
Sobre o paliativo e a dor
Byung-Chul Han escreveu “Sociedade Paliativa: a dor hoje”, em plena pandemia (o livro original é de 2020), o que era praticamente um desafio a um mundo assustado com milhares de mortes, isolamento e uma corrida a medicamentos sem os devidos testes de contraindicações, mas o livro é sobre a modernidade onde “a dor é vista como um sinal de fraqueza” (Han, 2021, p. 13).
Entre várias análises os pensamentos de E. Jünger (sobre a dor) e M. Heidegger (Acerca de Ernst Jünger), escreveu o primeiro “Me diga a sua relação com a dor e eu te direi quem és!” em replica “pretensamente irônica de Heidegger”, Han cita Heidegger que “observa: “Me diga a sua relação como ser, caso você sequer tenha alguma ideia a esse respeito, e te direi como você se se você se ´ocupará´ com a ´dor´ou se pode refletir sobre ela” (Han, 2021, p. 84-85).
Heidegger tem em mente, pontua Han, “antes, uma ontologia da dor” … “ele quer penetrar, por meio do ser, na “essência da dor” (idem, p. 85) … “Nós, porém, somos sem dor, não nos apropriamos [vereigen] a essência da dor” (citação de Han das Conferências de Bremen e Freiburg).
Cita mais a diante: “o pensamento é a dor, a paixão pelo segredo que ´se furta oscila oscila na retirada´”(citando outro texto de Heidegger A caminho da linguagem, p. 87), ela desvela o ser, ela é “santuário do ser”, ela chega até a vida” e este “santuário do nada, daquilo, a saber, que em todos os sentidos nunca é meramente um ente, mas que ao mesmo tempo, direciona, até mesmo como um segredo” (p. 89, citando novo texto Conferências e preleções).
E conclui, por raciocínio filosófico, que “a morte significa que o ser humana está em relação com o indisponível, com o inteiramente outro que não vem dele” (idem, p. 89), poderia ser muito bem também um desenvolvimento teológico, aquele que Heidegger, Arendt e Han diferenciam quando falam da imortalidade humano e da eternidade como o puro Ser.
Em “Vita Contemplativa” Han refletindo sobre Hannah Arendt escreve: “contudo, nenhum ser humano consegue, prossegue Arendt, demorar-se na experiência do eterno. Ele precisa retornar ao mundo circundante. Tão logo, porém, um pensador abandona a experiência do eterno e começa a escrever, ele se entrega a vita activa, cuja finalidade última é a imortalidade” (Han, 2023, p. 145).
Arendt se admira com o Sócrates que não escreve, disse Han, com isto renunciou a imortalidade, pode-se acrescentar que Jesus também não escreveu, e no seu caso sofre a “paixão” com dores sobre requintes de tortura pública, até sua morte pública ao lado de dois ladrões, com isto “viveu o inteiramente outro” como pensou Han, e pode experimentar a passagem (Páscoa) da vida para a morte e da morte para a vida, eis a razão também para Ele.
HAN, B.-C. Vita Contemplativa. Petrópolis, Vozes, 2023.
HAN, B.C. A sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis, Vozes, 2021.
Além do ser-no-mundo, sua superação
Byung-Chul Han interpreta que Heidegger vai realizar a sua virada na passagem do “agir para o ser” e é daí que surge a sua obra maior: Ser e Tempo (primeira publicação de 1927 nos Anais de Filosofia e Pesquisa Fenomenológica editados por Edmund Husserl).
Escreve Han: “em oposição ao medo, que meramente se relaciona com algo no mundo, o “de que” da angústia é o mundo como tal: “aquilo de que a angústia se angustia é o próprio ser-no-mundo. O ente dentro do mundo […] afunda na angústia. O ´mundo´ não consegue fornecer mais nada, tampouco o ser-aí-com os outros” (Heidegger, 2005, p. 179).
E Han acrescenta que esse mundo que escapa da angústia não é o mundo geral, mas “o mundo familiar, cotidiano, no qual vivemos sem questionar” (Han, 2023, p. 76), e acrescentar o “impessoal”.
O impessoal como “ninguém” retira do “ser-aí o fardo da decisão e da responsabilidade ao livrá-lo da ação em sentido restrito. O impessoal deixa à disposição do ser-aí um mundo pré-parado no qual tudo já foi interpretado e decidido”, não sei se no alemão tem esta conotação, mas no português este “parar”, esta pausa na vida da ação é aquilo que a modernidade busca.
É este impessoal, explica Han, que repele toda perspectiva autônoma do mundo, e que Heidegger considerava a “inautenticidade” ou “decadência” e que impede a realização do Ser.
Em contraste com a visão idealista, Han descreve que “o tédio não é, para Heidegger, nenhum pássaro onírico que choca o ovo da experiência. Ele é interpretado, igualmente, como um apelo á ação” (p. 78), o apelo que hoje é tão desastradamente impelido pelas mídias sociais.
O que Heidegger reivindica através da recusa deste apelo, é “justamente a possibilidade da sua ação [do ser-aí] e inação” (Han, p. 78 citando Heidegger).
Heidegger e Han chegam até mesmo a comparar isto a uma “morte” (claro não exatamente no sentido físico, mas da afirmação do eu), e “essa morte me liberta para o outro. Em vista da morte, desperta uma serenidade, uma amabilidade com o mundo” (Han, 79 citando sua obra Morte e Alteridade).
É esta abertura que permite superar medos, incertezas, frustrações, inseguranças e tantas angustias cotidianas, delas renascem um novo ânimo, criatividade e alegria para seguir em frente, para superar barreiras e entender a possibilidade um novo horizonte.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Petrópolis, Vozes, 2005.
HAN, B.-C. Vita Contemplativa ou sobre a inatividade. Petrópolis, Vozes, 2023.
Escutar aquela voz “interior”
Qual a voz do mundo que escutamos? ou temos capacidade de desenvolver e saber escutar uma voz interior, tanto Hannah Arendt quanto Byung-Chul desenvolvem isto claramente, porém é preciso recuperar as raízes alemães, por isso Byung-Chul em suas traduções deixa de propósito os termos dispostos [gestimmtes] e ouvir e se colocar de acordo com a voz [stimme].
Assim ele explica como o ser-no-mundo originário articula o correntes e o estar disposto, “não podemos dispor da disposição, antes somos lançados nela, não a atividade”, mas o “corresponder” significa àquilo que “se dirige a nós como voz [Stimme] do ser” (p. 67), assim ouvir e escutar atentamente precede a ação e se dá à disposição.
Assim o “corresponder ouve a voz do chamado […] é sempre necessário … não apenas por acaso e às vezes, um disposto [gestimmtes]”, onde “o falar do corresponder recebe sua precisão” … “antes, ela concebe ao pensado uma De-finição [Be-Stimmheit]” (Han, 2023, p. 68), que vem dos o texto de Heidegger “O que é isto – A filosofia”
Explica Han: “pensar já é sempre disposto; ou seja, exposto a uma disposição que o fundamenta”, e citando novamente o texto de Heidegger: “todo pensar essencial exige que seus pensamentos e proposições sejam extraídos renovadamente, como minério, da disposição fundamental” (Heidegger, citado na p. 69).
Este pensar é no seu amigo, o que os gregos chamavam de pathos e Heidegger recupera, mas lembra na raízes latina o paschein*: “sofrer, aguentar, suportar, entregar, deixar-se carregar, deixar-se de-finir por [algo]” (p. 69), e acrescento aqui, [ou alguém] se pensar novamente na diferença que Arendt e Han fazem entre imortalidade e eternidade, grifo *nosso do hebraico (פַּסחָא), lembrando nosso post anterior sobre a “paixão civilizatória”.
Assim, pode-se reduzir (simplificar é sempre complicado), que podemos ouvir uma voz interior da consciência, mas Heideggeer e Han lembram que a disposição antecede a isto, quer dizer, muitas vezes estamos “escutando” porque temos funções auditivas, mas não temos a disposição e a atenção para de fato ouvir o que a consciência manda.
É claro que ter consciência é muito mais que ter convicções, muitas vezes nossas certezas e convicções atrapalham ouvir esta voz, porque somos humanos e erramos, queremos o eterno, mas nos contentamos como que é passageiro, ouvir exige “meditar”.
Pensar numa verdadeira “pachein” pode ajudar nos momentos de dificuldades, de contrariedades, enfim tudo o que de certa forma é normal na vida e devemos passar, enfim a paixão boa ou má é passagem para um outro lado.
HAN, B.-C. Vita Contemplativa Ou sobre a inatividade. Trad. Lucas Machado, Petrópolis: RJ, 2023.
A grande paixão civilizatória
Guerras militares, guerras de mercado, situações endêmicas (a dengue atualmente no Brasil, por exemplo) e uma retórica polarizadora sem fim é uma crise civilizatória, a base não é a situação conjuntural de agora, ela vem desde o início da colonização e se agravou com duas guerras mundiais.
Parecia no final da segunda grande guerra que com a ONU, o estabelecimento de direitos humanos e os acordos nucleares que tínhamos encontrado a saída, porém a base de todo este processo, temos postado aqui, é um pensamento idealista, que a polarização chama de neoliberal e o outro polo de comunista, porém toda guerra é de pilhéria e morte de inocentes.
Reunidos pela OTAN, os ministros da Defesa europeus (foto) salientaram em reunião finalizada no domingo (13/04), que apesar das negociações dos Estados Unidos com a Rússia, que ambos consideram avanços, a Europa desacredita porque as agressões da Rússia continuam, e ameaçam a região.
Não importa a retórica, a base de todo pensamento idealista/iluminista é um estado forte e muitos países não abandonam este pensamento, a crise tarifária agora é a manifestação do lema de Trump: “American first”, americano primeiro enfrentando até mesmo a Europa.
O pouco que entendo de economia, entendo que há uma interdependência das nações, um carro produzido em qualquer parte do mundo tem peças produzidas no mundo inteiro, os americanos querem que voltem a ser produzidos lá, com as tarifas o carro americano fica mais caro, enquanto a tática da China tem sido produzir barato e dominar os mercados.
Aliás a pedido das montadoras americanas, no quesito produção de carros Trump recuou, no sábado (12/04) recuou também na taxação de smartphones, computadores e chips.
Haverá mais empregos nos EUA, mas isto não me parecia um problema, muita gente ia para lá porque haviam empregos e bem remunerados, porém neste quesito a deportação de ilegais é também no caminho contrário e a falta de mão de obra poderá representar outro problema.
A guerra no Oriente Médio segue cruel com os Houthis, nos ataques o chefe da inteligência do grupo Abdul Nasser Al-Kamali foi morto, e as ameaças ao Irã prosseguem um caminho perigoso.
Há sempre esperança, há sempre negociadores com desejo sincero da paz, o que faz a crise civilizatória avançar é o pensamento imperialista e belicista aumentar com a eleição cada vez maior de governos autoritários, influenciados pelo pensamento iluminista, que veem os países de outros povos como inimigos e não cedem em qualquer processo de negociação.
É uma semana para os cristãos que envolve a paixão de Jesus, parece estar mais próxima de uma paixão civilizatória da humanidade, é preciso pensar nos inocentes, no futuro da humanidade e na paz tão desejada, mas pouco lembrada na hora de algum conflito, é preciso semear a paz.
Vita Activa e disposição
A preguiça foi tratada como defeito por séculos (as vezes injustamente, como acusar desempregados de “vadiagem”), hoje ela se chama procrastinação, no seu limite ela é levada à Síndrome de Burnout ou síndrome do pânico (são diferentes), porém ambas são fruto de uma exagerada dose de pressão, de stress ou de trabalho.
Associações internacionais já reconhecem como um fenômeno que afeta a saúde, o número é muito maior que os registrados pois há medo de perda do emprego, da credibilidade e isolamento.
Assim é preciso caracterizar aquilo que a fenomenologia chama de intencionalidade, usando uma categoria que foi introduzida por Heidegger como disposição, como “um estado de espírito que precede a qualquer intencionalidade dirigida a um objeto”, citando Heidegger: “A disposição já abriu porém, o ser-no-mundo como um todo, e torna primeiramente possível um dirigir-se a [algo]” (Han, 2023, p. 66).
Assim a disposição é necessária, diz Han: “não podemos dispor da disposição”, “a disposição constitui então o quadro pré-reflexivo para atividades e ações”, assim, ela “pode facilitar ou impedir ações de-finidas” (p. 67).
Este quadro do pensamento “não é pura atividade e espontaneidade” … “a dimensão contemplativa habita … o transforma em um corresponder” (idem), isto está delineado no pensamento de Han no início desta página como uma “passividade ontológica originária”.
Não a atividade, “mas o estar lançado” [Geworfenheit] define este originário ontológico, como ser-no-mundo originário, para este ser corresponder significa àquilo que “se dirige a nós como voz [Stimme] do ser” (p. 67), assim ouvir e escutar atentamente precede a ação e dá à disposição.
O “corresponder ouve a voz do chamado […] é sempre necessário … não apenas por acaso e ás vezes, um disposto [gestimmtes]”, “o falar do corresponder recebe sua precisão” … “antes, ela concebe ao pensado uma de-finição” (Han, 2023, p. 68).
Assim a ação exige pela ordem de precedência, um chamado (uma voz), uma disposição e uma intenção e a elas correspondem um pensado de-finido.
Não agindo sobre o pensar, somos impulsionados contra nossa inércia anterior, nossa inatividade não é posta em ação, não há disposição para ela e cria um conflito em nosso ser.
Han a compara a inatividade da máquina, que nunca precede a contemplação, não surge nada quando está parada, é uma inatividade sem qualquer ação é sua ausência.
Se somos impulsionados como máquinas, sem disposição, enfrentamos um desgaste em nosso ser-no-mundo, o “pensar está sempre recepcionando” daí sua in-disposição, seu transtorno.
Sem ouvir a voz do nosso Ser, sem contemplar, a ação é maquinal, muitas vezes difícil e cansativa, se pensada e pausada ela é segura, decidida e alcança propósitos verdadeiros.
HAN, B.-C. Vita Contemplativa Ou sobre a inatividade. Trad. Lucas Machado, Petrópolis: RJ, 2023.
Liberdade, memória e eternidade
O tema pode parecer apenas teológico, mas não é, tanto Hannah Arendt como Byung-Chul Han trataram este tema, claro além de autores de alcance teológico como Agostinho de Hipona e Thomas de Aquino, também por autores atuais como Kierkegaard, Heidegger e Ricoeur que delinearam algumas questões na problemática entre tempo e eterno.
O esquema epistêmico de Hannah Arendt é bem mais profundo porque apresenta também o aspecto político: a memória, que tem referências a história, a narração, que tem a ver com a possibilidade ([hermenêutica] de resgatar os eventos, e a imortalidade, que coloca a ação do mundo concreto, tornando homens seres capazes de continuidade no tempo, visto assim:
“o sentido da Política é a liberdade” (ARENDT, 2002, p. 9).
Mneumônicos são inseridos em processos para preservar a narração, ou seja, sua memória.
Por outro lado, a imortalidade é aquilo que está sendo perpetuado pela memória e narração, porém a autora não se negou a ver uma diferença entre imortalidade e eternidade, apontamos no post anterior aquilo que é também a elaboração da autora, a ligação entre estas categorias.
Isso não nega e sim evidencia a concepção de imortalidade, que se impõe como aquilo que está sendo perpetuado no tempo pela memória, pela narração e também se desenvolve como uma Vita Activa, isto é o que compõe a tradição e a atualização de uma narrativa e neste ponto se confunde com a teologia, ou seja, ultrapassa o temporal e se desvela no eterno.
A tradição porém, foi gradativamente perdendo essa noção do público e do privado, a ponto desta fronteira entre os dois desaparecer, é fácil perceber isto na atualidade ao ver a exposição do privado até mesmo daquilo que é mais sagrado, e na concepção de Arendt, isto é um prejuízo vital, em vista da ação, categoria central para a constituição do mundo público, ela deixa de ser considerada em favor do respeito aos membros da sociedade.
Byung-Chul Han, no livro o Enxame sentencia: “o respeito é o alicerce da esfera pública. Onde ele desaparece, ela desmorona. A decadência da esfera pública e a recente ausência de respeito se condicionam reciprocamente.” (B.-C. Han, No exame, 2018, p. 12).
Arendt ressalta a ausência de empatia: “A morte da empatia humana é um dos primeiros e mais reveladores sinais de uma cultura à beira da barbárie”.
As religiões chamaram isto de aliança, porque todas elas têm um caráter simbólico, como a Arca da Aliança para o antigo testamento e a Paixão de Jesus para o novo testamento, este significado é o transcender a morte (eternidade), ultrapassá-la com todos seus valores: ódios, guerras, divisões e todo tipo de desumanidades praticamos pela finitude humana (Pillars of Creation, imagem do telescópio James Webb).
ARENDT, A. O que é Política. Tradução Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
Verdade, método e liberdade
A verdade não é uma regra lógica ou mesmo uma busca científica, a ciência caminha em passos de construção do conhecimento, aquilo que é chamado de epistemologia, na sua raiz grande era a negação da doxa, da mera opinião.
A verdade dizia Sócrates (através dos discursos de Platão) “não está com os homens, mas entre os homens”, assim são precisos diálogos e contraposições de ideais para que se chegue ao que Hans-Georg Gadamer formula como “circulo hermenêutico” (já postamos aqui).
A hermenêutica é a arte de compreender o que está escrito ou falado, assim ela é a busca daquilo que cada autor formula, ou seu mapa mental, esta fidelidade exige assim um estudo não para colocar ideias ou palavra na boca do autor, mas descobrir sua intencionalidade.
As narrativas contemporâneas refletem esta ausência de hermenêutica, cada autor que dar ao outro o seu próprio discurso, isto só é possível restringindo a liberdade, ou intimidando o Outro, aquilo que na cultura atual é chamado de hater, ela é própria do autoritarismo dogmático, daqueles que só sabem ouvir o próprio discurso e se negam a entender o distinto.
A liberdade é essencial para o diálogo, para uma autêntica construção do conhecimento, e uma sincera busca pela verdade, é preciso ouvir o outro (o texto falado ou escrito) para se produzir uma nova fusão de horizontes, o processo compartilhado entre interlocutores.
A lógica da narrativa é a imposição de um discurso que se pretende único e verdadeiro, assim a liberdade não é permitida, os interlocutores são interrompidos ou calados em seu discurso, isto para que somente uma narrativa sobreviva e seus valores e argumentos sejam impostos.
A idolatria moderna do estado como única fonte de poder, ainda que se auto referencie como democrático, é a incapacidade de uma hermenêutica e de um método onde o diálogo é aberto.
É preciso suspender nossos conceitos, colocar entre parêntesis, um epoché.
O círculo hermenêutico não é um fim em si mesmo, Hans-Georg Gadamer faz uma longa reflexão sobre o pensamento de Dilthey, que julga romântico e em parte é uma das influências na hermenêutica de Schleiermacher e as via comprometidas com a razão cartesiana e sua lógica.
Presos a esta lógica, o dualismo sujeito e objeto permanece, e segundo Gadamer (1998, p. 340) ele remonta a Vico que já havia afirmado o primado epistemológico do mundo da história segundo o espírito humano, este tipo de conhecimento torna sujeito e objeto interligados.
Assim a verdade é ontológica, própria do espírito humano, própria de seu ser, nele há verdade.
GADAMER, H-G. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
O mal e sua ontologia
Ainda que o mal possa ser entificado, isto é ser tornado um ente, quer seja no sentido de mal sistêmico, quer seja no sentido de um ente que personifica o mal (daemons grego ou um demônio na teologia ou uma atitude), Husserl vai perceber a partir da influência de seu professor Franz Brentano (pai da psicologia social) que ele é “a unidade objetiva completa que corresponde ao sistema ideal de todas as verdades de fato, e dele é inseparável” (Husserl, 2005, p. 136).
Claro ele está falando da verdade, mas a entende como tendo um sentido objetivo, assim a sua negação, não é outra coisa senão a negação do Ser do ente, e que esta correspondência nega a sua Noesis e não permite que a verdade se externalize, sendo uma unidade objetiva do Ser, o noema exige uma visão consciente do objeto.
Isto porque cada tipo de objeto tem desdobramentos próprios possíveis, por assim dizer, tem um método próprio prescritos a priori por leis de essência determinadas pelo eidos da objetividade em questão* (Husserl, 2006, 309), isto quer dizer que é a essência da objetividade que pré-determina o tipo de desenvolvimento concordante que se tem da experiência dele, é uma vivência, e assim se não é verdadeiro é sua negação, é o mal.
Pode haver a vivência da evidência nesta experiência do objeto, e isto colabora com seu status de ente enquanto um “ser verdadeiro” (Husserl, 2006, p. 309), aquilo que Husserl chamava de “Lebenswelt”, uma lógica da vida, neste caso da vivência experimentada com o objeto.
Se não entendemos que pequenas faltas, desconhecimento do Outro, da natureza como habitat, e tudo que nos afasta do Ser como construção da verdade, aqui ela é ontológica, estamos negando e alterando o sentido daquilo que será expresso no objeto, claro que é sempre uma influência da visão do mundo, e nela pode estar a essência da não verdade.
Agostinho de Hipona tinha dito isto de outra forma, o mal é a ausência do Amor, hoje podemos atualizar dizendo, a ausência da empatia, da solidariedade e do humanismo de todo homem, aquele que não é “do meu grupo”, “da minha bolha” ou até do “bem” num sentido lógico e não onto-lógico.
São atitudes que devemos repensar, julgamentos precipitados, visões unilaterais de mundo e do Ser, toda corrupção da alma, começa por uma corrupção da verdade, é uma negação do Ser de alguma forma, é ausência de uma visão de mundo completa, universal.
HUSSERL, E. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Tradução de M. Suzuki. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006.
Finitude, guerras e paixão
Não nos referimos aqui a paixão emocional, porém aquela que os sofrimentos causam e que segundo o sentimento religioso (lembrando a paixão de Jesus) é também um momento de muitas mudanças trágicas e reafirmação de um alento salvífico.
O homem quando esquece de sua finitude se imagina dono do seu futuro e não olha ao lado.
A humanidade parece viver isto, agora no lado econômico, com uma economia já frágil devido as guerras, o tarifaço do governo Trump sobre as importações daquele país trazem uma forte instabilidade no comércio internacional, com reflexo no câmbio financeiro e nas bolsas.
Apenas alguns países com pouca expressão econômica ficaram fora deste tarifaço, as ilhas Seycheles, Burkina Fasso e algumas ilhas do pacífico, até mesmo o governo da Argentina que correu para algum acordo (Milei foi pessoalmente aos EUA) voltou de mãos vazias, a desculpa foi o atraso do helicóptero que levava Trump, mas pouco depois afirmou que exige que um afastamento da China que tem fortes investimentos lá, desde o governo anterior.
As tarifas lembram os níveis do Ato de Tarifas de Smoot-Hawley de 1930, aprovado por uma margem de 20 votos no Senado americano, que provocou uma guerra mundial global e aprofundou a Grande Depressão, conforme análise de especialistas em comércio.
Não apenas por estas tarifas, pois cresce a impopularidade do governo Trump, houveram diversas manifestações neste fim de semana nos EUA, até tradicionais parceiros os vizinhos México e Canadá estão nesta guerra, já com medidas de retaliação as importações dos EUA.
As bolsas asiáticas já abriram em “forte queda” nesta segunda feira, segundo diversos canais de notícias, e deve provocar além dos problemas econômicos agravamento nas guerras e uma onda ainda mais forte de governos autoritários, medidas de restrição de liberdade, etc.
Assim é um clima de paixão, não a divina, mas a humana, o processo civilizatório pode entrar em uma fase mais acelerada que as guerras militares em uma crise econômica e humanitária, que já é grave em quase todo o globo, tudo parece próximo ao cenário da pré-guerra de 39.
O Brasil na época, durante o início do governo Vargas (que depois de eleito se tornará uma ditadura) queimou toneladas de café nos portos, então uma riqueza nacional, para segurar os preços e isto encerrou o grande ciclo do café no Brasil e em especial no Estado de São Paulo, grande produtor.
Dois analistas econômicos André Valério e Rafaela Vitória afirmaram que “o cenário que já era complexo ficou consideravelmente mais incerto”, referindo-se também aos índices de produção no Brasil que tiveram uma leve queda em fevereiro/2025 apontou Rafaela no X (veja o gráfico).
Entre a finitude e a eternidade
Os deuses e mitos gregos eram imortais, porém sua mistura com a natureza os tornava quase tão humanos como os homens, tinham vícios tanto que tinha uma deusa própria para eles, a deusa Cacia ou Kakía (Kακία), personificava o vício e a imoralidade, era oposta ao areté (virtude).
Já postamos sobre as diferenças de conceitos de imortalidade e eternidade em Hannah Arendt e na leitura dela por Byung-Chul Han (veja o post), a pergunta que fica é o quanto é possível no espaço-tempo que vivemos, poder estar conscientes e passíveis de vivenciar este desejo do eterno.
Há aqueles que esperam um grande milagre da ciência, congelam seus corpos a espera deste futuro (criogenia), o polêmico Raymond Kurzweil escreveu em 2005: The Singularity is Near: when humans transcend biology, e ficou por anos preparando seu corpo para imortalidade, porém agora aos 77 anos já reduziu a carga de remédios que tomava para isto, ele fez um software para computadores aos 15 anos e é um dos conselheiros de Bill Gates.
Porém o delírio humano não vai ceder a ideia mais plausível e generosa da eternidade, o universo está aí, agora com as fantásticas descobertas do megatelescópio James Webb já há a teoria que sempre esteve aí, e outra mais plausível ainda que o tempo é uma ilusão.
Uma citação de Byung-Chul sobre Heidegger (em seus Cadernos negros) é interessante: “O que aconteceria se o pressentimento do poder silencioso da reflexão inativa desvanecesse?” (Han, 2023, p. 63), claro a pergunta é filosófica, no entanto remete ao ser: “o pressentimento não saber deficiente, ele nos abre o ser, o aí, que se furta ao saber proposicional” (idem).
É um “degrau preliminar na escada do saber” escreve citando Heidegger, vai estabelecer uma pré-categoria do consciente como Ser-Disposto [Gestimmt-Sein], explica: “não é um estado subjetivo que colore o mundo objetivo. Ela é o mundo … é mais objetiva que o objeto, sem, porém, ser ela própria um objeto” (pag. 66).
Assim nós “não podemos dispor da disposição. Ela nos toma” (pag. 67), não a atividade, mas o estar-lançado [Geworfenheit] como passividade ontológica originária define nosso ser-no-mundo originário” (idem, pg. 67), assim é preciso negá-la pois o mundo “se revela em sua indisponibilidade” (idem), a disposição precede toda atividade, e conclui, é de-finidora.
Defini até mesmo o nosso pensar, que significa “abrir nossos ouvidos”, escutar e corresponder e cita novamente Heidegger: “Philosophia é o corresponder verdadeiramente consumado que fala enquanto atenta ao chamado do ser do ente” (pg. 68).
E faz uma reflexão sobre a Inteligência Artificial, ela “não pode pensar, pois ela não é capaz do pathos. Padecer e sofrer são estados que não podem ser alcançados por nenhuma máquina” (pg. 69), o homem pode chegar a renúncia pensou Heidegger: “A renúncia é uma paixão pelo indisponível … a renúncia doa” (pg. 71), o ser: “doa a si mesmo na renúncia. Assim, a renúncia se converte em um ´agradecimento´” (pg. 72) novamente citando Heidegger.
É certo que Heidegger este perto deste sentimento de eternidade, e Byung-Chul Han está bem próximo disto, escreveu: “a salvação da Terra depende dessa ética da inatividade” e citando Heidegger: “salvar significa, na verdade: deixar algo livre em sua própria essência” (pg. 73).