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As religiões e o mal
Um dos grandes equívocos, já desenvolvidos em alguns dos posts, é a dualidade maniqueísta mal x bem, sem entender que o mal é justamente a ausência do bem, grande pensador cristão, Agostinho de Hipona se converteu justamente abandonando o maniqueísmo.
Conceito religiosos há muito esquecidos, ou que ficam submersos em pregações equivocadas impedem aquilo que seria o “fluxo natural da humanidade em direção a iluminação da alma”, o mal tem fontes arraigadas em forma de pensamentos antigos e cargas emocionais do passado e, apesar de obsoletas, ainda persistem impedindo o progresso das almas.
O remédio seria muito simples, quanto mais próxima da iluminação da alma menos o mal está presente, e mais almas iluminadas torna o mundo mais empático, harmônico e sem injustiças.
A ética e a moral que deriva da necessidade de progresso civilizatório não encontra espaço se não houveram almas e pessoas em posições de destaque com iluminação clara e convincente, é por isto que o mal tornou-se uma questão social, teológica ou ideológica, e as vezes ambas.
Não são só pensadores cristãos que afirmam isto, Hannah Arendt fala da Banalidade do Mal, Nietzsche da “morte de Deus” (ou como “matamos” Ele, claro impossível), Paul Ricoeur e Lévinas sobre o Outro e Byung Chul Han sobre na “Sociedade do cansaço” fala da vita contemplativa em complemento da vita activa (das quais Hanna Arendt também falou), lembrando inclusive pensadores cristãos.
A volta de ameaças de uma guerra, a crise social de valores morais (tudo é permitido!), antes que uma verdadeira crise civilizatória aconteça é necessária uma nova iluminação das almas (no quadro (na pintura: São Francisco expulsando demônios de Arezzo*, de Benozzo Gozzoli).
A ausência de compreensão da subjetividade e do imaginário humano, ou sua submissão a valores pouco iluminados, a ausência de compaixão com os semelhantes, a incompreensão do progresso como tendo aspectos positivos fundamentais, até mesmo para salvar o processo civilizatório, leva a sociedade a exaustão, a descrença ou a fatalidade de guerras e ódios.
Não é difícil encontrar em jornais e mídias sociais encontrar posições favoráveis ao processo de exclusão de pessoas de determinada opinião, religião ou mesmo simples discordância de valores morais duvidosos (veja o caso do aborto no Brasil nesse momento), os debates são estéreis e ao invés de argumentos as reações são de sarcasmo e ironia.
São sementes do processo mais amplo de crise civilizatória em andamento e detectada por grandes pensadores desde o século passado, creditá-las as novas mídias, ao ressurgimento de nacionalismos e correntes autoritárias é olhar apenas a consequência, a raiz é a ausência de alma iluminadas que ajudem a humanidade a contemplar seu futuro com maior grandeza.
* Quando Francisco foi a Arezzo, havia o maior escândalo e uma guerra quase na cidade inteira, de dia e de noite, por causa de duas facções que havia muito tempo se odiavam.
Exercícios para a reflexão política
Quando ingressamos no maniqueísmo percebemos apenas forças opostas sem discernir com clareza onde está o mal e a ética, todo exercício filosófico sobre o mal é visto a partir da moral.
Entretanto o que é moral ficou confuso, justamente porque o poder se confundiu com a violência, e a reflexão de Hannah Arendt sobre isto é bastante esclarecedora: “Poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente, o outro está ausência (ARENDT, Entre o passado e o futuro: Oito exercícios para a reflexão política, 1961).
O argumento da filósofa é simples, difícil de ser entendido num mundo polarizado, mas diria é a primeira de suas reflexões sobre a política quando o poder é exercido de forma legítima, a violência é ausente. Isso significa que, em um sistema político saudável, o poder deve ser baseado no consentimento e na cooperação voluntária, em vez de recorrer à violência para impor a vontade de um grupo sobre outros, pois não há consentimento pelos outros.
Boa parte do raciocínio político hoje é exercer a violência contra os opostos, isto é sua própria negação, Arendt argumentava que liberdade e ação política são sinônimas, já que política não tem sentido enclausurada em si mesma, as famosas bolhas, ser livre é condição necessária para o exercício político, o exercício de cidadania, qualquer limitação torna-se violência.
A liberdade existe como condição plural do homem, em termos religiosos é o livre-arbítrio, em termos sociais é a possibilidade de agir livremente enquanto cidadão e ter proteção para tal, se esta condição é retirada não há outra definição ao sistema que não seja o autoritarismo.
Assim como nas artes: a música, a dança e o teatro a ação política é valorada como uma “virtude” todas teorias sérias desde Platão visavam esta participação na “polis”, mesmo o conceito amoral de virtú de Maquiavel, a performance necessita de uma “audiência” e de um espaço para que o espetáculo possa se realizar, na visão de Arendt, a pólis grega foi “uma espécie de anfiteatro onde a liberdade podia aparecer (ARENDT, 2001, p. 201).
Escutar o contraditório, permitir que ele se expresse é condição necessária para a política, o modelo de exclusão dos opositores não é senão um eufemismo para os ditadores.
Arendt não deixa de analisar a violência defendida por Marx, e retorna ao zoon politikon de Aristóteles e mal lido por leitores apressados: “… o qual pode ser difícil de perceber, mas do que Marx, que conhecia Aristóteles muito bem, deve ter sido cônscio” (ARENDT, 2001).
E continua: “A dupla definição aristotélica do homem como um zoon lógon ékhon, um ser que atinge sua possibilidade máxima na faculdade do discurso e na vida em uma pólis, destinava-se a distinguir os gregos dos bárbaros, e o homem livre do escravo. A distinção consistia em que os gregos” (Arendt, 2001, p.50), convivendo em uma polis […] conduziam suas ações por intermédio do discurso, através da persuasão, e não por meio da violência e através da coerção muda.
Para a filosofia teria sido uma contradição em termos “realizar a Filosofia” ou transformar o mundo em conformidade com a Filosofia sem que ela fosse precedida de uma interpretação, assim alertou Heidegger que a afirmação de Marx “os filósofos interpretaram o mundo, agora cabe transformá-lo” é contraditória, porque deve ser pensada qual transformação que se quer.
ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro Trad. Mauro W. Barbosa de Almeida. 5.ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001. (um resumo, pdf)
Guerra em desgaste e paz em Nagorno-Karabakh
Enquanto a guerra russa/ucraniana entra numa fase de desgaste, uma região de fronteira tem um sinal de paz, ainda que signifique uma perda de território.
A luta pelo domínio da região de Nagorno-Karabakh, de maioria armênia remonta a séculos, entretanto o presidente da autodeclarada república de Nagorno-Karabakh, Samvel Shaharamanyan declarou que ela deixaria de existir a partir de 1º. de janeiro de 2023.
No século 18, quando a região sofria pressão da Pérsia, a czarina russa Catarina II emitiu cartas de proteção a eles, porém o conflito nunca foi totalmente resolvido.
O decreto assinado dissolveu todas as instituições estatais que serão desocupadas até o início de 2024, e mais de 100 mil armênios já deixaram o país, que já tem a presença de militares do Azerbaijão, de maioria muçulmana e apoiado pela Turquia, a Armênia é cristã e apoiada pela Rússia.
A região tem importância geopolítica porque desde a guerra da Rússia contra a Ucrânia, o Azerbaijão fornece milhões de barris de petróleos para a união europeia através do Mar Cáspio pela costa mediterrânea, e recentemente a Rússia anunciou que não fornecerá mais.
O genocídio armênio de 1915-1916 durante o Império Otamano levou muitos armênios a fugirem para esta região de Nagorno-Karabakh, desde então são chamados de azeris, durante a revolução russa a região continuou em conflito com o Azerbaijão, embora ambas fossem repúblicas soviéticas, os anti-armênios da cidade de Shusha mataram 30 mil armênios.
Com o fim da união Soviética, os armênios voltaram a se constituir como nação, mas o conflito de Nagorno-Karabakh permaneceu, houveram vários períodos de lutas na região, agora com a sessão do território esta república autônoma deixa de existir.
Apesar do temor dos armênios separatistas, esta nova situação é um grande sinal de paz.
Rússia e Ucrânia podem se inspirar neste modelo ou algo parecido, o mundo deseja a paz.
Entre o falar e o fazer
Longe da aporia (desconhecimento do mal) está a realização do bem, o bem universal, o bem comum, o bem que vê e explicita a vontade do Outro, aquele que elimina a simbólica do mal.
De boa vontade o inferno está cheio, mas não é bem assim, porque se for uma reta intenção ele pode sim produzir frutos na hora certa, porém há um bem não feito e mal feito, isto é mal.
Há uma determinação na vontade, que é a intenção, o tema já foi tratado por inúmeros filósofos, mais claramente na fenomenologia onde é uma categoria essencial, porém a intenção requer um hábito, e torna-la hábito requer coragem e determinação.
Uma confusão sobe a intenção é confundi-la com propósito, os psicólogos não gostam muito do termo porque envolve o futuro e coloca a causa dos comportamentos nos indivíduos e não na sua história de vida, muitos julgamentos apressados e equivocados, partem do “propósito”.
Porém um propósito feito de modo a conseguir superar traumas, condicionamentos maus ou algo que perturbar uma mente saudável e intencionalmente ativa ao bem pessoal e social, é um propósito que leva a uma intenção ligada a consciência.
Na filosofia o termo intenção está vinculado e é uma subcategoria da consciência, e isto é muito diferente da ação mágica que alguns defendem como “lei da atração”, por isto que os psicólogos não gostam, trata-se de ativar a consciência e com isto tornar a intenção saudável.
Esta intenção consciente leva a um fluxo de aprendizagem que este sim reelabora e torna a consciência mais clara das possibilidades e perspectivas saudável para a vida e torna o futuro presente em ações que levam a esta aprendizagem e elaboração da intenção.
Assim é possível que alguém vou e não vai, como é possível que alguém diga talvez não vou, mas acaba indo supondo é claro, uma direção saudável de uma reta intenção.
Um parábola bíblica que explica o que é a vontade num sentido mais pleno, é aquela que conta que um pai dono de uma vinha convida os dois filhos para ir trabalhar na vinha (Mt 21,28-30), o primeiro disse vou e não foi, o segundo disse não vou e foi, qual dos dois cumpriu a vontade do pai, todos responderam que foi o segundo, assim intenção é diferente de propósito e está relacionada a consciência.
As estruturas do mal
Se o mal é ausência do bem, é possível também que em nossas ações individuais por descuido, por intenção ou por maldade mesmo, desejando fazer o bem façamos o mal, como explicou Ricoeur no mal simbólico.
Depois que o mal se estrutura socialmente ele parece dar sentido aquilo que em consciência plena sabemos que não é moral ou socialmente correto, não se trata do politicamente correto aqui, mas aquela estrutura de sentido que se dá através da linguagem simbólica, um exemplo grosseiro, mas que serve aqui, os diversos tipos de preconceito que entram na sociedade.
Pode-se didaticamente dividi-lo em três tópicos, sendo o primeiro dentro da experiência humana, o segundo dentro de vários discursos onde o mal tem uma importância filosófica de aporia, isto entro de um pensar filosófico, e o terceiro como determinação da linguagem que pergunta se o mal existe em si mesmo ou ´uma realidade de denominação sobre coisas e ações em torno da existência.
É assim possível discuti-lo fora do sentido maniqueísta, não são polos que se opõe, mas sim estruturas simbólicas que penetram em nosso cotidiano como experiência, como aporia (dificuldade ou dúvida racional sobre sua existência objetiva) ou elemento simbólico da linguagem.
A simbólica do mal foi profundamente desenvolvida no livro de Paul Ricoeur, está ligada a transcendência humana que de alguma forma determinada a negação dos valores positivos da existência humana: defesa da vida, valorização da solidariedade, proteção dos mais fracos, etc. já a aporia é aquela que pela indefinição clara dela cair na indeterminação do bem.
A aporia não só nega o mal, nega a evolução humana (social, tecnológica, ecológica e moral), desconhece o imaginário, a transcendência e valores morais além dos aparentes, nega o Outro imaginando que assim estarei afirmando seu Ser, que na verdade não o compreende ou não está integrado, prevalecendo assim uma rigidez idealista sobre o que seria a transcendência.
Construir o nosso Ser interior, coloca-lo a serviço da sociedade em todos sentidos, em solidariedade com todos os outros não é só um bem, é condição de evolução civilizatória (por exemplo, cidades ecológicas, imagem).
A civilização evolui não apenas porque constrói novas estruturas, tecnologias e valores humanos, mas porque em algum momento deste processo ele passa por imaginação, transcendência e olhar ao Outro e ao redor.
Narrativa e coerência ética
A polarização levou ao relativismo ético e o relativismo ético leva a instabilidade social, não há coerência entre o que se diz e o que se faz, tudo é feito para justificar esta ou aquela visão.
A coerência ética deve acompanhar todos primas de nossas vidas ou não é ética, apenas um comportamento conveniente, precisamos cultivá-la na visão social, profissional, religiosa e no âmbito familiar, não é apenas numa área porque o comportamento se torna um hábito.
A nudez de um jogo de vôlei universitário (evento esportivo numa universidade), a discussão sobre o aborto, a lógica da punição política ideológica e os discursos emblemáticos nos órgãos oficiais do país não são mera coincidência, não são tentativas autocráticas, são a falta resultado de um longo processo social onde a ética não predomina.
Um professor de ética de uma universidade após discutir um assunto em sala de aula, pediu que no intervalo os alunos anotassem na cantina ao menos um ato antiético: pés na parede, papéis no chão, fura filas, etc, na volta do intervalo todos alunos tinham algo a contar.
Não se trata também no exagero ou na ausência de punição, mas a medida justa, aquilo que no direito é chamado de punição desproporcional, mas também a ausência de punição é perigosa.
O problema é que Vigiar e Punir é um processo que pode levar a lógica do hospício, Foucault no seu famoso livro mostra que a justiça já no seu tempo deixou de aplicar torturas mortais e passou a buscar a “correção” dos criminosos, mas as práticas educativas são raras e hoje pior ainda, tornou-se unilateral, ou seja, a punição depende da condição e situação do réu.
É aquilo que Byung Chul Han chamou da psicopolítica, uma espécie de volta a tortura por meio de propaganda e visão distorcida dos verdadeiros problemas sociais, trata-se de combater o “inimigo”, e se aplica a lei somente neste caso.
As narrativas confundem a sociedade, criam buracos religiosos e animosidades, não é favorável a nenhum processo social saudável, cria mais divisão e injustiças.
O mal simbólico
Uma das características de Paul Ricoeur é a busca por explicações sobre quem é homem e as circunstâncias que os afetam, entre elas há uma abordagem sobre o mal pois ele afeta todas as pessoas, de maneira direta ou não.
Essa busca na filosofia vem desde Platão que definia o Sumo bem como: o destino final de todas as coisas, que para Aristóteles é o melhor bem, ligado ao logos, assim a ciência, enquanto na filosofia cristã será Deus e o paraíso.
Também é importante o pensamento neoplatônico de Agostinho de Hipona, para o qual o mal é a ausência do bem, e assim não é seu oposto, mas sua ineficacia.
A filosofia medieval associa o Bem ao paraíso e o mal àquilo que conduz o homem a sua destruição, não apenas na vida eterna, mas já nesta vida, veja-se por exemplo Boécio em suas “Consolações filosóficas” e Tomás de Aquino para o qual ha uma “imperfeição” do Ser, de virtudes na natureza do ser, que o priva do bem.
Na filosofia contemporânea a visão idealista e iluminista relativiza-o e quase inevitavelmente cairá em visões maniqueístas do mal e do bem, ou seja, arbitrárias, dependente muito mais de convenções e conivências sociais.
Paul Ricoeur e Emmanuel Levinas destacam-se no tratamento do bem, eles retomavam a questão da relação do bem e o ser de modo parecido e diferente.
Para Levinas o bem antecede o ser, mas não é na consciência nem no discurso, assim transcende o ser, assim define-o como o outramente do ser, aquilo que o liga ao infinito e seu sentido ontológico, é o da ética do Outro.
Paul Ricoeur ao penetrar, através da hermenêutica, de modo mais profundo na questão do mal, retoma a questão do mito, em especial do mito adâmico (Caim matou Abel) onde o mito “é o lugar procurado de fusão entre história e ficção” (Ricoeur, 1976, p. 295), mas também trata a questão “simbólica” do mal.
Este texto citado acima é fundamental para conhecer o pensamento de Ricoeur porque ele trata-o dentro daquilo que para ele é “a crise da filosofia” de hoje.
A questão simbólica do mal é a morte salvífica que não encerra, mas reinscreve na história da humanidade as pautas míticas e mesmo o iluminismo e o idealismo não estão fora disto, já que criarão estruturas simbólicas de “salvação” do homem.
RICOEUR, P. La philosophie aujourd´hui: entretien sur ce qu´on appelle la crise de la philosophie. Lousanne: Grammont-Salvat,1976.
RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal. Lisboa: Edições 70, 2013.
A volta do mal
Ainda que por ingenuidade ou por contexto social, de tempos em tempos demônios, existentes ou não, voltam a nos assombrar, há entre a realidade e a ficção uma verdade: ele existe, senão no imaginário (como pensam alguns) também como entidade real.
Os filmes de terror, quase todos mera ficção existem, e o seu público não é pequeno como o caso de “O exorcista” (1973) e “A hora do pesadelo” ( 1980) dois clássicos do gênero, porém há filmes que pode-se destacar como obras de arte: “Nosferatu” (1922 e remake 2018) e “Corra!” do diretor e roteirista Jordan Peele, que concorreu ao Oscar de melhor filme em 2018.
Na obra dirigida por F. W. Murnau (1922) há algo do expressionismo alemão, com técnicas do uso de sombras, tratado mais como uma loucura em torno do desconhecido, lembre-se também que estamos num entre-guerras quando Alemanha e Rússia assinam o Tratado de Ropallo, tentando formar um contrapeso na geopolítica mundial da época, acordo que durará até Hitler.
Certamente há outros filmes, porém, reaparecem agora com tom e cores mais fortemente religiosas: “O exorcista do papa” (Julius Avery, lançado este ano) que fala de fatos acontecidos com o padre Gabriele Amorth que foi oficialmente exorcista de Roma reconhecido pela Igreja Católica, no filme encenado por Russel Crowe (Caras – Nice Guys, Promessas de Guerra – The Water Diviner), o outro filme de demônios é Nefarious (Chuck Konzelman e Cary Solomon, baseado no romance de 2016 de Steve Deace: A Nefarious plot).
Enquanto Nefarious é mais uma ficção sobre a existência e artimanhas do Demônio, com algum contorno cristão, O exorcista do Papa é baseado em fatos reais narrados pelo próprio padre Gabriele, que realizou mais de 60 mil exorcismos e certamente alguns de destaque foram selecionados, entre as conversas que estão ali narradas, cito a mais importante, na qual numa possessão ele diz que o demônio só pode fazer aquilo que Deus permitiu, seu poder é limitado.
Não aprecio o gênero, porém tive mais paciência com “O exorcista do papa” por curiosidade e tentativa de entender a problemática, mas situada num contexto de confusa questão social e perigo de uma guerra ainda mais sangrenta do que as que estão em curso, mas sem maniqueísmo, a potência do mal não é superior a do bem, e seus efeitos não são comparáveis.
O mal tem existência real pela ausência do bem, assim pensava Agostinho de Hipona que foi maniqueísta na juventude.
Civilização, crises e raiva
O processo civilizatório que andou de guerras e guerras, foi também marcado por outras grandes crises, coincidência ou não, simples fato natural ou intervenção divina, a peste negra 1347 a 1353 que matou 50 milhões de pessoas, um número alto para a população da época, antecipa um momento de crise do final da idade média e inicio do renascimento.
Não há hoje uma correte que possa ser chamada de “cínica” pela conotação atual da palavra, porém a Crítica a Razão Cínica de Sloterdijk se aplica bem aos céticos: não creem em nenhuma moral, não creem na civilidade e a todo social levam a ira e o desprezo.
O evento político é a queda de Constantinopla, em 29 de maio de 1453, que dá início ao Império Otomano, que depois se expandirá para toda Europa, pondo fim ao Império Bizantino, claro junto com um movimento cultural que retomava o ensinamento grego clássico.
Também no início da primeira guerra mundial temos a gripe espanhola, claro uma correlação entre epidemias, crises e guerras não é tão simples e fácil de ser compreendida, porém o fato que períodos de crises civilizatórias levaram a guerras e nascimento de novos impérios é um fato, afinal depois da queda de Constantinopla nasce o Império turco-otomano que foi até a primeira guerra mundial.
A existência do ódio, da intolerância é praticamente inerente as guerras, justificativas de certo tipo de “justiça” não faltam, há diversos argumentos para o ódio, para a paz um único: amor a vida e apreço ao processo civilizatório, talvez seja hora de inverter a lógica a guerra: conquista.
Somente entraremos num processo civilizatório digno da humanidade, se abandonarmos os primitivos métodos de correção de erros e injustiças, quase sempre sujeitos a narrativas, um verdadeiro processo de desenvolvimento humano digno do nome não pode ser feito com a prática de guerras e genocídios com tentativas de eufemismos que suavizem a crueldade.
Diz o livro do Eclesiástico (Eclo 17,33): “O rancor e a raiva são coisas detestáveis, até o pecador procura dominá-las”, e o erro deve sempre dar espaço ao perdão e a reconciliação, quantas vezes? Diz a leitura bíblica: “setenta vezes sete” (Mt 18,21).
O processo em desenvolvimento aponta para a eclosão e uma guerra cujas consequências são muito preocupantes pela potência dos armamentos, as tecnologias e o envolvimento mundial.
Sempre há uma atitude possível contrária, sempre é possível um círculo virtuoso, ele virá?
Estoicos, epicuristas e Cínicos
Sêneca foi advogado e grande escritor, porém foi muito questionado e é ainda hoje, por ter sido preceptor de Nero, é bom lembra que lenda ou fato Nero o condenou ao suicídio por traição, e o filósofo foi coerente com sua teoria contra a ira e o fez pacientemente.
Também é famosa sua frase “Se eu decidisse percorrer uma por uma das repúblicas atuais, não encontraria nenhuma apta para tolerar o sábio ou uma que o sábio poderia tolerar”, era assim consciente de seu tempo e talvez esta seja a razão de estar voltando “a moda”.
Era diferente dos epicuristas porque defendia o envolvimento público dos filósofos, afinal este foi o primeiro argumento no tempo de Platão para fundar sua academia, porém Sêneca chegou a afirmar em “A retirada”, que em certas circunstâncias seria melhor retirar-se da vida pública, porém isto jamais significava uma omissão, e explica-a em “A retirada” desta forma:
“Flutuamos, sendo atirados de um lado para outro; coisas almejadas, abandonamos; o que foi posto de lado, retomamos. Assim, ficamos alternando em fluxo permanente de volúpia e de arrependimento. Estamos condicionados, inteiramente, ao parecer alheio”.
Em tempos de polarização, nem sempre racional, também é motivo para ele voltar à baila.
Além dos “puristas” epicuristas e os “retirados” estóicos como Sêneca, há os cínicos, enquanto os primeiros valorizavam os aspectos “naturais”, o comportamento dos filósofos cínicos apontava para uma distinção filosófica entre os aspectos naturais (physis) e os costumes humanos (nomos), um problema que permeou todo o pensamento filosófico da Grécia Antiga, chegando, de certa forma, também aos nominalistas e realistas da idade média.
Lembro a crítica da razão cínica, obra de Peter Sloterdijk, para dizer que o problema é atual e não por acaso estas correntes ressurgem, ainda que atualizadas por problemas sociais e políticos, apontam uma crise civilizatória.
A sociedade que tenta eliminar a dor, o sofrimento, que cultua a “natureza” lembra também os estóicos, os que tentam destruir a cultura e os costumes humanos, lembra os cínicos, é preciso dizer aqui que não significa o senso comum de dizer o que não é verdade.
Antístenes, de Atenas, e Diógenes, de Sinope, foram os primeiros cínicos, viviam desprezando os costumes e os “sábios” de seu tempo, Sloterdijk diz que hoje “não é um tempo próprio para o pensamento” e de certa forma tem razão, cinismo vem da palavra grega kynikos, que quer dizer cães pela forma que viviam abandonados nas ruas e muitas vezes pedindo esmolas.
Neste pensadores há um fundo de razão pelo qual devem ser estudados, sabiam a crise que a civilização de seu tempo vivia, procuravam dentro de uma sociedade conturbada um vida feliz e longe dos falsos problemas de seus contemporâneos, mas Sêneca e outros não se omitiram na vida pública, razão pela qual ensinavam a valorizar o sofrimento e entender seu porque.