Arquivo para a ‘Linguagens’ Categoria
Os passos de caranguejo e a guerra
O livro de Umberto Eco: “A passo de Caraguejo: guerras quentes e populismo mediático” (edição portuguesa de 2012) é de mais de uma década atrás, mas atualíssimo, Eco faleceu em 19 de fevereiro de 2016, mas estivesse vivo teria muito a dizer, porque sua visão é profética.
Falava do retrocesso global, este é o passo do caranguejo, o ressurgimento do criacionismo, o rádio pelo iPod (agora em desuso), via no renascimento das nações não um período afirmativo de identidades culturais e sim “depois da queda do Muro de Berlim, a geografia política da Europa e da Ásia mudou radicalmente, tornando-se claro que estávamos a andar para trás. Os editores de atlas viram forças a … inspirar-se nos velhos modelos anteriores a 1914, como a sua Sérvia, o seu Montenegro, os seus Estados Bálticos e assim por diante” (ECO, 2022).
Via também o renascimento do criacionismo e tantas outras cosmovisões absurdas num processo de andar para trás como “os passos do caranguejo”, e quando menos esperamos a guerra e os novos modelos de expansionismo e colonização, e já alertava para o populismo midiático, hoje mais evidente.
Porém numa visão mais profunda Max Weber apontava já no início do século passado “o desencantamento do mundo”, forçado a uma visão excessivamente racional, onde via o modelo social: “não aquilo que pesa sobre os indivíduos, mas o que se veicula entre eles”, assim o que parece fora do mundo objetivo, o mundo das ideias é aquele que se veicula entre os homens.
Pierre Bourdieu volta ao “desencantamento” (Bourdieu, 1979) para analisar os pressupostos do iluminismo e de Kant como ponto de partida destas ideias, a ideia que é no saber científico, consolidado pela Revolução Francesa e seus modelos de estado que conjugado com a técnica, proporcionaria uma mudança drástica no estilo de vida humano, trazendo uma paz duradoura.
Porém além das ignoradas guerras coloniais, também duas guerras mundiais foram deflagradas, e os maus acordos no final de cada uma delas levou a outras, o que de delineia agora é uma repetição de erros, onde a razão de cada estado quer prevalecer sobre o outro, e o racionalismo sem alma (e desencantado) nos mostra um mundo de horror, ódio e intolerância.
Bourdieu alertava para o mecanismo da democracia direta não se tornar elemento da opressão simbólica, e que a maior parte das palavras que dispomos para o social estão entre o eufemismo e a injuria, é como querer perpetuar o estado de segregação e opressão vigente.
BOURDIEU, P. O desencantamento do mundo: as estruturas econômicas e estruturas temporais. Trad. Silvia Mazza, São Paulo: Editora perspectiva, 1979.
ECO, U. O passo do caranguejo: guerras quentes e populismo midiático. Trad. Sérgio Mauro. São Paulo: Record, 2022.
WEBER, M. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. José Marcos M. de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
A dor, a Alma e o Ser
Numa das passagens mais marcantes, ao menos para os que imaginam um mundo além do corporal, Byung Chul Han introduz a narrativa como parte da cura: “A dor sem sentido é possível apenas numa vida nua esvaziada de sentido que não narra mais” (HAN, 2021, p. 46).
Reivindica e inclui até [Walter] Benjamim em “Imagens do Pensamento” que fala de mãos incomuns que transmitem a impressão que seria como “se narrassem uma história” (idem).
Também cita mães que com a “força curativa” sentam ao lado da criança e lhe contam uma história, e após explicar o fluxo narrativo com uma barragem para a dor, conclui: “é a dor que põe primeiramente em [seu] caminho”. (HAN, 20221, p. 47).
Vivemos hoje um tempo pós-narrativa, diz o autor, não é a narrativa mas a contagem que determina a vida, “a narrativa é a capacidade do espírito superar a contingência do corpo” (Han, 2021, p. 48), um corpo sem espírito é um corpo que ignora a própria alma.
Nela “o corpo disciplinado que tem que repelir muitas dores que vem de fora, é pobre de sensibilidade” (pag. 49), uma intencionalidade totalmente diferente o caracteriza, ela não se ocupa consigo mesmo, mas com algo que vem de fora, e é essa “algofobia” que nos domina.
“Essa introspecção narcisista, hipocondríaca, é certamente, corresponsável por nossa hipersensibilidade (à dor), chama isto de “síndrome-da-princesa-da-ervilha” lembrando um conto de Andersen onde a presença de uma ervilha sobre o colchão da futura princesa provoca tanta dor que ela não consegue dormir a noite, e é este tipo de doença que acontece com muitas pessoas.
Este tipo de paradoxo da pós-modernidade é sentir cada vez mais dor, com cada vez menos, ao ponto que a dor não é compreensível, não tem lugar na vida e parece não fazer parte da existência e isto é uma forma de positividade do Ser, onde não há nenhuma negatividade, e torna o Ser não compreensível, ou menos sem qualquer sentido.
Assim diz o autor, “se a ervilha dolorosa some, então as pessoas começam a sofrer com os colchões moles” e conclui: “É justamente, a própria e persistente ausência de sentido da vida que dói” (HAN, 2021, p. 51).
O que pensar então de dores atrozes da guerra, de vítimas inocentes, de crescentes ódios políticos e ideológicos, tudo parece ruir num universo sem sentido, quando a dor compreendida e com lucidez sentida e vivida nos retornaria o equilíbrio do Ser, e a plenitude de nossa nossa existência, distante hoje, mas possível num futuro próximo.
HAN, Byung-Chul. A sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2021.
A sociedade paliativa ou a ausência da dor
A sociedade paliativa explica Byung Chul Han nada tem a ver com a medicina paliativa, pois explica o filósofo coreano-alemão: “Assim, cada crítica da sociedade tem de levar a cabo uma hermenêutica da dor. Caso se deixe a dor apenas a cargo da medicina, deixamos escapar o seu caráter de signo” (Han, 2021).
Lembra um ditado de Ernest Jünger: “Dize tua relação com a dor, e te direi quem és!”, assim não é possível uma crítica sociedade sem uma hermenêutica da dor, a relação com cada sofrimento não só o produzido pela história, mas aquele que está na particularidade de cada Outro.
“A sociedade da sobrevivência perde inteiramente o sentido para a boa vida. Também o desfrute é sacrificado à saúde elevada a um fim em si mesmo” (Han, 2021, p. 34).
Lembra e cita Agamben na sua visão de homo sacer e via nua: “Sem resistência sujeitamo-nos ao o estado de exceção que reduz a vida à vida nua” (Han, 2021, idem).
Na sociedade paliativa “A arte de sofrer a dor se perdeu inteiramente para nós … A dor é agora, um mal sem sentido, que deve ser combatido com analgésicos. Como mera aflição corporal, ela cai inteiramente fora da ordem simbólica” (Han, 2021, p. 41), os grifos são do autor.
Assim hoje remove-se a dor qualquer possibilidade de expressão, ela está condenada a calar-se, e “a sociedade paliativa não permite avivar, verbalizar a dor em uma paixão” (p. 14), grifo do autor.
HAN, Byung-Chul. A sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2021.
VARGAS, Cecília. Systems of Pain/Networks of Resilience project in one gallery. Curated by Cecilia Vargas, Dickson Center at Waubonsee Community College, June 2018 (foto).
Um tapa no Oscar
Tinha decidido não comentar os melhores do Oscar este ano,primeiro porque não considero “Ataque de cães” tão bom filme, quanto por exemplo, Duna e Não Olhe para cima, não apenas pelos enredos, mas principalmente pelo conjunto da obra, Duna acabou levando vários prêmios merecidos, mas nenhum dos principais.
O tapa de Will Smith em Chris Rock roubou a cena, mas o comentário da diretora Jane Campion que ganhou melhor direção, em outro evento sobre Serene e Venus Williams: “vocês são maravilhosas, no entanto, não precisam competir com os homens como eu”, também caiu mal e seu prêmio perdeu um pouco do brilho.
Pouco tempo depois do tapa de Will Smith ele receberia o prêmio de melhor ator, é um grande ator, mas seria mais grandioso se esperasse este momento para dizer sobre o papel que fez do pai das Williams em defesa da família e daria um golpe muito mais duro em Rock, por ter feito um comentário infeliz sobre a perda de cabelos de Jada Pinkett, mulher de Will.
Muita gente saiu em defesa de Rock, dizem os jornais que seu show agora bate records de bilheteria, e Will expôs Jada porque agora procuram saber da vida dela e de seus relacionamentos, e assim como sua doença alopecia, enfim na minha opinião, o momento de resposta a Chris Rock poderia ser o momento da estatueta, e neste caso não vou comentar o mérito, porém o papel de Denzel Washington na Tragédia de MacBeth merece destaque.
Outro comentário é o prêmio de melhor atriz, fui ver depois da indicação trechos (não vi o filme todo) Os olhos de Tammy Faye (foto), nem o filme nem a atriz vencedora (Jessica Chastain) me impressionam, eu sei que a Academia seguem alguns clichês: ironia, certo humor e outros tiques.
Fui ver a popularidade, pouco mais de 60% das pessoas gostaram do filme, não estou fora então.
Vi a atuação de Meryl Streep em Não Olhe para cima, e merecia ao menos a indicação, claro já ganhou outros, é uma atriz consagrada (o papel espetacular de Margareth Thatcher na Dama de Ferro, por exemplo), mas mérito é indiscutível e não importa a estatura do ganhador.
O tapa de Will Smith e a bola fora esquecida da vencedora de Melhor Direção chamaram a atenção para um Oscar a meu ver sem brilho e ao gosto da academia, o tapa foi um erro só isto.
Regenerar o humanismo
Em suas comemorações de seus 100 anos, que Edgar Morin fez no ano passado, e está em seus livros de memórias “Leçons d´un siêcle de vie” (lições de um século de vida), muito antes da guerra atual ele dizia sobre resistir a dominação, à crueldade e à barbárie, e pedia novo humanismo, o qual esteve sempre presente em sua literatura.
Retomar a consciência da complexidade humana, e incluí-la num novo patamar que superasse o antropocentrismo, este era o humanismo retomado no renascimento, e sobretudo criar um mundo onde fosse possível uma cidadania mundial com respeito as diversidades culturais.
Ele que lutou na resistência ao nazi-facismo, não deixou de mostrar seu arrependimento ao período do stalinismo, sabia que estávamos num empasse entre estes dois pensamentos que poderiam nos levar a barbárie, profético em relação a escalada atual da guerra.
Não é um desenvolvimento isolado, já em outras obras suas como O Praíso Perdio e o Método, suas noções chaves de conceitos como autonomia, uberdade, amor, indivíduo e sujeito foram se desenvolvendo salvando valores que são inerentes a eles, assim como manter uma dignidade humana potencialmente ameaçada, diria agora, o processo civilizatório como um todo.
Em o Método II não hesita em denunciar as ilusões do humanismo tradicional (a direita ou à esquerda) e procura revitalizar o seu sentido ético e antropológico: “Não se trata de recusar o humanismo. É necessário, como veremos, hominizar o humanismo, e portanto enriquecê-lo, baseando-se na realidade do Homo complex” (Morin, Método II, p. 398).
A eleição do homem como centro do mundo, e a rejeição tanto à Deus (ou a alguma dividinda superior a qual nos submetemos) e ao respeito a natureza a qual a ciência julgou dominar é um passo fundamental para regenerar o humanismo ou caminhamos na lógica da dominação.
Tudo se passa como se a história começasse no auge do capitalismo do século XVIII ou do comunismo do início do século XX, as escassas referências a verdadeira cultura tanto grega como judaico-cristã, direta ou indiretamente condenadas, é o corte desta raiz humanismo.
Não basta dizer que é superada, sem qualquer referência histórica, por exemplo, à Socrates e a Heráclito onde há um aprofundamento sobre a educação e interioridade da consciência.
A questão da emergência do Ser prende-se a outra indissoluvelmente ligada a da liberdade, o homem anulando sua autonomia (dizem em prol de certo “humanismo” antropocêntrico) é vitima do fatalismo, da ausência de horizontes que não sejam o da dominação do Outro, aquela cultura ou ordem que é diferente da outra e que também deve ser respeitada.
Nicolau de Cusa, Ficino, Pico della Mirandola, exploraram esta perspectiva, em Ficino, por exemplo: a providência (que governa uma ordem espiritual), o destino (que dirige aos seres animados) e a natureza (que permite ao Ser permanecer no mundo como corpo vivo ao qual os seres se submetem), ainda que precise ser atualizada em termos de linguagem, não é antropocêntrica.
Morin, E. O Método vol. II, Europa-América, Lisboa, Ed. Francesas: Paris, 1997
Do apenas humano ao sobrenatural
Todas as forças que se concentram numa polarização veem apenas o aspecto humano de um conflito, como o atual na Ucrânia que pode a qualquer momento se tornar mundial, já com alguns sinais visíveis coma visita da vice-presidente dos EUA à Polônia e as reações Russas às sanções.
A esperança de paz e de uma solução para um conflito tão perigoso, felizmente alguns técnicos da Ucrânia poderão ajustar os problemas na Usina de Chernobyl, mas existem inúmeras outras na Europa, incluindo a já ocupada pelos russos, a de Zaporizhzhia, uma das maiores da Europa.
Existe um lado sobrenatural, como o de valores que traçamos no post anterior, porém há um mais profundo, muitas como as profecias de Medjugorje (ainda não são aprovadas pela igreja católica) que fala de uma aparição de Maria como “rainha da paz” acontecem a 40 anos, desde a primeira aparição vista por 7 videntes, que falava da guerra, castigos e um novo tempo na história.
O importante é acreditar em forças além das humanas que possam ser mobilizadas incluindo a luta pela paz e pelo respeito aos povos e nações, todos os que defendem esta posição estão de alguma forma cooperando com o aspecto sobrenatural da defesa da paz e da convivência humana.
Neste caso é extremo, pois a própria civilização pode estar em jogo em caso de uma guerra nuclear, os limites começam a ser ultrapassados de um lado bombas até em maternidades e de outro uma russofobia que quer abolir até clássicos da literatura como Dostoievski que teve um curso gratuito cancelado na Itália, não podemos confundir crítica radical a atitudes ditatoriais como prática que são também autoritárias.
Para os cristãos o momento de revelação do aspecto sobrenatural de Jesus é no monte Tabor, onde ele para apresentar a sua realidade sobrenatural aos apóstolos escolhe três: Pedro, João e Tiago, a escolha em si já é interessante: Pedro apóstolo chamado a fundar Sua igreja, João o apóstolo que Jesus amava e Tiago chamado de apóstolo de menor, porém foi grande apóstolo.
Um episódio bíblico conhecido Jesus “Andando sobre a água” foi retratado no quadro de Ivan Konstantinovich Aivazovskii (1817-1900) nascido na Criméia, justamente uma região de conflitos.
Diz a leitura que ao chegarem ao Monte Tabor, enquanto orava (Lc 9,29-30): “seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante. Eis que dois homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e Elias”, claro aos que creem, ali Jesus revela-se como Deus.
Não importa a crença, importa mais a ideia de uma humanidade capaz de viver a paz e viabilizar o processo civilizatório que nos afaste das injustiças, dos flagelos e do ódio.
Avançar para uma verdadeiro pensamento
Nenhum pensamento é completo se não possui uma espiritualidade, aquilo que a modernidade chama de subjetividade porém que está separada da objetividade como é próprio do dualismo, cria duas realidades e nenhuma delas é parte do todo.
Contemplar o todo significa considerar a profundidade do nosso Ser e entender que fazemos parte de um imenso universo cheio de mistérios, e que nossa alma anseia pelo infinito e é para lá que caminha uma verdadeira espiritualidade, que não está separada da substancialidade da vida (o que é chamado na modernidade de objetividade, que é só a parte) e que sem ela não contemplamos e vivemos o todo, vivemos uma vida segmentada.
Substituí-la por uma pequena parte, pequenos vícios e prazeres, é caminhar na frivolidade, na superficialidade, nenhuma ascese verdadeira prescinde de uma espiritualidade, e não há espiritualidade sem contemplar a alma humana como parte do todo de nosso Ser, assim ultrapassar a antropotécnica e chegar uma onto-antropotécnica que olha para as coisas e também para a alma.
Muitos exercícios, do físico ao espiritual, são feitos buscando esta ascese, neste ponto Sloterdijk tem razão quase todas elas são “desespiritualizadas” porém sua explicação é incompleta porque não há em suas esferas uma escatologia, este raciocínio é feito especialmente em Esferas II, qual é o todo para o qual caminhamos, é possível ir até Ele.
Sim é possível se avançamos para águas mais profundas, buscar a completitude de nossa substancialidade superando o antropocentrismo e entendendo a Terra e o Universo como nossa casa, nossa morada, mas principalmente caminhando e lançando as redes para pensamentos e espiritualidades mais profundas, há em alto mar, ainda que revolto, aquilo que nossa alma anseia: o eterno.
Diz a passagem bíblica Lc 5,4-5, logo após Jesus ensinar as multidões e Pedro (Simão) reclamar que não haviam pescado nada, Jesus lhe responde: “quando acabou de falar, disse a Simão: “avança para águas mais profundas, e lançai vossas redes para a pesca”, Simão responde que trabalhou a noite inteira e não pescou nada, mas obedeceu e lançou as redes.
O resultado foi uma grande pescaria, vale aqui a substancialidade dos alimentos e também a espiritualidade de avançar “pra águas mais profundas”.
Diversas reações ao pensamento dominante
Em países que foram colônias da Europa, emergiu o termo decolonização que se diferencia de descolonização porque penetra justamente no pensamento e na epistemologia dominante (alguns autores chamarão por isto de epistemicídio) que não é a simples liberação de dominação, mas também o ressurgimento de culturas subalternas.
Assim apareceram autores na África (como Achiles Mbembe), na América Latina (Aníbal Quijano e Rendón Rojas y Morán Reyes), além de autores de cultura originária como os indígenas (Davi Kopenawa e Airton Krenak), porém é possível um diálogo com autores europeus abertos a esta perspectiva como Peter Sloterdijk (fala da Europa como Império do Centro) e Boaventura Santos (fala do epistemícidio e também alguns conceitos de decolonização), há muitos outros claro.
Deve-se destacar nestas culturas também a cultura cristã, vista por muitos autores como colaboradora do colonialismo, não se pode negar a perspectiva histórica e também de doutrina que é a libertação dos povos e uma cultura de fraternidade e solidariedade, ela é também minoritária hoje na Europa e perseguida em muitos casos.
Entre os europeus que defendem um novo humanismo, ou um humanismo de fato já que o iluminismo e as teorias materialistas não conseguiram contemplar a alma humana como um todo, e são por isto um humanismo de uma perna só, entre os europeus destaco Peter Sloterdijk e Edgar Morin, o primeiro que defende o conceito de comunidade como um “escudo protetor” capaz de salvar nossa espécie, e o segundo, um humanismo planetário, onde o homem seja cidadão do mundo e as diversidades sejam respeitadas.
Ambos consideram as propostas populistas, é bom saber que elas existem a esquerda e a direita, devem perder com a crise atual e o consumismo global depende de uma atmosfera de “frivolidade” ou de superficialidade que a humanidade será obrigada a repensar, não voltaremos aquilo que consideramos estável, os próprios escritores originários, como Davi Krenak destaca em várias entrevistas, o que queremos voltar não era bom, não havia uma felicidade e bem estar real naquilo que era considerado normal.
Como aspecto de construção do pensamento, em Sloterdijk destaco a antropotécnica, para ele a modernidade foi uma desverticalização da existência e uma desespiritualização da ascese, enquanto o conhecimento e a sabedoria proposta na antiguidade sair do empírico e do enganoso para ir em direção do eterno e do verdadeiro, como para ele não existe a religião, seria um movimento de sabedoria e conhecimento, e não apenas uma ascese de exercícios, onde a alma imortal foi trocada pelo corpo.
Já na perspectiva de Edgar Morin é o hologramático que pode dar ao homem uma visão do todo agora fragmentada pela especialização e pela particularidade de cada ramo da ciência, paradoxo do complexo sistema no qual o homem é uma parte que deve se integrar ao todo, onde “não somente a parte está no todo, mas em que o todo está inscrito na parte”, a pandemia nos ensinou isto, mas a lição ainda foi mal aprendida, em plena crise pandêmica resolveu-se que está tudo liberado e não há protocolo de proteção de todos em cada um (cada parte), e não há co-imunidade.
A verdade científica e a humildade
A partir da revolução copernicana, com a descoberta de Galileu e com os avanços científicos deveria estar mais claro, ainda mais agora com as descobertas de forças desconhecidas do universo e com o novo telescópico James Webb, deveria estar cada vez mais claro que o homem não é o centro do universo, embora seja capaz de muito estrago se não deixar de lado a visão antropocêntrica e iluminista que o coloca como um “todo-poderoso”.
Nessa linha seguiu também Schopenhauer um dos primeiros a critica a “coisa-em-si” kantiana e seu sistema metafísico de colocar em seu lugar uma “Vontade” (que é a mesma coisa de quanto o homem foi colocado com centro do universo e a terra onde habita o seu centro), abriu uma perspectiva filosófica nova onde nada existe de propósito, tudo e todos somos consequencias de um sistema sem fim, com determinações e objetivos, e que somos responsáveis por um destino ferindo ao outro, estamos nos ferindo.
Desta forma Schopenhauer quis representa de maneira compassiva que pode representar em si a dor de outro, e isto nos valeria um grande passo para paz, embora seja capital a frase deste filósofo: “O homem é propriamente falando, um animal que agride” (Arthur Schopenhauer), que volta ao “homem lobo do homem” e justifica um estado agressor.
O conhecido fundamento da ética kantiana é o imperativo categórico (age de tal forma a ser modelo para os outros) que serve para orientar o agir dos sujeitos, e este por sua vez é princípio de um “factum” da razão, que faz parte do mundo numêmico, o qual consegue influenciar (não sentido princípio) o mundo fenomênico, de maneira a orientar as ações do sujeito racional de forma universal e necessária, Schopenhauer neste ponto faz uma crítica importante, embora não seja suficiente para uma crítica profunda desta ética.
Numérico refere-se àquilo que é conhecido sem fazer parte dos sentidos, é uma crítica ao empirismo porém não reconhece o fenomênico (que se manifesta como coisa).
Para ele, o programa ético kantiano é desprovido de sentido porque possui como fundamento último da ação um aspecto metafísico que desqualifica ações que vem de qualquer outra instância que não seja a razão, a relação que existe entre a razão e a metafísica (veja que a metafísica de Kant não faz parte do mundo, mas não é teológica nem divina), é que os sujeitos racionais (transcendentais em relação aos objetos) partilham do incognoscível, uma vez que conseguem pensar em coisas metafísicas, mas não conhece-las.
Esta lacuna onde não existe o mistério, é natural que tenha se distanciado da transcendência divina e teológica, porém é uma razão objetivada, sem aspectos subjetivos, ou seja próprios do sujeito, e Schopenhauer aponta corretamente para a dor do outro que é capaz de conceber, porém este princípio de compaixão não terá um desenvolvimento, outros autores fenomenológicos trata da questão do Outro, e este sim é um princípio para a crítica da razão.
A linguagem e a empatia
José Saramago expressou assim sobre a opinião que as pessoas têm sobre diversos assuntos: “O problema não é que as pessoas tenham opiniões, isto é ótimo. O problema é que tenham opiniões sem saber do que falam”, em tempos de mídias sociais é muito comum repetir ilustres desconhecidos porque disseram uma frase de impacto, porém quando se coloca num contexto adequado ou se penetra no assunto em questão, pode-se ter uma opinião mais sensata.
Tudo é polêmico hoje e de certa forma quase tudo tornou-se mera opinião, a doxa dos gregos, neste contexto o problema da linguagem se extrapola e a empatia é cada vez mais rara na linguagem cotidiana, se o problema na origem da sociedade moderna na antiguidade clássica era o sofisma, tudo se argumentava apenas para agradar o poder vigente, o problema hoje é ver isto disseminado na linguagem cotidiana, o cuidado com a linguagem, o respeito ao outrem e a escuta respeitosa devem fazer parte da linguagem empática.
Não é a política central apenas que se deteriorou, ou a democracia que entrou em crise, as escolhas de líderes salvadores da pátria, a pouca discussão dos problemas de fato que atingem a população, em plena expansão pandêmica pouco se fala de medidas efetivas contra ela, só para dar um exemplo grave, todo o problema parece ser a vacinação das crianças, que é urgente sem dúvida, porém todos tem diversos casos de infecção familiar ou próxima nas vizinhanças onde mora.
Reeducar a linguagem cotidiana, reintroduzir o respeito a qualquer cidadão, de qualquer raça, cor ou religião, deveria ser um esforço comum para melhorar a empatia social.
Até mesmo na linguagem religiosa, antes extremamente respeitosa e amorosa parece evoluir uma concepção mais separatista e isolacionista onde o diferente é isolado e malvisto.
É preciso encontrar espaço, tempo e local onde as verdades primeiras possam ser ditas, onde as culturas originárias possam se manifestar e serem ouvidas.
Em muitas culturas, religiões e teorias há um nó central lá onde as verdades mais profundas estão ditas.
A passagem bíblica em que Jesus revela quem de fato é e a que veio deveria ser o ponto central de análise de sua linguagem e sua missão, foi a Nazaré cidade onde fora criado e podia ser visto como uma pessoa comum, uma atitude empática, indo a sinagoga em dia de sábado deram o livro do profeta Isaías (Is 61,1-2) e ali Ele leu: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa-Nova aos pobres: enviou-me para proclamar a libertação dos presos e, aos cegos, a recuperação da vista; para dar liberdade aos oprimidos, enviou-me para proclamar um ano de graça da parte do Senhor”, fechou o livro e depois surpreende a todos ao dizer: “hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir” (Lc 1,14-21). (Na foto a assinatura do profeta Isaías, National Geographic).