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O amor em Santo Agostinho

20 out

Esta foi a tese de doutorado de Hannah Arendt com influências diretas de Edmund Husserl, Martin Heidegger, inicialmente seu orientador, que depois passou a orientação a Karl Jaspers devido seu envolvimento pessoal com Arendt, assim é necessária alguma compreensão da fenomenologia e da ontologia existencial.

Terminamos a semana passada fazendo uma reflexão sobre a política e religião justamente a partir da compilação das Obras Póstumas da própria Arendt, e o que desejamos apontar é a possibilidade de uma civilização fundada nos princípios do Amor, no sentido da caridade (virtude teologal) e como Agostinho a via.

Longe de ser uma apologia dessa forma elevada de Amor, ela vê contradições e vai desenvolver a questão do amor a Deus, amor ao próximo e a si mesmo, e usa a fenomenologia para aprofundar este tema, mas é uma conclusão apressada dizer que a fenomenologia se opõe ou mesmo favorece estes sentimentos, que em si, são sim contraditórios, por exemplo, o amor ao próximo e a si mesmo tem nuances diferentes para a grande maioria das pessoas.

Sua conclusão é que não é possível forma uma sociedade humana fundamentada apenas no amor caritas (lembrando sempre que trata-se de uma virtude teológica e não de simples generosidade) e o ponto central é analisar Agostinho apenas do ponto de vista filosófico, já que Arendt não tinha interesse nos aspectos teológicos.

Arendt por dividir sua dissertação em três partes se deve a uma vontade de fazer justiça a pensamentos e teorias agostinianas que correm em paralelo. Assim cada parte “servirá para mostrar três contextos conceituais nos quais o problema do amor tem papel decisivo” (esta citação é tirada de uma tradução para o inglês que a própria Hannah Arendt trabalho e tem diferenças com a portuguesa).

A primeira parte Arendt vai analisar “O que eu amo, quando amo o meu Deus?” (Confissões X, 7, 11 apud Arendt p. 25), na segunda parte discute a relação entre a criatura e o criador, ela intitula o capítulo “Criatura e Criador: o passado rememorado”, e na terceira parte discute

Na primeira parte a autora descobre que Deus é a quintessência de seu eu interior, Deus é a essência de sua existência, e ao encontrar Deus em si o homem acha aquilo que lhe faltava: sua essência eterna. Aqui, o amor por Deus pode se relacionar com o amor próprio, pois o homem pode amar a si mesmo da maneira correta amando sua própria essência.

No final segunda parte vai discutir a relação com o próximo, como deve amá-lo como criação de Deus: “ […] o homem ama o mundo como criação de Deus; no mundo a criatura ama o mundo tal como Deus ama. Esta é a realização de uma autonegação em que todo mundo, incluindo você mesmo, simultaneamente recupera sua importância dada por Deus. Esta realização é o amor ao próximo.”

Na terceira parte da dissertação, intitulada “Vida Social”, que Arendt dedica ao que ela chama de “caritas social”13, a relevância do vizinho, e o amor ao próximo ganham nova justificativa, vai discutir o princípio adâmico do pecado e vai dizer que este é o princípio que nos ligará a Cristo, que vem para nos redimir deste pecado.

Aqui aparece a contradição com Agostinho: “É porque todos os homens compartilham este passado que eles devem se amar: “a razão pela qual se deve amar ao seu próximo é porque seu próximo é fundamentalmente seu igual e ambos compartilham o mesmo passado pecador”, assim não é o fundamento do Amor, mas do pecado que nos torna iguais aos outros próximos.”

Por escolha o homem deve renegar o mundo e fundar uma nova sociedade em Cristo. “Essa defesa é a fundação da nova cidade, a cidade de Deus. […] Essa nova vida social, que é baseada em Cristo, é definida pelo amor mútuo (diligire invicem)”, há uma obra de Agostinho dedicada a isto: “cidade de Deus”, e a tese que é somente filosófica assim concentra-se apenas na relação mundana (ou humana, como queiram), não vê o homem como tendo uma origem divina e feito para o Amor.

Para Arent o que nos torna irmãos e eu posso amá-los em caritas, no amor verdadeiro, e isto é expresso em Agostinho, segundo Arendt, concilia o isolamento gerado pelo mandamento de amar a Deus com o mandamento que diz para amar ao próximo, encerrando a dissertação.

Segundo Kurt Blumenfeld, amigo de Arendt que teve grande importância em seu envolvimento com o judaísmo e a política, a resposta para a questão era o sionismo e um retorno à Palestina, mas a emigração para lá nunca foi parte dos planos de Arendt, buscava na vita socialis sua resposta sobre o Amor, não entendeu totalmente o caritas.

ARENDT, Hannah. O conceito de Amor em Santo Agostinho. Tese de doutorado 1929. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 

 

O banquete de Platão

06 out

Nos banquetes, as mesas e o compartilhamento de alimento se celebram muitas coisas, inclusive o diálogo sobre temas essenciais.

Ocorrido por volta de 380 a.C. é um diálogo, e há alguns que preferem a tradução do grego como Simpósio (no grego antigo sympotein significa “beber junto), e o tema central é o Amor, entre o eros e o ágape, e o personagem central como na maioria dos seus diálogos é Sócrates.

Também estão no diálogo Aristófanes e Ágaton (ou Agatão), na casa dele ocorrera um banquete anterior em comemoração ao prêmio literário que ele havia ganhado, neste banquete Sócrates e outros participantes discursaram sobre o “amor”, estavam nele Apolodoro e Glaucon, Aristodemo e o próprio Ágaton.

Glaucon considera Apolodoro como doido porque despreza o material, Ágaton significa “bom” em grego, coisas boas e o amor levam à prática do bem e do belo, e se soubéssemos a prática do amor o bem que faz, os homens fariam um exército de amantes, lembrando o exército de banos, cuja frente estava Pelópidas e Epaminondas em 371 a.C.

O discurso de Fedro é que o amor cultuado pelos homens revela-os mais virtuosos e felizes durante a vida e após a morte, mas é na cosmogonia que os discursos vão se contrapor, enquanto Fedro vê a origem de Eros como um deus muito antigo, sem menção de progenitores, teve seu nascimento junto a Geia (terra) após o Caos.

Pausânias o segundo a discursar, contrariando Fedro, existem vários Eros, era filho de Afrodite, e duas Afrodites, uma filha de Urano e outra de Zeus, a de Zeus gera um eros vulgar e a de Urano um Eros celeste.

Eriximaco aprova a distinção de Pausânias sobre a duplicidade do Amor e, universalista, o amplia a todo cosmo: “grande e admirável, e a tudo se estende  ele, tanto na ordem das coisas humanas como entre as divinas”, sendo médico afirma que o amor e a concórdia provem a harmonia, combinando opostos (o sadio e o mórbido) que se estendo por todo universo: “deve-se conservar um e outro amor …”.

Aristófanes insistirá no poder que o amor possui sobre a natureza histórica, com o uso do mito dos andróginos, legimitima a homoafetividade e a desenfreada busca pelo que hoje chamamos de “almas gêmeas”, que é uma busca pelo perfeccionismo e de certa forma pelo narcisismo.

Sócrates elogia o fato de Ágaton ter principiado a mostrar a natureza e quais são as obras do Amor, mas depois segue seu clássico método da Pergunta: “é de tal natureza o Amor que é Amor de algo ou de nada?”, Ágaton confirma que o Amor é Amor de algo. De qual “algo” é o Amor e segue com a indagação: “Será que o Amor, aquilo de que é amor, ele o deseja ou não ?” e segue o banquete a moda dos clássicos gregos.

O banquete, a mesa a qual todos sentam é o importante deste diálogo, parece tão clássico e tão presente, mas acrescentaríamos uma questão e Francisco de Assis, lembrado estes dias, afirmava ele com convicção: “O Amor não é amado”, assim antes de ser instrumento como afirma Agaton é ele próprio algo a ser usado como instrumento, em momento de tanta dor na humanidade, ou então a maneira socrática perguntar: “É o Amor amado ?”.

Platão, O Banquete, ou, Do Amor – trad. José Cavalcante de Souza, Rio de Janeiro: DIFEL, 2008.

 

Erro, cólera e thymós

09 set

Assim como o erro científico é assumido como parte da investigação científica, os erros nas relações humanas e sociais não devem levar a ruptura e o retorno a ligação entre pessoas ou grupos envolverá fatalmente algum tipo de perdão.

Muitas vezes é possível que o erro não seja assumido,  mas subentendido, isto porque, ficamos justificando o caminho que tomamos e fazendo considerações sobre a nossa falta e acabamos por não assumi-la, mas o retorno deve ser sempre tentado, uma vez que o perdão sana e permite o diálogo avançar.

Peter Sloterdijk escreveu sobre a situação “timótica” de nosso tempo, Thymós está na base da teoria de Platão para designar os “órgãos” de onde nascem os impulsos, as excitações, as afecções mais inflamadas, parece algo muito presente em nosso tempo e assim delineou o seu livro Ira e Tempo (Cólera e Tempo, na tradução portuguesa da editora Relógio d´Água).

O assunto preferencial não podia ser outro que não a política, é sem dúvida o polo de catalização de ódios e rancores, onde o perdão e o diálogo parecem ser cada vez mais um ponto distante ao qual jamais se chegará, e o inverso disto é …

Estes impulsos atravessam não só as redes sociais, passam pelo jornalismo política e polarizam entre partidos, pessoas e grupos sociais, o que Sloterdijk faz na forma de “análise” é que existe um estado de proliferação (atenção, não é aquilo que Byung Chul Han vai chamar de psicopolítica, ou a antiga “política de massas”), já chamamos a atenção para Karl Kraus, que em seu tempo entre guerras, chamava a atenção para o discurso da imprensa e dos intelectuais.

Em uma de suas comédias, “A terceira Noite de Walpurgis”, dizia que “sobre Hitler não me vem nada à cabeça”, é lógico que ele não ignorava o perigo daquele discurso, porém alerta os jornalistas e escritores que insistiam em apenas ironizar e dizia que os media pareciam gostar do cidadão indignado, mas impotente, assim tem o efeito inverso do desejado.

Um olhar analítico sobre a psicopolítica que Chul Han faz não é dispensável, ainda que estejamos munidos de pouco saber sobre esta matéria, verificasse que o estado de alta tensão timótica, instaurado pelos meios de comunicação para garantir o sucesso de indivíduos que estejam carregados de “thymós”, nos leva a uma guerra civil sem fim (aparente).

É como se toda ira só encontrasse sua “economia política” naquilo que Sloterdijk chama de cinismo “racional”, uma espécie de “banco mundial da ira” que catalisa não por acaso, lados opostos da polarização atual.

Basta olhar os políticos de diversas tendências para ver o quanto estão agarrados a esta tendência, assim o ressentimento e a legitimação de crimes tornam a indignação popular impotente, reclamar apete e torna-se tábula rasa para qualquer início de conversa, mesmo que venha de um sentimento libertador que deveria apontar para o novo.

A ausência de perdão ou ao menos de tolerância, torna a violência e o falso radicalismo visíveis e esconde a impotência.

SLOTERDIJK, Peter. Ira e Tempo – ensaio político-psicológico. Trad. Marco Casanova. SP: Estação Liberdade, 2012.

 

A arte, a cisão e a unidade

03 set

Hölderlin, poeta alemão citado e elogiado por Heidegger, também manteve intimidade com a filosofia, em um de seus escritos pouco conhecido contestou o “eu absoluto”, mas é preciso questionar também um “nós” preciso a uma bolha, a um mundo hierarquizado e estilizado, na perspectiva do poeta a consciência sem objeto seria inconcebível e todo juízo pressupõe o mundo, o que é muito próximo da consciência de algo que a fenomenologia propõe.

Os princípios teóricos de uma filosofia da história, muito próxima a visão da consciência histórica de Gadamer, foi elaborada como divida em três épocas: a unidade, a cisão e a recuperação da natureza (sob a forma da naturalidade da arte), porém Hölderlin tratou também do aórgico, e poder-se-ia pensar na real recuperação da natureza, em tempos pandêmicos parece dar um respiro: peixes, pássaros e animais reaparecem, o ar está mais leve e parece que a natureza agradece.

A cisão, que faz com que o homem se veja diante de tantas contradições e desigualdades, é também disse Rousseau, uma condição de liberdade, entretanto ao se deparar com indignidades e injustiças esta condição parece estar ameaçada, o poeta lançava mão da poesia como uma “contraposição harmônica” entre o eu e o mundo, porém reivindica um terceiro, poético e harmônico no qual que habita o mundo dos textos como supôs Roland Barthes, diz em sua poesia Metade da Vida:

            Onde se é inverno, achar as flores, e onde a luz do sol e as sombras da terra?”

            No final restam somente “muros e bandeirolas ao vento”

            O próprio poema é metade que não se completa sem o leitor e o mundo.

            É também incerteza, conforme esta bela imagem da “canção do destino de Hipérion”:

           “como água de penhasco em penhasco lançada incessantemente no incerto”.

A canção de destino de Hipérion diz:

           Andais lá em cima na luz

          Em chão macio, gênios felizes! Cintilantes brisas divinas

          Tocam-vos de leve

          Como os dedos da artista Cordas sagradas.

O que Hölderlin me inspira é a diferenciação entre o pensar e o filosofar, Heidegger também descartou o segundo, no caso do poeta sua vida e obra ocasionam relações entre o pensamento e a poesia, e esta sim, numa relação nova com a filosofia propõe um terceiro, não há mais poetas logo filósofos também não.

 

No prazer do texto há um diálogo

02 set

No post anterior há as expressões de Barthes sobre literatura, escrita e texto, e já conceituamos a ideia de inscrição que se supõe um suporte, a escrita e o aspecto cognitivo e no texto o aspecto linguageiro, artístico e de “instalação”, e é aqui que analisa-se o seu livro “O prazer do texto”.

O livro apesar de aspectos teóricos é de fato um prazer ao ser lido, há diálogo e principalmente surpresas agradáveis, como por exemplo, um espaço semiológico, uma espécie de lugar entre duas margens: “uma margem obediente, conforme, plagiária (…) o estado canônico da língua e outra móvel, vazia (…) estas duas margens enceram, são necessárias” (pag. 40).

Cede a literatura mais clássica: “de Zola, de Balzac, de Dickens, de Tolstoi) traz em si mesma uma espécie de mimese enfraquecida: não lemos tudo com a mesma intensidade de leitura; um ritmo se estabelece, desenvolto, pouco respeitoso em relação à integridade do texto” (pag. 17)

Trata em uma única linha de rupturas Proust, Balzac e Tostói, “o próprio ritmo daquilo que se lê e do que não se lê que produz o prazer dos grandes relatos: ter-se-á algumas vez lido Proust, Balzac, Guerra e Paz, palavra por palavra?  (Felicidade de Proust: de uma leitura a outra, não saltamos nunca as mesmas passagens)” (pag. 18).

Recomenda como se deve fazer a verdadeira leitura: “Leiam lentamente, leiam tudo, de um romance de Zola, o livro lhes cairá das mãos; leiam depressa, por fragmentos, um texto moderno, esse texto torna-se opaco, perempto para o nosso prazer: vocês querem que ocorra alguma coisa, e não ocorre nada; pois o que ocorre à linguagem não ocorre ao discurso: o que “acorre”* , o que “se vai”, a fenda das duas margens .. “ (pag. 19).

Contrasta o texto com o teatro ou o cinema: “Na cena do texto não existe ribalta: não há por detrás do texto ninguém ativo (o escritor) nem diante dele ninguém passivo (o leitor); não há um sujeito e um objeto. O texto prescreve as atitudes gramaticais: é o olho indiferenciado que fala um autor excessivo (Angelus Silesius): ‘O olho com que eu vejo Deus é o mesmo olho com que ele me vê.” (pag.52).

Revela o segredo de outro livro seu: “Tradição antiga, muito antiga: o hedonismo foi repelido por quase todas as filosofias; só se encontra a reivindicação hedonista entre os marginais, Sade, Fourier; para o próprio Nietzsche, o hedonismo é um pessimismo” (pag. 74), o livro citado no post anterior que vai muito além do hedonismo.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad.   J. Guinsburg. SP: Editora Perspectiva, 1987. (pdf)

 

Autores e diálogos

01 set

Li um texto de 1968 de Roland Barthes “A morte do autor” no qual ele problematiza o conceito, propondo-o como “a destruição de toda a voz, de toda origem”, ele diria também do homem (de hoje) num momento conturbado de conceitos e de acontecimentos verdadeiramente e “estranhos” que estão se construindo “barricadas nos textos”, o que dizia de seus contemporâneos (Alain Badiou e Jacques Derridá afirmaram que sem este conceito não se pensa criticamente nenhum objeto), e o que diria hoje, certamente que sua tese estava certa, e hoje mais ainda.

É sabido que Foucault deu umas alfinetadas em Barthes, mas em Sade, Fourier, Loyola elas foram devolvidas ao inserir no jogo discursivo o leitor e reformula a questão da autoria em outra dimensão: o corpo, este objeto de consumo de tantas teorias hoje, somente em Barthes encontra alguma solidez (não líquida).

Para Barthes o texto é um corpo, um objeto de prazer dotado da capacidade de penetrar na vida do leitor em fragmentos, gerando coexistências entre leitor e autor, ou textualmente:
“O prazer do texto comporta também uma volta amigável do autor. O autor que volta não é por certo aquele que foi identificado por nossas instituições (história e ensino da literatura, filosofia, discurso da Igreja); nem mesmo o herói de uma biografia ele é … é um simples plural de ‘encantos’, o lugar de alguns pormenores tênues, fonte, entretanto, de vivos lampejos romanescos, um canto descontínuo de amabilidades, em que lemos apesar de tudo a morte com muito mais certeza do que na epopéia de um destino; não é uma pessoa (civil, moral), é um corpo.” (BARTHES, 2005).

Barthes propôs em 1977 (Leçon) uma distinção dos termos: literatura, escrita e texto, que é particularmente interessante conceitualmente, a escrita tem algo que é a manuscrição uma inscrição na qual se supõe um suporte, um utensílio, em segundo lugar (embora seja apenas de caráter didático) o sentido cognitivo, pelo qual se designa a instalação e o terceiro as formas “linguageiras” dotadas de significação que tomam um sentido artístico.

Para problematizar a questão da “pluridimensionalidade” proposta por Barthes para a literatura ele inicia a chamada “crítica genética”, problematizando o aspecto enunciativo do termo, tem como objetivo reconstituir uma história do texto em estado nascente, buscando encontrar nele os segredos de fabricação da obra, e assim é explicado o que é um texto e sua relação com a literatura.

É aqui que se estabelece o diálogo pela língua, sem a compreensão da genética de um texto, pode haver solicitude ou diálogo, mas não sairia da superficialidade e nem atingiria aquele nível desejável para muitos autores contemporâneos de assumir os pré-conceitos e estabelecer novos horizontes.

Barthes faz uma valiosa reflexão acerta da escuta distinguindo-a do ato fisiológico do mecânico de “ouvir”, dando-lhe um estatuto de ato psicológico que só se define por seu objeto e por sua intenção, categoria tão cara á hermenêutica embora não seja exatamente a mesma, guarda similaridades.

autor faz uma valiosa reflexão acerca da escuta, distinguindo-a do ato fisiológico e mecânico de “ouvir”, conferindo-lhe um estatuto de ato psicológico que só se define por seu objeto e por sua intenção.

É famosa a frase de Barthes: “Toda a recusa duma linguagem é uma morte” e um interprete deste autor explicita a diferença entre ouvir e escutar: “[…] uma escuta poiética (‘bruta’, como o quer Barthes) visa não aprisionar sons de uma maneira hierarquizante, como num insípido objeto de análise fria” (El Haouli, 2002), é este aspecto de diálogos hierárquicos que dominam muitos que julgam fazê-lo mas não o fazem, apenas desejam a submissão passiva do Outro às suas categorias.

 

BARTHES, R. Sade, Fourier, Loyola, Paris: Seuil, 1971. [tradução: Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

EL HAOULI, Janete. Demetrio Stratos: em busca da voz-música. Londrina: Gráfica e Editora Midiograf, 2002.

 

O medo, a morte e a salvação

28 ago

A sociedade do cansaço, da busca da produtividade e do medo não é esta da pandemia, ela já existia antes deste evento sanitário, o que aconteceu agora é que, ao menos as pessoas que não perderam a sensatez, o medo da morte está presente e paira sobre toda a sociedade, e ignorar a morte não é boa atitude psicológica.

Assim falam psicólogos que trataram deste assunto relativo às crianças, é certo também que o medo pode levar ao pânico que não é saudável também, mas explicar e ajudar a sociedade a entender as limitações, até mesmo da produção da economia ajuda a todos, e o questionamento da hiperprodutividade que levou a sociedade e a natureza as portas do esgotamento é também saudável, agora porém vem a crise econômica e o que fazer com ela, novamente ser sensatos.

O poeta Hölderling escreveu “onde há medo, há salvação”, no início da pandemia pensávamos que era possível tratar a doença equilibradamente, reduzir um pouco a atividade que ajudaria a sociedade a reequilibrar-se, mas passados muitos meses o confinamento revelou-se também problemático, porém o medo da morte e uma certa cegueira de não desejar ver as consequências continua na sociedade, a morte é apenas uma fatalidade, e não uma possibilidade que leve-nos ao cuidado, o cuidado com a vida em todos os sentidos.

A salvação reside neste medo, a criança sem medo é imprudente, e o adulto muitas vezes também, não pensa e não age a favor da vida, da preservação de si e dos outros, pensa de maneira egoísta e isto não leva a salvação, leva ao morrer mais trágico que a fatalidade da morte, até mesmo morrer de medo, assim o saudável e equilibrado é tratar da morte, e aqueles que precisam manter-se ativos socialmente tomar os cuidados necessários, mas e a salvação, o reequilíbrio do humano.

Este está em jogo, aquilo que era tema antes da pandemia, agora reaparece de modo trágico e é preciso pensar na natureza, na produção e no dia-a-dia que levou a doenças como o pânico, a síndrome de Burnout e a sociedade do cansaço, para produzir felicidade não devemos caminhar para o extremo cansaço e o esgotamento da natureza e das forças produtivas.

A própria morte de Deus, que para muitos parece uma enorme tragédia, fundamentalista dizem o contrário e os fariseus que não devemos “propagar o medo”, quando Jesus avisa o tipo de morte que haveria de morrer, Pedro diz que Deus nunca permita tal coisa, e a reação de Jesus é no mínimo curiosa (Mt 16,23): “Jesus, porém voltou-se para Pedro e disse: “Vai para longe, Satanás! Tu és para mim uma pedra de tropeço, porque não pensas as coisas de Deus, mas sim as coisas dos homens!”, e pouca reflexão se faz sobre esta passagem, no máximo dizer que é porque ia morrer na cruz, mas naquele momento nada se sabia ainda.

A lição da pandemia, do medo da morte e do morrer, que é o mais duro, é que não há salvação sem sofrimento, as vezes sangue derramado mesmo, o pós-pandemia deve provocar uma discussão e um pensamento muito mais sério do que já ocorreu até aqui, conservadores dizem a vida deve voltar ao normal e outros dizem: “e preciso mudar o combate a pandemia”, que houve muitos erros sim, mas o problema essencial é mudar o comportamento e as estruturas sociais desumanas.

 

O mal estrutural e simbólico

17 jul

Estando claro que não se trata da luta do bem contra o mal, mas a ausência do bem ou a banalidade do mal, existe então uma noite no ocidente que não pode ser desvelada se ficamos na superficialidade ou na “frivolidade” como apontam alguns autores, o bem é frágil, mas não frívolo.

Para entender o problema do “mal simbólico” tratado por Paul Ricoeur, deve-se olhar suas bases na fenomenologia eidética de Husserl e na filosofia existencialista de Gabriel Marcel, sua busca é o que dá sentido à liberdade (a visão moderna do livre-arbítrio) e a relação de reciprocidade entre a experiência voluntária e involuntária humana, isto é essencial para entender o mal simbólico.

A aparição original da questão da consciência (de algo) vem da ligação que Franz Brentano faz ao retomar a subcategoria intencionalidade, que rompia a identificação cartesiana entre consciência e autoconsciência, onde intencionalidade revela-se primeiro voltada ao exterior e assim está projetada para fora com orientações objetivas que vão desde a percepção e imaginação até a vontade, a afetividade e a apreensão de valores (destaca-se a empatia).

O que é voluntário e involuntário depende desta “grande tese”, enquanto Husserl operava na consciência à análise da percepção e dos atos “representativos”, Ricoeur  alargou para as esferas do afeto e da vontade.

Assim o que é voluntário está na alternância entre o impulso vibrante da emoção e o ponto de vista do hábito, enquanto o involuntário “absoluto” (simbólico ou estrutural) fica sob aquilo que chamou de caráter (não no sentido moral, mas no de “característica”).

O ponto de apoio que tem na filosofia existencialista de Gabriel Marcel, sem abandona a “análise eidética” é a problemática de um sujeito capaz de distanciar de desejos e poderes, dono de suas ações (e assim voluntárias) e servo das necessidades do inconsciente, o caráter, zona não revelada na consciência real e na vida, embora pareça fica fora das competência do concreto, do histórico, ou do que chama de ocasião, é o reino empírico da vontade,  vista em três momentos.

A primeira é a decisão humana resultado de um projeto para o mundo (aquilo que Heidegger mudará para visão de mundo), a ação comporta tanto a dimensão de um projeto com os outros no mundo, como pessoal ou subjetiva, entretanto não as separada e chama-as de corpo, e o corpo é visto tanto como voluntário quanto involuntário, mas há um “consentimento”.

Assim Ricoeur mostra os exageros do idealismo, e torna o “hábito” de tal forma a habitá-lo e torná-lo habitável, e o que o autor aponta que o homem pode falhar (sua obra O homem falível, da década de 60), e a culpa constituída e à consciência dela são expressas nos símbolos da cultura.

Afirma importância da linguagem mítica para tratar esta simbólica, assim a parábola do joio e do trigo (Mt 13,24-29), que afirma que a semente “boa” do trigo floresce junto com o joio (que deverá depois ser descartado), há três situações: a semente que cresce, a que é sufocada pelo joio (simbolismo do mal) e a que cai entre as pedras e não tem raízes (o caráter de Ricoeur seria isto).

RICOEUR, Paul. A simbólica do mal (H. Barros & G. Marcelo, Trad.). Lisboa: Edições 70, 2013 (Original publicado em 1960).

 

O pensamento moderno e a verdade

24 jun

Grande parte das questões apontadas na modernidade referem-se ao “cogito” cartesiano, e que este separaria corpo de espírito, na verdade mente de espírito, porém desconhece-se que a questão é anterior e é ao significado de substância.

Vê-se na obra cartesiana que mente e espírito estão muito ligados, pode-se dizer isto sim que a mente é submetida ao espírito, lê-se na sexta meditação: “mens cerebro tam intime conjuncta sit” (Adam e Tennery, 1996, VII, p. 437).

A origem de duas formas de pensamento, Karl Popper dirá que a afirmação de Parmênides é ontológica “o ser é e o não ser não é” no sentido de não existe (existencial e não lógico), e Heráclito de Éfeso “tudo não é está passando a ser” visto como “dialético”, na verdade é ontológico também.

Para Aristóteles a substância significava o suporte ou substrato no qual a hylé (concepção grega de matéria) se constituía em algo dando uma forma (morphe), Tomás de Aquino vai pensar a partir daí, e acrescentar um novo componente na noção de substância, além desses dois, a saber, o ato de ser (esse/actus essendi), o ato de ser de onde parte sua ontologia.  Estas questões já estavam presentes em Platão e Sócrates.

Dai parte as famosas noções de ato e potência, um exemplo, a semente é em potência arvore.

Aristóteles tinha 4 causas: Causa material: de que a coisa é feita? Fazendo como exemplo uma casa, seriam os tijolos. Causa eficiente: o que faz com a coisa? seria a construção. Causa formal: o que lhe dá a forma? A própria casa. Causa final: o que lhe deu a forma? A intenção do construtor.

Mas a intentio em Tomás é subcategoria da consciência, e voltará a ser categoria para Franz Brentano, mas modificando-a como categoria principal como consciência dirigida a algo, assim muito diferente do uso cotidiano de intenção.

O que Husserl aluno de Brentano vai pensar em Meditações Cartesianas, é principalmente na quinta e não na sexta tese, onde questiona se Descartes não suspenso o juízo, mas não o ego.

Interpela o Eu da angústia cartesiana, sem entender qual caminho da imanência do Eu para a transcendência do Outro? Reconfigura a psicologia através da fenomenologia. Através do método da redução fenomenológica atinge-se o Eu Transcendental, pois isto a suspensão de Husserl e seus seguidores é uma epoché hermenêutica, um colocar entre parêntesis.

Toda a questão de Heidegger (aluno de Husserl) e Lévinas estão dirigidas a este Outro e o Tempo.

ADAM, C.; TANNERY, P. (org) Oeuvres de Descartes, Paris: Vrin, 1996. Citado em Amir d. Aczel: O caderno secreto de Descartes,  São Paulo: Zahar, 2007.  

 

 

Consciência e verdade

23 jun

Um dos truques mais comuns é dizer uma meia-verdade, uma mentirinha sem maldade ou aquilo que suaviza nossa consciência quando sabemos que estamos fazendo o que está errado, não se trata do politicamente correto, pois em muitos casos pode-se dizer aquele político “bom” se corrompeu, tornou-se ditador ou é incapaz de diálogo.

Uma frase conhecida de William Shakespeare é “Sabemos o que somos, mas ainda não sabemos o que podemos chegar a ser”, que é uma frase tão interessante quanto “To be or not to be”, porque significa que podemos Ser além do ser atual, assim há um devir, assim not to be and I will be.  

A esfera interior na qual saciamos vazios emocionais, frustrações ou ansiedades, por exemplo na bebida ou na comida, estamos preenchendo o vazio saciando temporariamente, mas ele voltará de tempos em tempos.

A relação com a filosofia é ampla, desde Platão que definiu o mito da caverna como passar do mundo das sombras, onde nos vemos como projeções no fundo da caverna para uma esfera elevada, autêntica e onde há verdadeira liberdade, e o medo das meias-verdades some.

A verdadeira consciência não é nem um despertar, nem uma iluminação, mas um “desvelar” tirar o véu, e o primeiro passo é que a consciência seja consciência de algo, onde encontrei limites ou um NÃO inesperado, não só uma dor, mas um obstáculo à primeira vista intransponível.

A psicologia Gesltat, com forte influência da hermenêutica, define como dar-se conta de algo (awareness) e encontramos correspondente na filosofia japonesa, por exemplo, como “satori”, tirar as camadas superficiais para encontrar o núcleo de algo.

Os três passos para adentrar estas camadas são: despertar para nossa zona mais profunda, no aspecto emocional, nossos medos, angústias e inquietações, o segundo requer o que acontece no seu exterior, o contexto, as pessoas e situações que invisto sem resultados, e o terceiro, bem mais complexo sabe o que sente, o que acontece em seu exterior, mas há preconceitos, barreiras e algo que o faz se defender e não passar de certos limites.

Exerça uma mudança, não basta encontrar os pontos fortes, é justamente nos pontos fracos que suas defesas estão fragilizadas, e, elas estão articuladas com seus enganos e vivências.