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A exclusão e os leprosos de hoje
Não é raro mesmo em lugares de relativa calma e bem estar social, que o homem se sinta incomodado e desalojado de tudo que vive e sente a sua volta: as famílias não são mais somente lugar de conforto, no Brasil os índices de violência doméstica assustam, até mesmo espaço de laser como campos de futebol e outros esportes se encontram brigas, corrupções e diversos tipos de violência, sem falar a sociedade em geral que vive taxas alarmantes.
Pensamos que o isolamento é a solução, quando não sozinhos também em grupos e muitas vezes em grandes grupos, também formamos nossas bolhas de “segurança”, não são mais espaços de conforto pois ele é quase inatingível, mas de segurança.
Alargando o conceito do individualismo para o de microesferas e esferas de Sloterdijk, o espeço que encontramos saindo do em si e caminhando para o de si não é suficiente, nele sentimos a ausência de algo essencial, se não podemos atingir a esfera espiritual, a qual chamo de noosfera (esfera do espírito), devemos entender os processos de exclusão das “bolhas”.
Primeiro porque são irreais nos dias de hoje, vivemos uma exposição ampla, Byung-Chul Han fala disco e no livro recentemente de Domenico de Mais (post da segunda-feira) também fala da “desorientação” social, e, portanto, não se trata de liquidez, mas de esferas fugazes e uma nova relação com a exclusão: as periferias existências e suas “bolhas” de segurança.
Não haverá solução se não houver um salto além do de si, é um além aquilo que foi mal definido na filosofia como um para si, embora aí também ocorra o perigo do fideismo e do subjetivismo, é nele que reencontramos as esferas abertas de nossos sonhos, de nossa poesia e de uma visão de mundo sem exclusão, o problema que Heidegger chamou de Weltanschauung.
Oscilando entre uma pieguice religiosa e um materialismo rasteiro pseudo-religioso, a visão de mundo necessária transformar-se numa visão de mundo sem exclusão deve superar preconceitos ideológicos, e tornar-se uma visão que todos possam fazer parte.
No tempo em que a hanseníase (a lepra) era o pior tipo de exclusão, e era inclusive consideradas um pagamento pelo “mal”, as palavras de Jesus podem resumir bem a exclusão daquele tempo em Marcos quando um leproso pede a ele de joelhos: “Se quiseres, podes purificar-me!” Jesus estendeu a mão, tocou nele e disse: “Quero. Seja purificado!” (Marcos 1,40-41).
As lepras hoje são muitas, olhemos a nossa volta e quanta gente excluída nas diversas bolhas que olham ao seu redor e dizem altivos: “não são nossa gente” pois estes “são impuros”.
Individualização e perdas da relação
Todo processo de individualização moderno foram formas de isolamento do sujeito, inicialmente dos objetos (a famosa ruptura kantiana entre objetivismo e subjetivismo), depois dos indivíduos entre si, mas Sloterdijk vamos mais longe, afirma-a “anatômica”.
A forma de sua crítica é um dos pilares do Estado-nação patético, a formulação de Rousseau que foi “o inventor do homem sem amigo, que só podia pensar o outro complementar na forma de uma natureza maternal imediata ou de uma imediata totalidade nacional.” (Sloterdijk, 2016, p. 248).
Dá uma explicação mais sólida a solidão do homem moderno: “Se o indivíduo não consegue se completar e se estabilizar por meio de aplicações bem-sucedidas das técnicas de solidão – por exemplo, nos exercícios artísticos e solilóquios escritos – ele está destinado a ser absorvido pelos coletivos totalitários” (p. 349) por isto, escreve em Esferas I sobre as bolhas.
Dá uma explicação anatômica para isto: “o sujeito solitário moderno não é o resultado de sua própria escolha, mas um produto fracionário da rude separação do nascimento e da placenta.” (p. 350), assim como já tinha falado do coração na relação com o Outro, agora percorre o aspecto originário, a ligação do filho com a mãe pela placenta, isto ajuda a compreender seu conceito de “individualismo anatômico”.
Recorre novamente ao romance de Orfeu e Eurídice para explicar a ruptura, na mitologia grega Orfeu era filho da musa Calíope com o Apolo ou Éagro, rei da Trácia, conhece Eurídice e se apaixona e casa com ela, mas a beleza de Eurídice atrai um apicultor Aristeu, mas Orfeu a persegue e na perseguição ela tropeça numa serpente que mordeu seu calcanhar e a mata.
Então a simbologia de Orfeu que serve ao homem moderno é a busca da relação, mas sem abandonar seu “individualismo anatômico” não consegue chegar a comunhão, a ligação umbilical que o impede de “relações verdades”, orgânicas embora cante louvores a “pura relação” como fazia Orfeu que a enaltece em suas canções (foto).
Talvez Sloterdijk não conheça, mas o ditador popular: “olhando para o próprio umbigo” que tem exatamente um sentido individualista, neste caso é olhando para a relação perdidas.
SLOTERDIJK, P. Esferas I: bolhas. Trad. José Oscar A. Marques São Paulo: Estação Liberdade, 2016.
O ser em esferas e o ser-de-si
Sem dúvida alguma o maior mal de nossos temos junto com a exclusão econômica e social, é a exclusão por características humanas específicas: doenças, tipo físico e até mesmo intelectual.
Já destacamos em nossos posts, a importância da tríade das Esferas de Petr Sloterdijk: Esferas, na qual descreve diversos aspectos de uma sociedade isolada em “bolhas” (nome do primeiro livro, já com tradução para o português) “Esferas I: bolhas” (Estação Liberdade, 2016).
Trata-se de um lugar, a esfera, onde se pode proteger, não é lugar de conforto mas de segurança, que no tratamento dado por Sloterdijk é a tradição do pensamento, que aparece como um lugar de proteção de uma humanidade que, para se proteger, se mura de pedras, armas, canções e ideias, e não seria de esperar de modo diferente para o mundo cibernético.
No conceito de Sloterdijk, que é diferente daquele tratado como “identidade” pois as esferas tem identidade que são fugazes, trata o problema humano onde estamos quando estamos no mundo? Por isso é uma consequência do pensamento de Heidegger o “ser-no-mundo”.
A sociedade atual dissolveu suas relações protetoras de intimidade em relações cinzentas formais, a questão se transfigura: onde estamos quando estamos no descomunal, na falta de abrigo da exterioridade absoluta, portanto é um problema maior que o enfoque de Domenico de Mais, não se trata apenas a perda de projetos sociológicos, mas de uma ruptura humana.
Não é também apenas o mal estar da modernidade, de fundo puramente psicológico como o tratado por Freud, o sentido que Sloterdijk dá para a “bolha” é o que se pensa por “espírito” ou “alma” é apenas o “ar” da vida insuflado em um espaço partilhado
Isto é claro já no pensar o espaço interior, início de seu livro, quando Sloterdijk demonstra a pendência de sua microesferologia com relação à psicologia contemporânea, aquilo que a filosofia chama de si (Hegel usa esta categoria para diferenciar o em-si), de si e passou a permitir se pensar o surrealismo da espacialidade humana, a saber, de ser conteúdo e continente, assim quando se fala de produção de conteúdo dever-se-ia falar do continente.
A crença religiosa na fusão mística e no encantamento fisiológico dos casos descritos por Sloterdijk, que fala do coração e da alma de figuras como Catarina de Sena e Raimundo de Cápua, que fala da troca do próprio coração com o de Vristo, revelavam o caráter relacional dos corpos humanos e que encontra até mesmo no Banquete de Platão e que foram anulados pelo “individualismo anatômico”, segundo o autor, quando se começa a dissecação de cadáveres, nos séculos XVI e XVII.
Apesar de uma linguagem que vai do poético ao mordaz, a crítica que Sloterdijk faz ao nosso tempo para ser fundamental, que poderia ser grosso modo dita como “ser-em-esferas”.
É preciso sair, mas de corpo e alma
A ideia de que o ócio venha dos gregos, e há até literatura exaltando-a para uma falsa sabedoria, não corresponde a verdade, vejam o que diz Aristóteles sobre o assunto: “exaltar a inércia mais do que a ação não corresponde à verdade, porque a felicidade é atividade”, claro de outro lado o ativismo impede a reflexão e o descanso para uma atividade profícua.
Byung-Chul Han alerta que nossa cultura atual é de uma “Sociedade do cansaço” (editado no Brasil pela Vozes 2017): “A sociedade do cansaço e do desempenho de hoje, apresenta traços de uma sociedade coativa, cada um carrega consigo um campo, um campo de trabalho. A característica específica desse campo de trabalho é que cada um é ao mesmo tempo detento e guarda, vítima e algoz, senhor e escravo. Nós exploramos a nós mesmos.” (Han, 2017, p. 115)
Não damos trégua nem ao nosso corpo (claro outros dão demais), “malhar” e outras formas de exercícios (Sloterdijk vai chamar de “ascese desespiritualizada”), encherem-se de remédios e vitaminas (o princípio da imunologia em ambos os autores), e não se trata de uma busca, mas apenas de ir enchendo-se de bobagens até a auto exaustão.
Também o excesso de cursos (estou me referindo a cursos sem conteúdos e proveito), palestras motivacionais que custam 100 a 1 mil reais, fazem parte de uma nova onda.
É uma busca humana, compreensível, todos querem achar o novo, mas se observarem bem este conjunto de coisas não passam de ideias e atitudes velhas maquiadas, para “vender”.
Reeducar o pensamento, os relacionamentos e até mesmo o que pensamos de espiritualidade, que significa dar sentido as coisas subjetivas (já disse que não há nelas desapego ou crítica às objetividades que seria um dualismo), significa estruturar a alma humana e claro num corpo.
É preciso sair da rotina, da burocracia da vida cotidiana, sem atender aos apelos midiáticos.
No evangelho de Marcos que narra a cura da sogra, exaltada em muitas pregações por ter ido servi-los, mas há um detalhe também precioso que diz que Jesus saiu de madrugada para orar e nele quando os apóstolos dizem (Mc 1,37,38) “Todos estão te procurando” Jesus respondeu: “Vamos a outros lugares, às aldeias da redondeza! Devo pregar também ali, pois foi para isso que eu vim.”
O comodismo e a inércia precisam de cura, é preciso mover aqueles que têm um espírito novo devem sair a busca, devem sair para escutar os outros, para viver uma vida sã.
Um Espírito Novo de ver as coisas
Separação entre mente e espírito é uma construção contemporânea, assim como a relação com os objetos, com a tecnologia e com outras objetividades, como o dinheiro por exemplo, exercem sobre o pensamento ocidental, em especial, certa desconfiança.
O mundo objetivo que existe fora do homem precisa ser compreendido para se ter uma boa relação com ele, a modernidade diz que o homem deve “dominá-la”, mas a natureza e os objetos parecem se rebelar, não porque máquinas nos controlem, mas por que seu uso requer mudanças de comportamento e novas relações com a sociedade e o contexto.
A existência do mal, que Agostinho de Hipona dizia que era a “ausência do bem”, e ele foi um maniqueísta (a luta do bem e o mal), e que para a sociedade em crise é um conjunto de fatos simbólicos, armas de guerra, desafios entre torcidas rivais, xenofobia e outras fobias, está encerrado no fato que vivemos um contexto “mal” que precisa ser renovado.
Uma das primeiras coisas que deve-se renovar é o pensamento, diz Edgar Morin, mas dizem também boas espiritualidades e autores que trabalham a subjetividade humana.
Um mundo sem sentimento não é por causa das máquinas, mas do pensamento e das relações sociais que nos envolvem que se complicam dentro do contexto atual.
Em Mc 1,27 podem-se ler: “E todos ficaram muito espantados e perguntavam uns aos outros: “O que é isto? Um ensinamento novo dado com autoridade: Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem!”
O fato que Jesus “curava” era para muitos naquele tempo um fato novo, com certa dose de “exorcismo” pelo fato que muitas doenças não eram conhecidas, o esclarecimento sobre muitas coisas era obscuro, mas nem por isto deixavam de entender que havia “um ensinamento novo dado com autoridade”, isto sim, um espírito novo de ver as coisas
Oscar 2018 e estréias
Estava pronto para nem comentar o Oscar, mas para minha surpresa o filme The Post – A Guerra Secreta, dirigido por Steven Spielberg aparece entre os indicas, com Meryl Streep (candidata a melhor atriz) e participação de Tom Hanks, conta a história real sobre a guerra do Vietnã e os bastidores do jornal The Washington Post, em 1971, que chega as telonas nesta quinta-feira em muitos cinemas nacionais.
Outras duas estréias com indicados ao Oscar 2018 foram Artista do Desastre e Visages, Villages que também são estreias no cinema nacional e valem a pena serem assistidos.
Outras surpresas boas foram às indicações dos filmes: “Blade Runner 2049” para direção de arte, fotografia, efeitos especiais, edição de som e mixagem de som, assim como o diretor Jordan Peele, por “Corra!” que é indicado também para melhor filme.
Também foi surpresa a atriz Mary J. Blige é a primeira indicação em um ano em duas categorias: melhor atriz coadjuvante e melhor canção original em “Mudbound”
Decepções 13 indicações para “A Forma da Água”, a fantasia romântica dirigida pelo mexicano Guillermo del Toro, parece muito exagerada, e a omissão do filme O Rei do show, que teve várias indicações ao Globo de Ouro, ganhou apenas melhor música “This is me”.
Surpreendentes as indicações de “Dunkirk”, do britânico Christopher Nolan (oito indicações), e a produção independente “Três Anúncios para um Crime” (com sete).
“O Destino de uma Nação”, filme politico centrado na figura de Winston Churchill, obteve seis indicações, mesmo número do drama “Trama Fantasma”, justas, mas exageradas.
O mal e a Natureza do Bem
Agostinho de Hipona era um maniqueísta errante, com uma vida boemia e cheia de amores, chegou a ter um filho, sua mãe Monica uma cristã fervorosa pedia pela conversão do filho, mas Agostinho julgava os cristãos ignorantes demais e pouco elaborados, até que conheceu Ambrósio, que era bispo de Hipona, que a bem da verdade, era um intelectual e fora prefeito da Ligúria e Emilia, que tinham como capital Mediolano, hoje Milão, mais tarde o povo o fez bispo.
No contato com Ambrósio, Agostinho torna-se cristão e escreve neste período A natureza do Bem, onde contesta a concepção de Mani no que diz respeito ao mal e, então a dualidade de princípios que se baseava o sistema cosmológico da seita maniquéia, é substituída por uma ontologia.
Agostinho então se preocupa em afirmar que toda natureza é um bem, uma vez que procede de Deus e que o mal, não está entre os seres criados, mas é construído quando não se faz o bem.
Agostinho conhecia Fausto que era um dos grandes sábios da seita maniqueísta, mas descobre que seu conhecimento era limitado e se restringia à Gramática, Cícero e alguma coisa de Sêneca.
De modo mais elaborado, a teoria completa de Agostinho, afirma que há uma corrupção do modo (modus), da espécie (species) e da ordem (ordo), que são atributos ontológicos dos seres, e portanto inexiste ontologicamente o mal, bem como suas implicações filosófico-teológicas.
O pensamento de Agostinho sobre a matéria não é o dualismo entre espírito e matéria, afirma ele:
“Ignorava que Deus é espírito e não tem membros dotados de comprimento e de largura, nem é matéria porque a matéria é menor na sua parte do que no seu todo. Ainda que a matéria fosse infinita, seria menor em alguma das suas partes, limitada por certo espaço, do que na sua infinitude!.” (AGOSTINHO, 2006)
Mas e se o mal acontece como reagir a ele ? Agostinho esclarece isto, para se julgar o homem com justiça, conferindo-lhe castigos ou penas, a própria percepção social do mal, conforme as ações ou intenções de quem as pratica, afirma: “[…] não é injusto que se dê aos perversos o poder de causar dano uns aos outros, para que se prove a paciência dos bons e seja castigada a iniquidade dos maus.”, escreveu no cap. 21 de sua obra “A natureza do bem”.
Duas obras contemporâneas tratam de modo diverso, mas profundo também estes dilemas: “A fragilidade da Bondade” (eu diria do Bem), de Martha Nussbaum e A simbólica do Mal, de Paul Ricoeur, o mal é uma questão filosófica posta, e não é portanto a questão maniqueísta.
AGOSTINHO, S. Confissões. 21. ed. Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Petrópolis: Vozes, 2006.
Mesmice e outridade
Para desenvolvermos a ideia de outridade recorremos ao que Edgar Morin (2010, p. 192) chama de memento ou de modo mais simplista “lembrete” que é a maneira de trabalhar conceitos sem defini-los, que significa dar fim e não admitir a dinâmica de conceitos:
“O método da complexidade pede para pensarmos nos conceitos sem nunca dá-los por concluídos, para quebrarmos as esferas fechadas, para restabelecermos as articulações entre o que foi separado, para tentarmos compreender a multidimensionalidade, para pensarmos na singularidade com a localidade, com a temporalidade, para nunca esquecermos as totalidades integradoras.”
Mas ao fazer uma busca na web descobri que o termo já existe, definido por Landowski mais ou menos assim: “calculadas, homólogas ao afastamento que seus públicos mantêm. Frente ao Outro é preciso resguardar-se, diz o enunciador mapeador, qualificando-o de exótico, ao exibi-lo para o display, mas, em outros casos, é preciso ocultá-lo do holofote, deixá-lo nas margens; assim, ele pode ser assimilado, admitido ou segregado; em certos casos, será necessário inscrevê-lo como inimigo, excluindo-o.»
Embora seja confundido com alteridade (é até apresentado como sinônimo), dois aspectos do conceito (usando Morin, sempre inacabado) a ideia de exíbi-lo num display, tipica do mundo digital, e ainda a ideia de escondê-lo dos holofotes, que significa não proclamá-lo de modo bombastico ou dogmático.
O termo foi criado por especialistas franceses, a partir das propostas do investigador francês Eric Landowski (do Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS).
A mesmice já sabemos, repetições de conceitos e ideias que com o passar dos anos ficam descontextualizadas e portanto perdem a essencia de seu significado, mesmo que ditas de forma aparentemente criativa, são meras invencionices destituídas de realidade e vida.
Assim tornam-se vazias e dogmáticas, pouco a pouco perde-se o interesse por elas.
MORIN, E. Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio dória, 14ª. Ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
Criatividade e invencionices
Criatividade é algo diferente da pura invencionice, modismo ou adesão acrítica a realidade, é preciso ter uma percepção do que está acontecendo na realidade e também na percepção do que acontece (o que pode ser chamado de teoria, mas o termo é incompleto), David Bohm chama a atenção para: “cada ‘coisa’ que existe na natureza tem alguma contribuição para o modo de ser do universo como um todo” (BOHM, 1957, p. 146).
Hoje com as pesquisas em física quântica, não se pode mais pensar nas partículas ou subpartículas, pois dependendo do contexto também as partículas precisam ser interpretadas, inclusive uma partícula pode se transformar em outras.
Assim segundo Bohm a percepção humana é limitada porque a realidade (e sua percepção) está constantemente mudando, e também uma coisa modifica a outra a todo o momento, assim o conhecimento depende do contexto em que o objeto encontra e cria relações com o observador, e o pensamento humano com suas categorias pode ser colocado em cheque pois quem o ignora tem um pensamento limitado sobre a “coisa”.
Todas as coisas animadas e inanimadas têm uma ordem implicada que se refere a uma informação que determina a sua forma, ou seja, o contexto in-forma conforme sempre afirmamos em nosso blog, mas este contexto muda o tempo todo.
Invencionices são falsas criatividades, tentam negar o contexto no qual a ordem se in-forma, na verdade é uma repetição de velhos raciocínios sobre um mundo em mutação, um bom exemplo no mundo digital foi a ideia que a light pen (caneta digital) seria boa para percorrer a tela e fazer desenhos, em seu lugar veio o mouse, mais preciso.
Mas o que é então a percepção, Bohm e Hiley defendem que é um a ordem implicada, uma vez que ela atua sobre uma forma como a base do pensamento, uma vez que este baseia-se nas informações contidas na memória (1993, p. 383), serão estas informações que constituem a base da comparação pela qual se percebe as semelhanças e diferenças entre as sensações.
De acordo com este pensamento, para haver criatividade é necessário alargar a percepção, mas não há método para isso, a criatividade é um jogo livre da percepção, e isto significa fazer exercícios corpóreos e mentais para que a mente tenha um tipo de diálogo livre no qual este condicionamento possa ser desfeito (BOHM, 1987, p. 229).
Em termos de filosofia é parecido a epoché, mas Bohm chama de meditação, sem ela não haverá criatividade, mas invencionices sobre as mesmas formas “fechadas”.
BOHM, D. (1957). Causality & chance in Modern Physics. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1957.
BOHM, D.; PEAT, F. D. (1987). Science, order and creativity. London; New York: Routledge Classics, 2011.
Diálogos e criatividades
David Bohm é um dos raros autores a abordar com profundidade a questão da criatividade, e seu texto começa com um discurso absolutamente novo, aos menos para quem percorrer os caminhos da dialogia e da hermenêutica como eu, discordando da ideia que diálogo é dois logos, afirma o autor:
“um significado mais profundo para ela [a palavra diálogo] logos significa “a palavra” ou melhor “o significado da palavra”. E dia significa “através de”– não significando dois ou duplo -. Um diálogo pode se dar com qualquer número de pessoas, não apenas entre duas. Até mesmo uma pessoa sozinha, pode ter um sentido de diálogo consigo mesma, se o espírito do diálogo estiver presente.”
Dirá mais ainda no prefácio: “E o significado compartilhado assim criado, é a “cola” ou o “cimento” que mantêm as pessoas e a sociedade unidas”, é realmente interessante uma vez que rompe com o sentido quase inerente a palavra que é um “logos dual”, uma não abertura.
Quase que como uma conclusão, coloca em questão o inverso que seria a discussão:“Contraste isto com a palavra “discussão”, que tem a mesma raiz de percussão e concussão. Elas têm um significado de partir as coisas.”, encontro aqui um “diálogo” com a fenomenologia, pois está quer voltar as coisas por elas mesmas, faz sentido, dividimo-las em partes, não só duas mas inúmeras, um grande problema da modernidade: a fragmentação.
Afirma um dos mais profundos dualismos de nosso tempo, aquele entre ciência e religião: “Supõe-se que a ciência seja dedicada a descobrir os fatos e a verdade e que a religião seja dedicada a outro tipo de verdade e ao amor, mas o interesse próprio das pessoas e as pressuposições “assumem o comando” ”, claro não fala unilateralmente, mas de ambas.
Embora muitos afirmem não julgarem as pessoas, afirma o autor o que estamos fazendo: “parece que alguma coisa está acontecendo: parece que os pressupostos e as opiniões funcionam como programa de computador na mente das pessoas. E esses programas assumem o comando contra melhor das intenções. É como se eles produzissem suas próprias intenções “, os que criticam o mundo “lógico” da cibercultura, agem no dia a dia numa lógica como robôs sem criatividade alguma.
Tal como ocorre com a informação que pode ser tácita ou explicita, o autor explica o nosso pensamento cotidiano onde: “Tácito significa algo não falado, algo que não pode ser descrito por palavras – tal como o conhecimento tácito exigido para se andar de bicicleta”, diz-se que não se desaprende a andar de bicicleta, mas e quanto ao pensamento se for um vício ?
Se nós tivermos uma situação de pensamento implícito construída, o autor chama isto de coerente (considero de certa forma relativo), o que teríamos com o passar do tempo seria: “em um grupo que tenha mantido diálogo por um bom tempo, de forma que as pessoas tenham se feito conhecer umas as outras – iremos ter um movimento coerente de pensamento, um movimento coerente de comunicação.”
É só o começo do livro, mas é impossível falar em criatividade sem antes falar de diálogo.
BOHM, David. Sobre criatividade, São Paulo: UNESP, 2011.