidade de renunciar” e promete a “impensável doação”.

Diz uma frase profunda e sábia de Heidegger, a renúncia é a “forma mais elevada de posse”, parece contrário, mas só temos de fato aquilo que podemos dar pois do contrário é mercadoria de troca, e mais ainda renúncia se torna agradecimento e “dever de agradecimento”, esta dor aumenta aprofundando se torna alegria: “quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria que nela repousa”. (pg. 433), mas não se torna nem sublimação, que nos obriga “trabalhar”, pois é a “inibição de todo rendimento” e a “consciência do vazio e da pobreza do mundo”.

Elogio da miséria alguém poderia pensar, não é um elogio a alegria moderada e contínua, diferente da euforia e êxtase que é seguida de depressão, “a falta do divino acarreta o luto, remonta a um obstinado esquecimento do ser, no qual Heidegger inscreve o divino” (Han, p. 433-434), mas certamente não é ainda o divino bíblico, mas cerca-o.

A recompensa e a alegria do Divino inscrito no ser, é aquela que renuncia e doa, mas sabe que haverá recompensa de receber cem vezes mais não em bens, mas em alegria.

HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

O que é a crise do idealismo

10 set

O cenário do envolvimento mundial nas guerras é um cenário difícil, é preciso entender o que está por trás, antes tempos um confronto cotidiano entre mentes, almas e interesses econômicos que se digladiam diariamente.

Tratam no fundo de uma defesa da “sociedade livre” ou da defesa de uma “sociedade liberta do capitalismo” sem que a origem destes pensamentos e modelos sejam analisados a fundo.

Refletem a crise do pensamento contemporâneo que não é apenas filosófica, religiosa ou política, ela e uma perda de fundamentos do que é o humano, a natureza e a própria ciência.

A visão de Sloterdijk expressa em sua esferologia no volume I Bolhas, ele mostra que o tanto o fenómeno onto como antropológico são mais essenciais que a a relação entre sujeito e objeto, pois precedem a ela a experiência espacial do Ser-em (ainda que não seja exatamente o que Heideger chamou de In-Sein), esta é a principal crítica ao idealismo contemporâneo.

No campo religioso (e pode-se estender ao pensamento), o ensaísta Byung-Chul Han, reflete que o “pathos da ação, bloqueia o acesso à religião. A ação não faz parte da experiência religiosa. Em Sobre a religião Scheleiermacher eleva a intuição à essência da religião e a contrapõe a ação” (Han, Vita Contemplativa, 2023, p. 154) vale lembrar que Scheleiermacher reintroduziu a hermenêutica como método e influenciou a fenomenologia moderna.

Disse textualmente (citado por Han) Scheleiermacher afirma em Sobre a religião: “sua essência não é nem pensar nem agir, mas a intuição e sentimento. Ela quer intuir o universo, […] ela quer escutá-lo devotamente, ela quer apreendê-lo em sua passividade infantil e ser plenificada por suas influências imediatas” (apud Han, p. 154), e afirma também “toda atividade em uma intuição admirada do infinito” e afirma Han: “quem age tem um objetivo diante dos olhos e perde o todo de vista. E o pensar dirige sua atenção a apenas um objeto. Somente a intuição e o sentimento têm acesso ao universo, a saber, o ente em sua totalidade” (Han, 154, idem).

Esse desprezo pelo ente em sua totalidade, tomando apenas seus aspectos sociais particulares como os econômicos, os étnicos ou mesmo os religiosos é aquilo que Heidegger chamou de esquecimento do Ser, ainda que os gregos tenham trabalhado aspectos ontológicos.

Porém há duas convicções e diferentes visões do idealismo, ou idealismo de estado em duas propostas, o capitalista e o socialismo, não esquecendo que Marx é também hegeliano, ainda que tenha se nomeado seu grupo como “novos hegelianos”.

E a crise da democracia é uma crise de estado, modelo que foi corrompido por megalopatas e ditadores que pouco ou nada sabem dos interesses e de como vive a população simples.

A guerra atual é a crise deste modelo, ambos dispostos a provar sua superioridade através da imposição bélica, e bem disse o escritor Eduardo Galeano: “nenhuma guerra tem a honestidade de confessar, eu mato para roubar” e mais evidente ainda matam civis inocentes.

 

A crise do pensamento e a guerra

09 set

O cenário do envolvimento mundial nas guerras é um cenário difícil, é preciso entender o que está por trás, antes tempos um confronto cotidiano entre mentes, almas e interesses econômicos que se digladiam diariamente.

Refletem a crise do pensamento contemporâneo que não é apenas filosófica, religiosa ou política, ela e uma perda de fundamentos do que é o humano, a natureza e a própria ciência.

A visão de Sloterdijk expressa em sua esferologia no volume I Bolhas, ele mostra que o tanto o fenómeno onto como antropológico são mais essenciais que a a relação entre sujeito e objeto, pois precedem a ela a experiência espacial do Ser-em (ainda que não seja exatamente o que Heideger chamou de In-Sein), esta é a principal crítica ao idealismo contemporâneo.

No campo religioso (e pode-se estender ao pensamento), o ensaísta Byung-Chul Han, reflete que o “pathos da ação, bloqueia o acesso à religião. A ação não faz parte da experiência religiosa.” (Vita Contemplativa de Byung Chul Han, pg. 154), assim a religião também está em “guerra” cotidiana que leva no extremo a guerra militar.

O ódio que chegou ao Irã e seus grupos aliados e a Israel estão vinculados a esta ideia, e também o fundamentalismo que é diferente da ortodoxia, levam aos extremos da guerra.

Enquanto a ortodoxia proclama o amor e o vínculo ao próximo, a ação leva a guerra e a destruição do diferente, nada é tolerado que não seja semelhante ao “modelo” do ideal ou da ideologia que dele derivou, as ditaduras e opressores proliferam pelo planeta.

A preparação do Irã e de Israel para uma guerra total sem intermediários, e da Otan com a Rússia estão cada vez mais próximas, claro sempre é possível um bom senso e saber que todos perderão, mas a lógica da guerra é sempre alguém perderá mais, e isto constitui a vitória.

A aproximação da Rússia de Kharkiv e a entrada da Ucrânia em território russo demonstra que a guerra é de conquista e assim reduzem a possibilidade de um acordo de paz.

Sempre é possível a esperança e nela consiste a resistência do espírito e o desejo de paz.

 

O céu pode falar

06 set

Sloterdijk supõe o tempo que através dos tempos os homens “fizeram deuses falarem”, assim diz também da “fala” de Jesus, e diz com propriedade histórica: “Por fim, esses que foram invocados em demasia também se deram a conhecer por meio da encarnação pessoal: algumas vezes tomaram a liberdade de recorrer a corpos aparentes que iam e vinham conforme lhes aprazia.” (pg. 22), é verdade e isto significa: Não usar o nome de Deus em vão.

Mas o raciocínio histórico ajuda melhor na outra alternativa do uso de “Deus”: “ … ou se condensaram “na plenitude do tempo”, em um Filho do Homem, em um Messias salvador. Depois que Ciro II, o rei dos persas famoso por sua tolerância religiosa, permitiu aos judeus que tinham sido levados em cativeiro para a Babilônia o retorno à Palestina no ano de 539 a.C., pondo fim a um exílio de quase sessenta anos … a elite espiritual dos judeus ficou muito mais receptiva a boas-novas de cunho messiânico — o Segundo Isaías deu o tom para isso.” (pg. 22).

Diz corretamente ao chamar “panegírico” (culto a um deus abstrato) de Ciro, ele não se converteu nem mesmo abandonou suas crenças em outros deuses, como “instrumento de Deus” ele libertou um povo, lembra o autor também Marcião que cultuava “o deus desconhecido” que vai fazer Paulo chamar os gregos de um povo religioso, porém afirma que o Deus conhecido é o que o apóstolo dos gentios (Paulo) o proclama na figura de Jesus, o Redentor.

A questão da redenção apontada por Sloterdijk do ponto de vista histórico, tem seu sentido pois são momentos que “céu se abriu”, mas o vê como um espetáculo onde “O estágio mais antigo de evidência de fontes sensíveis e suprassensíveis se mostra em forma de comoção dos participantes gerada por um “espetáculo”, um rito solene, uma hecatombe fascinante.” (pg. 24) e isto se repetiu através dos tempos, com grandes oradores e grandes “midiáticos”, mas será este o Deus verdadeiro, de Agostinho como o próprio Sloterdijk o cita (De Vera religione).

Ele também tem razão ao dizer sobre alguns que se julgam com dons “divinos”: “. Em geral, partia-se do pressuposto de que havia intérpretes capazes de associar um sentido prático aos símbolos codificados” (pg. 25), mas novamente não estes falsos oráculos que buscam holofotes.

Veja uma vez que Jesus pede a cura de um surdo/mudo de nascença (Mc 7,34-36): “Olhando para o céu, suspirou e disse: “Efatá!”, que quer dizer: “Abre-te!” Imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade. Jesus recomendou com insistência que não contassem a ninguém. Mas, quanto mais ele recomendava, mais eles divulgavam”, este pequeno detalhe que aparece em muitos milagres, não divulguem, ou seja, não é um espetáculo, não significa não fazer bem feito, no entanto, com sentido sagrado.

O sentido desta cura é mais profundo, além de fazer um mundo e surdo de nascença ouvir e falar, lendo trechos anteriores do evangelista Marcos encontramos a ideia absurda (presente em meios “religiosos” de hoje), usando a ideia mulher siro-fenícia cuja filha tinha um “demônio”, não é  a ideia que uma doença ou alguma ocorrência ruim seja “castigo do céu”, pois é do coração do homem que saem as coisas “impuras”: maldades, cobiças, etc.

O Efatá dito para cura de um surdo-mudo de nascença é porque não é uma doença comum, alguém cuja vida e sistema cognitivo não foram ensinados a ouvir e falar, o fez imediatamente, o que é bem complexo, é mudar a mente.

Tempos sombrios, é preciso que surdos ouçam e mudos falem, pois há quem queira calar.

SLOTERDIJK, P. Fazendo o céu falar: sobre teopoesia. Trad. Nélio Schneider. 1a. ed. – São Paulo: Estação Liberdade, 2024.

 

O universo foi criado

05 set

Seja válida ou não a hipótese da criação do universo pelo Big Bang (existe a hipótese do multiverso) em algum momento ele a-pareceu, é muito cara a categoria do dasein estar aí de Heidegger, mas isto é essencialmente o humano do Ser.

Sloterdijk vai entrar neste mérito escrevendo: “Trezentos anos após a morte do homem que foi venerado por seus seguidores como o Messias que chegara, o Concílio de Niceia estabeleceu o dogma de que o Senhor Jesus Cristo seria Deus de Deus e luz de luz, verdadeiro Deus do verdadeiro Deus, gerado e não criado — o que quer que isso signifique.” (pg. 31), se o nome de Deus incomoda (e faz sentido), a criação não o ser-aí foi criado.

As fotos recentes do telescópio James Webb intrigam cientistas porque aparentemente não houve uma criação lenta, galáxias inteiras complexas parecem estar já no início do Big-Bang, e a força que as movimento parece ser algo realmente extraordinário, impensada pela ciência.

Como dissemos no post anterior, além de Jesus, para Sloterdijk também Sócrates e Sêneca devem ser examinados, e são próximos historicamente, escreveu: “O que na linguagem comum se chama “vir a ser humano” designa, descontadas as extrapolações, um estado de coisas que o filósofo romano Sêneca (1-65 a.C), em parte contemporâneo de Jesus (4 a.C-30 d.C), durante algum tempo mentor do jovem Nero [vejam] e, mais tarde, forçado por ele ao suicídio, patenteou na seguinte sentença: sine missione nascimur — com o sentido de: nascemos com a perspectiva segura de morrer” (pgs. 31-32).

Assim, poderia se separar o mortal do importante, mas Sloterdijk pensa diferente e escreve: “A leviandade cotidiana é uma máscara do fantasma atemporal da indestrutibilidade; o pregador na Palestina e o filósofo em Roma tiram essa máscara para testemunhar que existe algo indestrutível que não é de natureza leviana e fantasmática.” (pg. 33), por isso sua descrença com algo “indestrutível”, e a diferença do pregador messiânico da Palestina é “ressuscitou”.

Para ele Jesus se distinguiu no falar: “mas talvez também apenas uma façon de parler [modo de falar] para “eu” —, veio ao mundo, como ele próprio foi levado a dizer, para assinar seu ensinamento com sua vida.” (pg. 33), mas sua vida era de outro modo como alguém que veio de outra realidade e a conhece.

Assim está preso a ver as realidades humanas como “ex machina”: “O homem que chamara a si mesmo de “Filho do homem” falou elementos essenciais de sua mensagem do alto da cruz, na qual ele terminou como deus fixus ad machinam [deus preso à máquina]” (pg. 33), mas não é, vai examinar os escritos de Inácio de Loyola (fundador dos jesuítas) e de Hegel, mas fica preso a noção de absoluto de Hegel, porque este não chega a admitir o universo complexo que agora vemos através do James Webb.

SLOTERDIJK, P. Fazendo o céu falar: sobre teopoesia. Tradução Nélio Schneider. – 1. ed. – São Paulo : Estação Liberdade, 2024.

 

A análise histórica da teopoesia

04 set

Ninguém se converterá lendo Sloterdijk, ele chama o termo religião de “nefasto”, mas o termo não a cultura a qual procura aprofundar, sobre o termo afirma: “… sobretudo desde que Tertuliano inverteu, em seu Apologeticum (197), as expressões “superstição (superstitio)” e “religião (religio)” contra o uso linguístico romano: ele chamou de superstição a religio tradicional dos romanos, ao passo que o cristianismo deveria se chamar “a verdadeira religião do verdadeiro deus”. Desse modo, ele produziu o modelo para o tratado agostiniano De vera religione [Da religião verdadeira] (390), que marcou época, mediante o qual o cristianismo se apropriou definitivamente do conceito romano” (pg. 20) e seu raciocínio e visão histórica é bem mais precisa que aquela que quer parecer que Constantino criou uma “religião”.

Histórico porque a influência sobre Agostinho dos neoplatônicos, em especial de Plotino, é não apenas razoável, mas forte o suficientemente para aquilo que vai escrever, não na Vera religione, mas em suas Confissões que é praticamente seu testamento e modelo de sua conversão, Agostinho deixa o maniqueísmo (dois polos opostos em disputa) para descobrir o Uno (categoria de Plotino), a religião do Amor, que valeu uma tese de doutorado de Hannah Arendt.

Entretanto não se nega a ação política da religião, Sloterdijk escreve citando Eneida de Vírgilio: “Nenhum imperialismo ascende sem que tenham sido interpretadas as posições atuais das constelações no céu temporal, tanto no caso de detentores do poder quanto de aspirantes a ele. Somam-se a elas conselhos do submundo: “Tu regere imperio populos, Romane, memento.” (pg. 26 citando Virgílio).

Ele está falando de comunidades culturais  e cita Constantino: “a integração simbólica ou “religiosa” e emocional de unidades maiores: de etnias, cidades, impérios e comunidades cultuais supraétnicas — sendo que estas últimas também podiam assumir um caráter metapolítico, ou melhor, antipolítico, como ficou claro no caso de comunidades cristãs dos séculos pré-constantiniano” (pg. 25-26), quando cristãos eram perseguidos e isto é história.

A igreja já se estrutura nesta época: “Os bispos (episcopoi: supervisores) eram, em essência, algo como praefecti (comandantes, procuradores) em trajes religiosos; suas dioceses (em grego: dioikesis, administração) se assemelhavam aos anteriores distritos imperiais após a nova subdivisão feita por Dioclécio em torno do ano 300; sobretudo através delas, o princípio da hierarquia chegou à organização eclesial em formação …” (pg. 26), assim Constantino ano 313 quando coloca a religião católica como religião “oficial” [por influencia da mãe Helena] pouco ou quase nada influenciou sua estrutura.

De fato na herança judaica, já havia consagrado muitos rituais: “O princípio mediológico apò mechanès theós, aliás, deus ex machina, próprio da técnica cênica ou então da dramaturgia religiosa, de fato já estava em uso em vários rituais do Oriente Próximo muito antes de surgir no teatro ateniense” (pg. 28), assim este “deus ex machina” já estava presente no judaísmo. (Na figura acima a representação de Medeia de Euripedes do deus ex machina).

O autor reconhece a virada religiosa de Jesus: “O homem-deus, que se chamou de “Filho do homem” inspirado em fontes persas e judaicas — possivelmente um título messiânico, mas talvez também apenas uma façon de parler [modo de falar] para “eu” —, veio ao mundo, como ele próprio foi levado a dizer, para assinar seu ensinamento com sua vida” (pg. 32), embora o compare com Sócrates e Sêneca que tinham “convicções irrenunciáveis”.

SLOTERDIJK, P. Fazendo o céu falar : sobre teopoesia. tradução Nélio Schneider. – 1a. ed. São Paulo : Estação Liberdade, 2024.

 

A teopoesia de Sloterdijk

03 set

Um dos maiores filósofos contemporâneos, de enorme influência em Byung-Chul Han, Sloterdijk está longe de ser um cristão ou algum tipo de religioso, mas é sábio o suficiente para saber a enorme influencia da religião na cultura através dos séculos e no nosso tempo.

De que céu está falando então, esclarece: “O céu de que se fala não é um objeto passível de percepção visual. No entanto, desde tempos imemoriais, ao olhar para o alto se impunham representações em forma de imagem acompanhadas de fenômenos vocais: a tenda, a caverna, a abóbada; na tenda ressoam as vozes do cotidiano, as paredes das cavernas repercutem antigas cantorias de magia, na cúpula reverberam as cantilenas em honra do Senhor nas alturas” (pg. 11), esclarece o autor na sua observação preliminar.

Deuses mitológicos, o autor a partir do papiro de Greenfield (século X a.C.), onde se vê: “Detalhe do papiro de Greenfield (século X antes da nossa era): “A deusa do céu, Nut, curva-se sobre o deus da terra, Geb (deitado), e do deus do ar, Shu (ajoelhado). Representação egípcia de céu e terra” (foto, Wikipedia Commons, pg. 12).

Porém não é também um ensaio mitológico, escreve: “O que se pretende, no que se segue, é falar de céus comunicativos, luminosos e que convidam a arrebatamentos, porque, correspondendo à incumbência do esclarecimento poetológico, eles constituem zonas de origem comum de deuses, versos e aprazimentos”.

Faz uma curiosa metáfora com Mt 13,34, trecho tão caro aos cristãos que diz: “Tudo isso Jesus falava em parábolas às multidões. Nada lhes falava sem usar parábolas, para se cumprir o que foi dito pelo profeta: ‘Abrirei a boca para falar em parábolas; vou proclamar coisas escondidas desde a criação do mundo'” (Mt 13,34-35), era necessário porque falava de céus “comunicativos, luminosos”.

Em sua metáfora diz Sloterdijk: “Deus ex machina, deus ex cathedra e sem parábolas nada lhes dizia” (sobre a realidade divina), e aqui o filósofo indaga o mundo contemporâneo, que idolatra esses deuses contemporâneos ex machina e ex cathedra.

Vai relembrar a teopoesias na boca de Homero, que tinha “deuses falantes”, mas também lembra a passagem em que Zeus repreende “as manifestações voluntariosas de sua filha Atena”, e diz a ela: “Minha filha, que palavra te escapou da barreira dos dentes?”(pg. 15).

É claro, não falamos como cristãos de deuses mitológicos, lembra a semiótica cristã onde os sinais são importantes: “zona de sinais cresce paralelamente à arte de interpretação. O fato de não estar acessível a todos se explica por sua natureza semiesotérica: Jesus já censurou seus discípulos por não entenderem os “sinais do tempo” (semaîa tòn kairòn).”  (pg. 25).

Não se trata de delírio nem de falsidades grosseiras sobre eventos escatológicos, se eles existem somente são portadores destes “sinais” verdadeiros oráculos e profetas, ou para usar o termo de Sloterdijk: teopoetas que dizem coisas do céu, como poesia e clareza, ainda que usem parábolas pela dificuldade de expressá-las na linguagem e realidade cotidiana.

Os sinais dos tempos, sombrios como as guerras e vivos como aqueles que resistem com o espírito da esperança e da paz, não fazem da tragédia como os gregos um sinal de vingança ou de intolerância, mas de ver além daquilo que a realidade crua e nua parece mostrar.

Sloterdijk, P. Fazendo o céu falar: sobre a teopoesia, Trad. Nélio Schneider, Estação Liberdade, 2024.