A cura de mentes e corações
É cada vez mais comum o apelo aos bens materiais, ao fecharmos em si e uma falsa ideia sobre o que é a felicidade, almas e corações feridos que buscam a felicidade onde não está, podem ter uma consolação temporária, mas não é gaudio, felicidade equilibrada e paz.
Outro livro de Sêneca bastante fundamental para seu pensamento é da tranquilidade da alma, o homem moderno vive a exterioridade, erroneamente chamada de objetividade ou materialidade, porque as coisas (os entes) são parte de aspectos ontológicos e devem ser pensados e cultivados adequadamente na interioridade, que não é a subjetividade, mas alma.
Disse o filósofo Romano, que postamos ontem sobre a Ira, agora sobre a alma:
“Se o homem tivesse a oportunidade de olhar para dentro de si próprio, como se torturaria, confessaria a verdade e diria: “Tudo que tenho feito até agora, preferia que não tivesse sido feito; quando penso em tudo o que disse, invejo os mudos; tudo o quanto desejei, a maldição de meus inimigos; tudo o que temi. Ó deuses justos! Melhor não tivesse desejado. Fiz muitas inimizades, e o ódio substituiu a amizade (se é que há amizade entre os maus), e nem sou amigo de mim mesmo.
Embora escrito no início da era cristã, o autor Da tranquilidade da alma, reflete a dificuldade que é para o homem comum e também para o sábio manter a sua serenidade, perante um espetáculo de injustiça e de baixeza (vejam como é antigo isto), do qual é testemunha todos os dias, é justamente o contraponto da Ira, do ódio e do confronto.
O texto começa com uma carta imaginária escrita por Sereno (claro é de propósito o nome): “eu te direi o que está me acontecendo, e tu encontrarás um nome para essa doença”, e ao final afirma: “Às vezes, a minha alma se eleva com a magnitude do pensamento, torna-se ávida por palavras e aspira às alturas. Assim o discurso já não é mais meu [grifo nosso]. Esquecido das normas e dos critérios rigorosos, elevo-me e falo com a boca que não é mais minha”.
A partir de então refletirá sobre a maneira de contornar obstáculos que impedem a paz.
Embora o discurso seja moralista e ético, e não é menos importante por isto, a elevação que Sêneca almejou não pode encontrar outro lugar senão numa ascese espiritual, também está em outras culturas, o budismo é um elevação no caminho das virtudes, Ghandi usou a paz como um exercício política para liderar a Índia, e no caso do cristianismo são as “curas” de Jesus.
Diz o texto Bíblico, ao verem a cura de um surdo-mudo (Mc 7,37): “Ele faz bem todas as coisas. Aos surdos faz ouvir e aos mudos falar”, e também curou leprosos “impuros”.
Sêneca. Da Tranquilidade da Alma (wordpress.com) . trad. Lucia Sá Rebello e Ellen Itanajara Neves Vranas. Porto Alegre, RS: LP&M Pocket. 2009.
Sobre a Ira e a Esperança
O filósofo romano antigo Sêneca (4 a.C.–65 d.C.) fez um belo ensaio Sobre a Ira que embora esteja em três livros, pode ser dividido em duas partes, é dirigido ao seu irmão mais velho Gálio, a primeira parte trata de questão teórica (I-II.17) e fala dos horrores da Ira e suas definições, a segunda parte dá dicas de como acalmar as pessoas, tanto crianças coo adultos, usados casos reais como exemplos.
Embora os textos sejam muito interessantes e inteligentes há uma lacuna essencial que não se pode obter seu uma ascese espiritual, a Esperança que o contexto se modifique por ações que extrapolam o nível pessoal, social ou de grupo, elevar o nível de saúde espiritual de um grupo.
Segundo o filósofo, um grande homem não deve irar-se nunca e, quando não for possível evitar a ira, ele deve tentar se acalmar o mais cedo possível, é famosa sua frase:
“Nenhum homem se torna mais corajoso por meio da ira, exceto alguém que, sem ira, não teria sido corajoso: a ira, portanto, não vem para ajudar a coragem, mas para tomar seu lugar” (I.13).
Porém na vida social existem situações em que homens bons e justos estão sujeitos ao poder de autoritários, presunçosos e arrogantes que humilham, exploram e maltratam humildes.
A isto o estóico rebate com outra frase; “Que nada lhe seja permitido enquanto estiver irado. Por que razão? Porque irá querer que tudo lhe seja permitido.” (III.12), dito de modo atual, se perdemos a calma ao apontar um equívoco podemos perder a razão em reagir ao erro.
A esperança é fundamental quando toda uma situação social, política ou mesmo religiosa se torna difícil e aponta para um caminho que parece sem o da destruição, do erro e do medo, não se trata de estar em conformidade, escrevemos no post anterior sobre a disposição que precede a intenção, mas a intenção de acalmar de propagar a paz e evitar a ira torna tanto a esperança quando a possibilidade de correção de rota viável, a ira não, inicia ou amplia o confronto.
É preciso acreditar que a união de forças que desejam a mudança positiva tem uma luz que é superior ao conjunto das forças humanas, porque podem melhor a “disposição”, o clima a favor de atitudes sensatas e construtivas e elevar o padrão moral num círculo virtuoso.
Existe um Ser interior
A filósofa Hannah Arendt já havia desenvolvido o tema de Vita Contemplativa, e o ensaísta coreano-alemão Byung Chul-Han amplia este tema em seu livro com o mesmo nome, porém vamos apontar apenas as novidades ali, entre elas aquilo que retoma de Heidegger que é a disposição.
No Ser e o Tempo, Heidegger trabalha o verbo stimmen, usando a conjugação stimmung (que é traduzida por disposição) e usa também Gestiment-Sein (ser disposto), mas que no alemão é algo como estar afinado, estar em sintonia com algo e isto modifica o conceito de intenção.
Ao pé da letra disposição, um estado de espírito precede qualquer intencionalidade referida a objetos: “A disposição já abriu, porém, o ser-no-mundo como todo, e torna principalmente possível um dirigir a [algo]” (Heidegger apud Han, 2023, p. 66).
Assim a relação com o mundo exterior, com os objetos, com os entes e com tudo que vem de fora ao Ser, significa que estamos dispostos a, diz o texto: “A disposição nos abre o espaço unicamente no qual nos confrontamos com um ente. Ela desvela o Ser” (Han, idem).
Esta visão transforma o que somos e pensamos, em termos espirituais aquilo que a alma esta disposta e para o que se dirige a partir da interioridade, diz o texto: “A dimensão contemplativa que nele habita o transforma em um corresponder. Ele corresponde àquilo que “se dirige a nós como voz [Stimme] do ser”, ao se deixar de-finir por ela” (Han, 2023, p. 67).
Assim o pensar torna-se outra coisa do que articulação lógica ou discurso narrativo: “Pensar significa “abrir nossos ouvidos”; ou seja, escutar e ouvir atentamente. Falar pressupõe escutar e corresponder. “Philosophia é o corresponder verdadeiramente consumando que fala atenta ao chamado do ser do ente. O corresponde ouve a voz do chamado […]” (Han, 2023, pgs. 67-68).
Tudo isto parece excessivamente filosófico e o é de fato, porém significa conforme afirma o autor que há algo de-finido, e temos muitas definições pré-dispostas, é algo que está condensado em nossa mente e nossos pensamentos “no âmbito pré-reflexivo”, quer dizer dentro de nós.
Assim é o que temos dentro, em nossa interioridade que nos ajuda ou limita, diz o autor citando novamente Heidegger: “Se a disposição fundamental fica de fora, então tudo é um aglomerado forçado de conceitos e cascas de palavras” (Heiddeger apud Han, p. 68).
Assim não é o exterior e aquilo que tomamos fora de nós que nos define, mas o que temos dentro e por isso a interioridade é fundamental para qualquer análise.
HAN, Byung-Chul. Vita contemplativa: ou sobre a inatividade. Trad. Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
Hipocrisia e poder
Na análise de correntes políticas e ideológicas, a noção e o problema da hipocrisia é negligenciado, assim pode por defesa da democracia defender atitudes autocráticas, por combate a corrupção justificar elementos de corrupção ativa e passiva, aliás, a ativa que é o fato de se oferecer compensação ilícita (e não se diz o que é ilícito) e a passiva é quando um funcionário público recebe uma compensação indevida (quando é que pode) de terceiros.
O termo hipocrisia em grego antigo (hypocritás) é parecido ao atual, trata-se de quando um ator social intencionalmente age de modo simulado, em atos ou palavras, que escondem como pensa ou como de fato age, a regra hoje é dizer o contrário para confundir a opinião pública.
Como termo usado por autores contemporâneos, lembro Maquiavel, como críticas da razão política, e Foucault, que a vê como elemento central das relações de poder, embora sua análise se desloque para o campo psicológico.
A psicopolítica de Byung Chul-Han desloca-se para o campo midiático, o autor acredita que o poder da mídia digital facilita este tipo de relação, embora não a chame diretamente de hipocrisia, mas dá uma receita interessante no seu livro “O que é poder”, “A perda moderna da fé, que não diz respeito apenas a Deus e ao além, mas à própria realidade, torna a vida humana radicalmente transitória”, assim não há nada perene, uma vez que tudo muda.
A base da hipocrisia moderna é induzir o homem a acreditar numa vida de facilidades, o que Byung Chul-Han chama de excesso de positividade, aboliu-se a dor e o sacrifício, “Esquece-se que a dor purifica. Falta, à cultura da curtição, a possibilidade da catarse. Assim, sufocamo-la com os resíduos [Schlacken] da positividade, que se acumulam sob a superfície da cultura de curtição”.
Isto torna o homem mais feliz, a resposta é o contrário do que a sociedade promete, a depressão, a bipolaridade e o tédio são as doenças contemporâneas, “A depressão é o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade”.
Homens e mulheres se libertos desta sociedade do desempenho, dos exercícios, de uma ascese desespiritualizada, sem atitudes de desconfiança e persecutórias, tornam-se mais afáveis: “Homens e mulheres comuns, tendo a oportunidade de uma vida feliz, se tornarão mais gentis e menos persecutórios e inclinados a encarar os outros com suspeita”.
É possível restabelecer a confiança mútua, as relações saudáveis, a empatia e a fraternidade tornando a sociedade mais sadia e menos conflituosa.
HAN, B.C. O que é poder. Trad. Gabriel Salvi Philipson. RJ: Petrópolis, Vozes, 2019.
Esperanças de paz
As eleições russas acontecem em 15 e 17 de março, mas o provável adversário político de Putin, o ex-deputado Boris Nadejdin teve a sua candidatura rejeitada nesta sexta-feira, 2 de fevereiro pelo vice-presidente da comissão eleitoral Nikolai Bulaiev, que afirmou motivos de irregularidade e que vai apontar outros problemas técnicos.
É rotina nas eleições russas este procedimento, e algumas vezes os opositores somem ou são presos por algum motivo ou infração menor, os ditadores controlam a máquina de estado para forjar uma democracia que não existe na prática e crescem governos nacionalistas também.
Um dos motivos é que algumas pessoas da lista foam consideradas mortas, Nadejdin ironizou:
“Você e eu somos os mais vivos dos vivos. Se alguém imaginar que vê almas mortas nas minhas listas de assinaturas, essa não é uma questão para mim, talvez eles devam procurar a igreja, ou um exorcista”, segundo notícia no Telegram, uma eleição justa pode mudar o panorama da guerra na Ucrânia.
A paz no Oriente Médio também é possível, Israel quer a libertação de todos os reféns e o Hamas quer o fim da guerra, reiterou neste sábado (03/02) que a completa retirada das forças israelenses da Faixa de Gaza são pré-requisitos para acordo da liberação dos reféns.
Novos ataques contra alvos Houthis no Iêmen, foram feitos pelos Estados Unidos e Reino Unido neste fim de semana, acredita-se que a organização, um grupo de múltiplas milícias, seja armada e financiada pelo Irã, que nega as acusações.
Segundo o departamento de defesa americano, há diversas milícias financiadas pelo Irã, entre elas o Hezbollah e os Houthis, após dois americanos serem mortos na interceptação de um barco levando armas para rebeldes no Iêmen, o departamento de defesa americano divulgou uma foto (acima).
Há sempre conjunturas e situações que podem por fim a uma guerra, é preciso condenar e não relativizar o poder de tiranos e governos belicistas para que o mundo caminhe para a paz.
Poder e respeito
Byung Chul-Han em seu livro O enxame, esclarece que somente o respeito possui simetria, isto é, pode tornar a relação de mutuo respeito e reconhecimento daquilo que é bom para todos.
Nisto consiste um dos maiores valores da ação social, a solidariedade com aqueles que por algum motivo erraram ou tiveram um desvio em sua ação comportamental, ser permitido ao retorno da vida social e a esperança de uma vida nova.
É preciso fazer a experiência do novo, da retomada da relação de respeito com o Outro, e da reinserção social, não significa tolerar aquilo que é inaceitável quer seja moral ou socialmente, mas fazer uma nova experiência de vida da ressocialização e da reorganização da vida pessoal.
O poder quando exercido somente para a repressão e combate aquilo que é condenável social e moralmente não deve estar ausente, seria omissão e desorganização, porém cada ser humano e cada pessoa pode e deve ser permitido sua ressocialização e reinserção social.
O convívio social se degradou não porque as pessoas erram, isto é próprio da vida social e humana, mas porque retomar a relação de respeito, ser paciente em ouvir o Outro e permitir sua mudança é dar-lhe Esperança e condições de fazer uma experiência nova e de respeito.
A cultura da exclusão, do ódio e da ausência de perdão leva a uma sociedade hostil, ao fim de relações sociais justas e ao caminho que dá possibilidade para maior equidade e justiça para todos, a exclusão engrossa o caldo da marginalidade, da cultura do desrespeito e dá asas a todo tipo de polarização e confronto.
A sociedade sem um retorno a vida social equilibrada, justa em todos os sentidos, inclusive o moral e econômico, torna possível o desenvolvimento de uma cultura de paz e de fraternidade.
Não há caminho de retorno apenas impondo regras e conceitos, muitas vezes duvidosos e sem uma razão prática adequada (a phronesis grega), torna-se um direcionamento ideológico que é tão hostil quanto aquilo que condena: o autoritarismo e a ignorância.
Falta bom senso, razão prática em todos os âmbitos da sociedade, do político ao religioso, a prática da desconfiança, do descrédito e desrespeito ao pensamento diferente, torna o campo do autoritarismo cada vez mais presente e o campo da democracia e da igualdade distante.
A prática de atitudes cotidianas do bem, do ouvir paciente é o caminho para aqueles que de fato desejam um mundo mais fraterno e solidário, a prática da agressão e do ódio não levam a uma possibilidade real de retorno ao caminho da guerra e do confronto.
Aqueles que dizem seguir o Amor e a solidariedade precisam sair das palavras e ir aos atos.
Aretê e retidão
É preciso compreender que na filosofia antiga, principalmente em Aristóteles e Platão, o objetivo é desenvolver uma filosofia para a polis, educação o político (para Platão ele deve ser um filósofo no sentido de excelência do pensamento) e para Aristóteles o cidadão, considerando que somente homens livres estavam aptos para a cidadania.
Assim aretê traduzido como virtude, é também uma característica de uma excelência particular, mas não é sua tradução como propõe alguns interpretes, a palavra que Aristóteles usa para isto é phronesis, um pensamento teórico prático que leva a uma sabedoria especial.
Não podemos supor que homens que não tem uma vida particular de “excelência” e a vive com sabedoria sejam homens aptos ao exercício público, o apego ao poder, ao dinheiro e aos vícios da vida contemporânea, feitos em nome da liberdade, inibem a capacidade do político.
Não se fala mais no campo moral, não se trata do roubo e da mentira, o nome dado hoje é de fake News devido sua publicização pela mídia, e a mentira pode ter perna curta, mas sua ação confunde a vida social, desinforma e leva a outros vícios, além do fanatismo pessoal.
É importante abordar também a questão da liberdade, podemos fazer o que quisermos, mas não podemos ignorar as consequências, uma vida imoral e desonesta não leva a uma vida social justa e equilibrada, os outros vícios acompanharão a ganância e o poder pelo poder.
Assim não tarda a aparecer naqueles que veem a liberdade neste sentido equivocada pagam com deformações na vida pessoal, envolvimento com forças antissociais, por exemplo, desde o tráfico até mortes e trafego de pessoas, como aqueles que já ganharam publicidade.
É difícil neste contexto de uma visão equivocada de liberdade, falam de retidão, de bons costumes, do pessoal ao social, de empatia e solidariedade, o que existe é demagogia apenas para o exercício imoral da política, do poder e do dinheiro público.
Cultura, Inteligência e Sabedoria
O problema da cultura contemporânea já foi abordado em vários posts, o psiquiatra Anthony Daniels que assina seus livros como Theodore Dalrymple (O que fizemos de Nossa Cultura, Qualquer coisa serve, A faca entrou, etc.), a inteligência segue sendo questionada agora com o bode expiatório do universo digital, mas cuja crise vem desde o início do século passado (o neopositivismo, o neologicismo e a visão simplista da realidade), agora toma contornos de uma falta de equilíbrio, de bom senso e até mesmo de algum sentido de humanidade.
Edgar Morin explica esta falta de sabedoria através da visão disciplinar e segmentada da realidade, uma ausência completa de uma visão complexa e ampla que dá origem ao que ele chama de policrise, porém é importante questionar o que é sabedoria.
No sentido grego não é um saber privado no sentido da moral e sim público e social, que visa minimizar exacerbações de impulsividade egocêntrica do eu, quando colocada numa perspectiva da obra de arte atinge um patamar de princípio universal, bom e belo.
A palavra grega como “amigo do saber” ou do conhecimento é reducionista, uma das palavras judaicas para sabedoria é chokmah ou tushiya que significam sabedoria que conduz a um sucesso prático, parece mais adequado a realidade atual, porque é sábio se tem sentido prático para a vida de cada pessoa e do conjunto da humanidade.
Isto está bem de acordo com a palavra grega proposta em função de uma virtude, a phronesis, que costuma-se traduzir por prudência, termo que o filósofo contemporâneo Hans-Georg Gadamer adota mas o traduz por serenidade, julgando mais próximo que prudência.
Os que clamam por um saber meramente objetivo, bem ao sabor idealista, na realidade são pouco práticos indicando ausência de sabedoria, tornam-se impulsivos e activos (no sentido da Vita activa que Hanna Arendt e Byung Chul Han reclamam), típico da sociedade do cansaço.
Queremos um saber rápido, consumista ou midiático e ele nada ou pouco tem a ver com a sabedoria, que requer pensamento, contemplação e pensamento não imediato sobre os fatos.
A sociedade atual desviou-se do saber prático porque reclama por inteligência e cultura sem perceber a conexão profunda que deve ter com sabedoria que vem de uma reflexão mais profunda sobre o Ser, as coisas e a essência da vida.
Defendemos a paz, mas não evitamos a catástrofe, a guerra, o ódio e o diálogo e o respeito com o diferente, não há sabedoria prática neste tipo de pensamento contemporâneo.
Resistência ou catástrofe
Assim diz o artigo do centenário pensador e educador Edgar Morin, no artigo para o Jornal italiano La Reppublica, estamos “nos encaminhando para prováveis catástrofes”.
E pergunta: Isso é catastrofismo? Essa palavra exorciza o mal e dá uma serenidade ilusória. A policrise que estamos vivendo em todo o planeta é uma crise antropológica: é a crise da humanidade que não consegue se tornar Humanidade, a palavra policrise já foi utilizada pelo autor em outros contextos: a do pensamento, a crise ecológica e social, agora acrescenta uma antropológica, outros autores dizem a crise da idade do antropoceno.
Ele como outros autores apontaram para esta crise, mas acreditavam que era possível uma mudança de rumo, agora já parece tarde demais, “não sabemos se a situação mundial é desesperadora ou realmente desesperada”, não significa com ou sem esperança, como ou sem desespero, temos que passar para uma Resistência, e agora diferente daquela da 2ª. guerra na qual a França estava ocupada pelos nazistas (foto), agora o mundo está ocupado pela polarização e pelo ódio.
Os fatos e situações nos arrastam para uma guerra sem precedentes, “estamos condenados a sofrer a luta entre dois gigantes imperialistas com a possível intervenção bélica de um terceiro”, assim diz o autor, “a primeira resistência é aquela do espírito, que deve ser capaz de resistir à intimidação de todas as mentiras espalhadas como verdade e o contágio de todas as embriaguezes coletivas”, pede um espírito de sobriedade e de quem crê, de fé e esperança.
Hoje devemos saber como resistir ao ódio e ao desprezo, “requer o esforço de compreender a complexidade dos problemas sem nunca ceder a uma visão parcial ou unilateral. Requer pesquisa, verificação das informações e aceitação das incertezas” escreveu Morin.
Esta “resistência também implica na coordenação de associações que se dediquem à solidariedade e à rejeição do ódio. A resistência prepararia assim as jovens gerações a pensar e agir pelas forças da união, da fraternidade, da vida e do amor”.
Não se trata de achar onde há justiça em algum tipo de ódio, mas odiar o próprio ódio, não se trata de fazer torcida para este ou aquele lado da guerra, mas fazer guerra a própria guerra.
A resistência que Morin pede deve envolver todas as pessoas de boa vontade e a solidariedade entre aqueles que realmente além do discurso, sabem as consequências de uma guerra assim.
A resistência do espírito da humanidade
Victor Serge escreveu “Meia noite do século” em 1939, já em plena 2ª. guerra mundial, agora em artigo publicado em La Reppublica, em 24-01-2024, o sociólogo francês Edgar Morin publicou um artigo: “A resistência do espírito” sobre a crise das guerras atuais.
Serge, um anarquista de origem, que chegou a apoiar a Revolução Russa, viu ela se burocratizar e perseguir todos os inimigos reais e imaginários no período stalinista, descrito em “O grande Terror” (1934-38), anos antes de descrever o horror a meia noite, e o que disser de hoje.
A guerra na Ucrânia mobilizou ajudas econômicos de boa parte do mundo, enquanto do lado russo enfraquecido economicamente pelas sanções impostas pelas nações ocidentais, tanto fortaleceu o desenvolvimento técno-científico quanto o bloco formado com a China.
Um novo foco surgiu após um massacre de civis feito pelo Hamas no dia 7 de outubro de 2023, aos quais se seguiram bombardeios mortais de Israel na faixa de Gaza.
Na análise de Morin, já a algum tempo desenvolvida, o progresso do conhecimento se deu criando barreiras em disciplinas cada vez mais fechadas em seu objeto, que leva a um novo tipo de pensamento quase cego, ligado ao domínio do cálculo num mundo tecnocrático, o progresso do conhecimento não dá conta da complexidade da realidade e torna-se cego.
O resultado de uma falta de clareza e compreensão da vida humana exposta pela facilidade de acesso ao conjunto da vida no planeta, sem sua compreensão, levou aos dogmatismos e aos fanatismos, e uma crise da moral enquanto se espalham os ódios e as idolatrias.
Lembrando os anos da ocupação nazista na França (foto Carentan France, June 1944 From the LIFE Magazine Archives), em que o próprio Morin foi membro da Resistência Francesa, ele evoca agora uma resistência do espírito que evita uma ação quase desesperada ou realmente desesperada, e mantém a esperança através da Resistência.
Esta resistência implica em salvaguardar ou criar um oásis de comunidades dotadas de uma palavra de relativa autonomia (agroecológica) e de redes de economia social e solidária.
Esta ação também implica em associações que se dediquem à solidariedade e rejeição ao ódio.