Foi o iluminismo uma iluminação
Para analisar o iluminismo a luz da filosofia ocidental é preciso ler, claro com um espírito aberto a metafísica ontológica, a partir de Cassirer, sua crítica e análise a partir do apogeu do idealismo no século XVIII, “que se auto intitulou orgulhosamente de ´Século da filosofia’” (CASSIRER, 1992).
Esta filosofia considerava-se que “abriu caminho até aquela ordem mais profunda donde jorra, com o pensamento puro, toda a atividade intelectual do homem, e onde essa atividade deve encontrar seu alicerce, segundo a convicção profunda do iluminismo” (CASSIRER, 1992).
O autor observa que Hegel considerado “o primeiro a enveredar por esse caminho” como filósofo e historiador da filosofia, fez uma esquecida (Cassirer a chama de curiosa) retificação, que diverge do veredicto que “a metafísica do mesmo Hegel proferiu a respeito do Iluminismo” (Cassirer, 1992), reconhecendo seu papel e fazendo uma conciliação com esta (na foto o frontispício da L’Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences).
Tendo como principal influência Kant, Cassirer também sofreu influência de Herman Cohen (grande expoente do neokantismo no início do século 20) e Paul Nartop (um dos fundadores da escola de Marburg) e assim permaneceu preso no idealismo do neokantismo, porém não deixou de haver influencias nos pensamentos de Heidegger, Hans Georg Gadamer e Hartmann.
A questão científica no século XVIII encontrava-se em encontrar “uma fronteira determinada entre o espírito matemático e o espírito filosófico” (Cassirer, 1992, p. 34), começava assim uma dúvida que iria até o princípio do século XX quando David Hilbert numa Conferencia de Matemática anuncia 23 problemas que a matemática deveria resolver para considerar-se completa, entre eles o segundo problema era da consistência dos axiomas da aritmética, ou seja, que a aritmética podia resolver qualquer problema que fosse enumerável.
Foi Kurt Gödel quem demonstrou que este problema da prova finitista da consistência da aritmética é comprovadamente impossível, em seu segundo teorema da Incompletude, o que ficou conhecido como Paradoxo de Gödel, o sistema ou é completo ou finito, nunca os dois.
Para ajudar este desmoronamento do racionalismo cientificista, a física quântica também propôs através de Werner Heisenberg o princípio da incerteza, que anunciava que não se podia afirmar a posição de um átomo ou uma partícula atômica em determinada situação.
O idealismo é uma corrente forte ainda, mesmo nos meios científicos, mas suas bases tanto lógicas, como física e matemáticas já foram desmontadas pela própria ciência, filósofos da Ciência como Karl Popper, Tomas Kuhn e Imre Lakatos já anunciaram novos postulados.
O consenso é que o pensamento humano necessita de uma visão mais ampla, uma cosmovisão que não se limite as chamadas ciências exatas, recupere a importância da linguagem, do estudo do Ser e de uma visão transdisciplinar que libere os limites estreitos de cada área do saber, sem deixar de admitir os mistérios, as crenças e as culturas originárias.
CASSIRER, E. A filosofia do iluminismo. Trad. Álvaro Cabral, Campinas: Editora Unicamp, 1992.
Jonas e a resistência do espírito
Ao nos aproximarmos de grandes tragédias, a alegoria Bíblica de Jonas é interessante de ser lembrada, até mesmo o filósofo Peter Sloterdijk a destaca, ainda que não seja cristão, é bom lembra que Jonas também está no Alcorão e é personagem importante para o judaísmo.
A curiosa passagem Bíblia em que Jonas deveria evangelizar a cidade de Nínive para ela não perecer, uma das maiores de seu tempo, acredita-se que por medo dos Assírios, conhecidos por sua crueldade, Jonas tentou fugir num navio para Társis, que sofrendo uma forte tempestade, descobrem que o motivo é Jonas que é lançado ao mar.
No mar, Jonas teria passado três dias e 3 notes no ventre de uma baleia e depois seria lançado na cidade de Nínive para que retornasse a sua missão, ali ele pregou e Nínive se converteu.
Sloterdijk não usa os termos dualismo ou polarização, usa mesmo antes da atual polarização mundial que provoca guerras sangrentas e grandes polêmicas, o filósofo usa os termos díade, uma relação entre dois ou mais diferentes que não há centro e sim um policentrismo.
Isto é básico para entender quem é Jonas para o filósofo alemão, ele o vê como um profeta e adorador do Deus dos judeus, que tem como dever estabelecer a relação entre no divino e o humano, e que para os humanos habitarem o divino precisam conhecer e rejeitar as perdições do humano no mundo.
A pergunta central de Sloterdijk em Esferas I – as bolhas, é onde estamos quando estamos no mundo? E na língua alemã há uma palavra específica para estar no mundo e estar COM o mundo, a palavra é “vorhandensein”, que quer dizer “ser-no-mundo”, que embora signifique outra coisa para Heideggeer que seria apenas “dasein”, ela adquire um significado maior.
Para Sloterdijk os únicos corpos que estão fora desta díade ou deste policentrismo “os únicos corpos que são localizados sem dualidade no mundo são os dos mortos” (Esferas I), ou seja, toda vez que você se encontra em um lugar você está nele e com ele, você o vê e o reconhece.
Onde Jonas estava quando estava no mundo? Dentro da baleia. A baleia é parte da consciência de Jonas que lhe provoca a pensar no exterior a partir de um interior. Heidegger já havia pensado neste puro interior de que todos somos vítimas, um espaço radical e intrínseco, nossa habitação única e primeira por onde permeiam todas as nossas impressões, pensamentos e afetos.
A relação com o exterior é então de “tensão”, não é só filtro do externo, mas também é lente para entender tudo, até mesmo o próprio interior, assim estar na “baleia” foi preparação para Jonas enfrentar, vejam que antes há uma tempestade no navio que está “no mundo” e ele é jogado para fora.
O nosso caminho interior deve “ajudar”, iluminar e nos conscientizar do que somos “no mundo” e sermos como mundo outra coisa quando temos esta luz.
SLOTERDIJK, P. Esferas I : bolhas. Tradução José Oscar de Almeida Marques. Sáo Paulo : Estação Liberdade, 2016.
A clareira e a verdade
O conceito de verdade na filosofia grega não surge da lógica, da matemática ou da física, a alegoria da Caverna em Platão, onde aqueles que estão na caverna veem apenas as sombras e não a verdade como ela é, na interpretação de Heidegger, ele vai demonstrar que o esquecimento do verdadeiro Ser das coisas produzidas pelo pensamento moderno (Kant e Descartes) nada mais é do que o resultado necessário de uma forma de pensar metafísica.
Esta metafísica sofreu uma mudança na determinação da essência do conceito de verdade: nesta passagem ocorreu uma transformação da noção de verdade como desvelamento para a noção de verdade como correção ou correspondência do pensamento como a coisa.
Esta interpretação começa pela correção da palavra grega eidos e ideia (Ideia) por “aspecto”, este aspecto de um ente não é a sua mera aparência tal como percebida de forma imediata pelos sentidos, é aquilo como o ente se mostra mediante aquilo que ele se apresenta.
É nesse automostrar-se no seu aspecto que o ente aparece e pode ser captado pelo intelecto (Heidegger, 2007, p. 3), assim como o olho vê os objetos sensíveis em sua aparência externas graças à luz do sol, o homem “vê” o ser à luz das ideias, assim as Ideias iluminam o ser dos entes, tornam visíveis a sua essência (na terminologia de Heidegger: o entitativo do ente), e permitem que a alma a contemple.
Como afirma Heidegger (2007, p. 6): “Os aspectos dos quais as coisas mesmas são, ou seja, as eidee (as ideias no sentido grego), constituem a essência em cuja luz todo ente particular, este ou aquele, se mostra em cujo mostrar-se o que aparece chega a ser recém desoculto e acessível”.
Heidegger afirma numa passagem do Ser e o Tempo, que a concepção tradicional de verdade (de Kant e Descartes) baseia-se na premissa que a essência da verdade reside na concordância do juízo com o objeto (adequatio intelectos et rei) uma correspondência (ou omoiosis) sem explicar o que é a noção de correspondência.
A proposição ontológica de mostrar o que e descobrir o que ele é (Heidegger, 2005, p. 288) é assim algo que “descobre o ente em si mesmo, propõe, mostra permite ver (apofánsis) o ente em seu estado de descoberto”, desvela o ser em si mesmo, porém o Ser foi esquecido.
Como afirma Heidegger: “O ser verdadeiro do lógos como apofasis é o aletheien”. A alethéia, o desvelamento, portanto, é “o fundamento do fenômeno original da verdade” (Heidegger, 2005, p. 288).
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2005. vol. 1.
HEIDEGGER, M. La doctrina de Platón acerca de la verdad. Eikasia, Revista de Filosofía, v. 12, Extraordinário I, 2007
Perspectiva de guerra e embriaguez do espírito
O tom e as ações de uma guerra sem escalas se ampliam, poucas são as nações e vozes que não estão sobre aquilo que o filósofo centenário Edgar Morin chama de “embriaguezes coletivas”, e clama que haja resistência capaz de reagir a todas as mentiras espalhadas.
O comandante das forças da OTAN Chris Cavoli, anunciou um exército de 90 mil homens, e um exercício chamado de Steadfast Defender 2024, que deverão ocorrer em maio, dele participarão 50 navios, de porta-aviões a destroieres, 80 caças, helicópteros e drones e mais de 1.100 veículos de combate, incluindo 133 tanques e 533 veículos de infantaria.
A Rússia despista e diz que não invadiria a Letônia e a Polônia, tomou de vez a cidade de Avdviika (foto), um dos frontes estratégicos e onde a guerra está mais violenta, Zelensky diminui a perda afirmando que recuou para “salvar vidas”, entretanto a guerra continua sangrenta.
Em entrevista neste domingo (18/02) Putin diz que a Ucrânia “é uma questão de vida ou morte” para o país, a morte do opositor Navalny repercutiu no mundo inteiro e será um divisor de águas para saber aqueles que apoiam um regime claramente bélico e autoritário.
Na faixa de Gaza, a cidade de Rafah com milhões de refugiados palestinos segue sob ameaça israelense, um hospital foi invadido pois haveria uma notícia que “reféns estariam ali”, porém não foram encontrados, somente armamentos e com a invasão pacientes na UTI morreram.
Seguem os apelos internacionais para que Israel não coloque em risco civis que na sua maioria estão refugiados em Rafah e o Egito ergueu um enorme muro de modo que não podem fugir dali para o Egito e isto coloca em risco milhares de mulheres, crianças e outros civis que estão lá e não tem para onde fugir.
As negociações ficam mais difíceis em cada ação de Israel e o envolvimento do Irã e outros países árabes vai se tornando cada dia mais inevitável, será neste front que uma possível 3ª. guerra ocorrerá, a resistência do espírito reivindicada pelo centenário filósofo e educador Edgar Morin deve lutar contra os fanatismos e ódios que só disseminam a morte e a guerra.
Em uma entrevista anterior a publicada no jornal italiano La Reppublica, Morin havia dito: “toda a guerra encarna o maniqueísmo, a propaganda unilateral, a histeria bélica, a espionagem, a mentira, a preparação de armas cada vez mais mortíferas, os erros e as ilusões, inesperados e surpresas”, é preciso uma resistência do Espírito para a Paz.
Resistência ética e do espírito
A resistência ética, ou a resistência do espírito que fala Edgar Morin, é o reconhecimento “de um retorno aos dogmatismos e aos fanatismos, e uma crise da moral enquanto se espalham os ódios e as idolatrias” disse o filósofo.
Não é possível estabelecer a ética quebrando as regras mais elementares da ética que o respeito pela dignidade do Outro, não é possível fortalecer a moral se espalhamos todo tipo de imoralidade da política aos costumes e não é possível falar de espírito se o que existe é só uma pura idolatria em diversos sentidos, do cultural ao religioso.
Não se trata mais apenas das guerras, que em si já são uma catástrofe, porém “as qualidades da nossa civilização deterioraram-se e as carências aumentaram, em particular no desenvolvimento dos egoísmos e no desaparecimento das solidariedades tradicionais”, disse Morin em entrevista ao jornal italiano La Reppublica (24/01/2024).
O apelo ao fanatismo político polarizou a sociedade, quem defendia a democracia a agride com as formas mais arbitrárias de poder, no campo religioso quem defende práticas e ritos religiosos esquecem de fazer o bem ao semelhante e de respeitar os diferentes credos, cada um ter razão a sua maneira, segundo sua própria moral e o resultado são escândalos morais.
Como aquele fariseu que pratica o jejum e faz negócios escusos e maltrata seus funcionários, ou como aqueles que mesmo conhecendo os preceitos religiosos procura justificar suas faltas com argumentos ou leitura religiosa factual e não contextual.
Uma ascese que não inclua mudanças de atitudes e de comportamentos, uma resistência do espírito a tudo que parece justificável de imoral e duvidoso espiritualmente, deve ser um caminho para uma ascese verdadeira que faça uma verdadeira resistência do espírito.
As tentações de Jesus no deserto, em que foi lhe oferecido honra, glória e poder para ceder ao mal, mais que uma alegoria é um caminho para que conquistas sejam feitas de modo modesto, justo e sem ofender aos que estão por algum motivo dependentes de nós para o sustento.
Apelos a riqueza, ao poder e ao luxo em nome de religiosidade são as idolatrias mais claras e o reverso de qualquer resistência do espírito ou de resistência moral a decadência civilizatória.
As guerras não são outra coisa que as tentações do poder e da opressão a povos, grupos ou culturas que serão subjugados pela força bruta, pela humilhação e até mesmo pela morte de inocentes.
A esperança de paz, de moralidade e ética está em conservar uma resistência do espírito.
Morin, E. A resistência do Espírito, Italia: La Reppublica, 24-01-2024.
Ética e resistência
O formalismo idealista hegeliano estabelece uma eticidade, uma vez que vê na finitude do homem uma fatalidade, no dizer de muitos pensadores sua mundaneidade, entretanto as categorias usadas na fenomenologia, onde se volta a coisa em si nela há a essência do Ser.
Foi Emmanuel Levinas que abriu esta essência para a relação com o Outro, e a chama de uma resistência ética, declara-a como uma epifania, no sentido filosófico de aparição, que é uma abertura a exterioridade ao ser infinito, onde esta resistência pode se manifestar.
Assim diferente da ideia da abertura do Ser ou da transcendência idealista, relação do sujeito com o objeto, sua exterioridade é aquela que o Ser interior manifesta-se diante do infinito, sua abertura ao Outro requer um exame de consciência: amamos ou odiamos, perdoamos ou nos ressentimos diante do diferente, favoreço a ética e ao comportamento moral, ou a relativizo.
O professor brasileiro Brüseke esclarece: “É curioso a freqüência com a qual está sendo levantada a preocupação ou até o receio de que a mística enfraqueça a moral social” (Brüseke, 2000).
Assim a transcendência de Levinas é uma verdadeira abertura do Ser ao mundo exterior e a vida de maneira ampla e totalitária (claro não no sentido autoritário da palavra), ela pode dar ao Ser uma verdadeira ascese, um reencontro consigo mesmo diante de uma metanóia, uma mudança completa de mentalidade.
Aberto a vida, não significa aberto aos prazeres e circunstâncias momentâneas, mas encontrar um caminho para nossa “ascensão”, um crescimento cotidiano ainda que com obstáculos e percalços, a falsidade de caminhos “fáceis” é que eles não fazem o “exercício” da ascese verdadeira, apenas o contornam com paliativos (ler a Sociedade Paliativa de Byung Chul-Han).
A resistência, categoria também usada por Edgar Morin para o mundo contemporâneo, é mais que um opor-se ao “mal”, ou uma resiliência interior, é uma resistência da esperança, de crer que um caminho alternativo é possível, que a guerra não é uma saída, e que teremos futuro.
A filosofia e a ciência não são opostas ao crescimento espiritual da humanidade, em certa medida até podem ser complementos saudáveis para uma fé equilibrada e uma ciência que seja de fato humanizada, não se trata de dominar a natureza e sim de cooperar com ela.
Deve partir de atitudes e decisões pessoais, colocadas em reflexão e vivida socialmente.
Brüseke, F. A ética da resistência. Cadernos de pesquisa interdisciplinar em Ciências Humanas. Florianópolis, SC, v. 1, n. 8, 2000.
Fragilidade humana diante do Infinito
Uma das obras importantes para entender a viragem linguística do ponto de vista da ontologia é a obra de Emmanuel Levinas, destacando aqui uma obra que toda a questão da impossibilidade de objetivação do Outro e da limitação humana diante de debilidades como os vícios, as dificuldades éticas e a guerra.
Levinas tira parte de sua experiência do que viveu na segunda guerra mundial, onde foi mantido preso pelo regime nazista, além de ter seus pais e irmãos executados, viu as atrocidades da então dita “razão esclarecida” que se mostrou violenta e totalitária, estas experiências estão em tensão em seu pensamento, e são importantes num contexto de ameaça de uma nova guerra mundial.
A ontologia tem seu papel dentro da metafísica segundo o autor, mas não seu primado como o de filosofia primeira, a transcendência do âmbito do “si” e do “ser”, uma vez que este movimento desvelou-se (as categorias de re-velar é um novo velamento) retornando o movimento ao si mesmo, ao idêntico, ao ser e e sua preservação, não ao reconhecimento do Outro.
Em contraposição a Heidegger, para quem a relação do ser com outrem é subordinada a uma relação com o ser em geral e nada interfere no surgimento do eu, Levinas entende que o eu não se deve ao Ser, mas ao Outro, e assim esta relação é fundamental como em Paul Ricoeur.
O autor propõe em Totalidade e Infinito uma nova escolha para a compreensão do ser em que a exterioridade não seja sacrificada, assim a relação com o Outro e com o “mundo” exterior é reflexo e caminho para a interioridade, nela encontra uma relação com o todo e infinito.
Esta relação do eu com o rosto do Outro que apresenta uma resistência ética, para o autor, é pela sua epifania, pela sua “aparição” (categoria fundamental na fenomenologia), que a exterioridade do ser infinito pode se manifestar como resistência.
O seu pensamento é mais complexo, mas podemos entender que a debilidade e limitação do eu, se mantida em tensão com a exterioridade e com o Outro, desvela o infinito e nossa relação com ele, que não pode ser outra que o reconhecimento de sua “transcendência”.
Levinas, E. Totalidade e infinito. Lisboa : 70, 1988.
A verdadeira ascese
Não há definições claras, nem na psicologia, nem na sociologia e na moral daquilo que seja uma verdadeira alegria equilibrada, ou se desvia para uma euforia que é manter a alegria em níveis elevados, o que não é possível todo o tempo, ou sua compensação, que é diminuir para níveis nostálgicos e baixos que não pode mais que um contentamento.
Também na filosofia de falou sobre alegria e euforia, para derivada do grego (euphoria) que significa sustentar facilmente o que carrega (phoros), porém o termo aparece em termos modernos em 1875 pra referir-se ao contentamento experimentado pelos viciados em morfina, sendo também característica daquilo que se chama transtorno bipolar.
Tudo depende do desejo de elevação humana a um estágio em que estando mais alto seja sustentável (carregado – eu + phoros), assim pode-se supor uma subida, uma ascese.
Peter Sloterdijk conceituou a sociedade atual como tendo uma ascese desespiritualizada, claro que sua espiritualidade não se refere a um culto ou crença definida, porém questiona que esta subida é hoje sem sustentação espiritual, sem uma verdadeira ascese.
A metáfora que Sloterdijk usa das esferas, mais uma vez com alusões explícitas a Heidegger, se referir às construções das esferas íntimas e imunológicas, é a da casa (Haus ou Gehäuse), não é apenas um lugar que oferece proteção, mas também constitui uma esfera psíquica, espiritual e intelectual para esta “ascese”.
Não há subida sem esforço, e muitas vezes sem sacrifícios, e não há subida se não for para o alto, assim uma ascese não é um exercício um treino, mas uma vida prática de ascender.
Portanto a alegria sem esforço para a vida, para o pão de cada dia, para o progresso humano e não apenas material é falsa ascese, não tem sustentação, desmorona após o “exercício” e se pode-se comparar a subida de um monte, deve-se lembrar para ao descer suportá-la no alto.
Discursos, apoteoses e vertigens são buscas quase intermináveis nos dias de hoje, frases de efeito não produzem vida, não dão alegria e paz duradoura as pessoas, posse de sabedoria falsa, de alegria e elevação falsas, porque desmoronam no dia seguinte diante da realidade.
Promessas de paraíso terrestre, enriquecimento e bens de consumo não passam de euforia, de falsa ascese, a posse de um bem não significa necessariamente a felicidade e a paz interior, o que todos homens almejam, mais ainda nos dias de hoje, um pouco de paz e alegria durável só é possível com uma verdadeira ascese, sem abdicar dos bens da vida e do respeito mútuo.
A alegria passará e uma quarta-feira de cinzas virá e então enfrentemos as dificuldades com coragem e determinação, uma ascese verdadeira sabe cada passo que deve dar.
Estratégia russa e israelense
De um lado uma potência a esquerda, que não negocia com opositores e não abre mão do poder, de outro uma potência ocidental onde a guerra pode ajudar a manter no poder as forças de direita em coalisão.
As guerras são políticas e não podemos vê-las apenas pela ótica de ditadores e genocidas, ainda que qualquer guerra se fundamente na ilegitimidade de matança de civis e mesmo dentro dos parâmetros de acordos internacionais sobre a guerra, eles sejam ultrapassados.
Qualquer narrativa que haja esconde o ódio e a vingança contra opositores, a ira e a violência como fundamento, usando para isto discursos de virilidade, ideologias do pensamento único e até mesmo apelos humanísticos que são ultrapassados a partir da primeira batalha.
A análise crítica é que não haverão recuos, em recente discurso Putin declarou que não há possibilidade de derrota na Ucrânia, isto é, usaria as catastróficas armas nucleares ou recursos próximos disto, porém atenua dizendo que não há interesses de invasão na Polônia e Letônia.
Apesar de terem eleições próximas, o único opositor russo que Putin respeita, outros já estão presos ou desaparecem presos ou mortos, não há possibilidade de qualquer mudança no poder.
Em Israel, o presidente Netanyahu ameaça mandar tropas a Rafah, campo de refugiados na fronteira com o Egito, que tem um tratado de paz com Israel a 45 anos, também o presidente americano Biden pediu que não sejam enviadas tropas para lá, mas a proximidade das eleições israelenses exige um aceno para a direita mais radical em Israel.
A diretora executiva da UNICEF, Catherine Russel, disse que os civis em Rafah devem ser protegidos, pois não tem para onde ir: “cerca de 1.3 milhão de civis estão encurralados, vivendo nas ruas ou em abrigos. Eles precisam ser protegidos. Eles não têm nenhum lugar seguro para onde ir”, disse segundo a imprensa internacional.
A lógica da guerra é que favorece os ditadores e não permite que qualquer princípio mais humano e democrático seja respeitado, é a ausência de serenidade e tolerância a opositores.
A cura de mentes e corações
É cada vez mais comum o apelo aos bens materiais, ao fecharmos em si e uma falsa ideia sobre o que é a felicidade, almas e corações feridos que buscam a felicidade onde não está, podem ter uma consolação temporária, mas não é gaudio, felicidade equilibrada e paz.
Outro livro de Sêneca bastante fundamental para seu pensamento é da tranquilidade da alma, o homem moderno vive a exterioridade, erroneamente chamada de objetividade ou materialidade, porque as coisas (os entes) são parte de aspectos ontológicos e devem ser pensados e cultivados adequadamente na interioridade, que não é a subjetividade, mas alma.
Disse o filósofo Romano, que postamos ontem sobre a Ira, agora sobre a alma:
“Se o homem tivesse a oportunidade de olhar para dentro de si próprio, como se torturaria, confessaria a verdade e diria: “Tudo que tenho feito até agora, preferia que não tivesse sido feito; quando penso em tudo o que disse, invejo os mudos; tudo o quanto desejei, a maldição de meus inimigos; tudo o que temi. Ó deuses justos! Melhor não tivesse desejado. Fiz muitas inimizades, e o ódio substituiu a amizade (se é que há amizade entre os maus), e nem sou amigo de mim mesmo.
Embora escrito no início da era cristã, o autor Da tranquilidade da alma, reflete a dificuldade que é para o homem comum e também para o sábio manter a sua serenidade, perante um espetáculo de injustiça e de baixeza (vejam como é antigo isto), do qual é testemunha todos os dias, é justamente o contraponto da Ira, do ódio e do confronto.
O texto começa com uma carta imaginária escrita por Sereno (claro é de propósito o nome): “eu te direi o que está me acontecendo, e tu encontrarás um nome para essa doença”, e ao final afirma: “Às vezes, a minha alma se eleva com a magnitude do pensamento, torna-se ávida por palavras e aspira às alturas. Assim o discurso já não é mais meu [grifo nosso]. Esquecido das normas e dos critérios rigorosos, elevo-me e falo com a boca que não é mais minha”.
A partir de então refletirá sobre a maneira de contornar obstáculos que impedem a paz.
Embora o discurso seja moralista e ético, e não é menos importante por isto, a elevação que Sêneca almejou não pode encontrar outro lugar senão numa ascese espiritual, também está em outras culturas, o budismo é um elevação no caminho das virtudes, Ghandi usou a paz como um exercício política para liderar a Índia, e no caso do cristianismo são as “curas” de Jesus.
Diz o texto Bíblico, ao verem a cura de um surdo-mudo (Mc 7,37): “Ele faz bem todas as coisas. Aos surdos faz ouvir e aos mudos falar”, e também curou leprosos “impuros”.
Sêneca. Da Tranquilidade da Alma (wordpress.com) . trad. Lucia Sá Rebello e Ellen Itanajara Neves Vranas. Porto Alegre, RS: LP&M Pocket. 2009.