Arquivo para a ‘Noosfera’ Categoria
O que significa ver
Exploramos muito em nossos posts a cegueira: filosófica (na República de Platão o mito da caverna), lógica (Parmênides, Russell, Hilbert, etc.), religiosa (Feuerbach, Hegel, etc.) e literária (O ensaio da cegueira de Saramago e a Peste de Camus), só para citar alguns, além deles navegamos sobre a linguagem em Heidegger, Hans-Georg Gadamer, Levinas, Ricoeur e outros.
Agora queremos navegar pelo mundo da visão, dizia Bachelard: “todos os seres são puros porque belos”, já o poeta Alberto Caeiro “o mundo não se fez para pensarmos nele, mas para olharmos e estarmos de acordo, também o filósofo e místico russo Nicolas Berdjaev (há muitos místicos russos) dizia que no Paraíso não há ética e só há estética, tudo isto para dizer que ver é ter olhos para o belo, por isso muita coisa hoje feia é autoproclamada bela, assim a inversão não é só ética.
O feio era para Platão do ponto de vista ontológico o quase-nada, sendo o mundo sensível o que é o aparentemente real, sendo mera sombras das ideias (o mito da caverna) e o ideal (eidos) o verdadeiramente real, assim o feio é o informe e não tem existência real e não é modelo universal.
Não é pouco natural que num mundo fragmentado, a beira da sua policrise o belo quase desapareça, e assim o homem não vê, o que vê são sombras, rascunhos de ideias difusas e confusas, o modelo universal desaparece e o discurso é meramente o discurso do conflito.
O belo desponta harmonia, sugere fusão onde há divisão, confunde o caótico dando-lhe forma e mesmo o mundo da pura forma não é mais geométrico é fractal, não fracionário, e sim um fracionário natural pertencente ao todo da parte menos significativa ao corpo todo (na foto o fractal de Lorentz e o efeito borboleta).
Gostamos do ponto, reta e plano, mas isto é Geometria de Euclides, o mundo não é reto e plano.
Do ponto de vista lógico é a aproximação da teoria do caos (há lógica caótica), do ponto de vista filosófico é a visão da complexidade (o simples é quase sempre simplista), do ponto de vista religioso pode-se dizer: “Deus criou tudo e viu que era bom” (e belo), do ponto de vista literário penso que a melhor expressão foi a Friedrich Schiller (1756-1805): “Como reconstruiremos a unidade da natureza humana, que parece completamente suprimida por esta oposição originaria e radical?”(pag.71), escreveu em sua obra “Educação Estética do Homem”, a respeito da divisão no interior do homem entre o impulso formal que o arrasta na dimensão do seu tempo.
Visto como poeta é uma obra maravilhosa, como filosofia fica sujeito a crítica pela distância histórica de seu tempo e os muros da ideologia alemã de seu tempo
SCHILLER, F. “Educação Estética do Homem numa série de cartas”, trad. Roberto Schwartz e Márcio Suzuki, São Paulo: Editora Iluminuras, 1989.
O pensamento do alto e a comunhão
Que tipo de saber é este que engloba um saber “do alto”, do além-do-humano, mas sem contradizê-lo, a resposta de Morin e de outros como Martin Buber, Emannuel Lévinas e Paul Ricoeur parecem conduzir a um mesmo ponto, ir em direção ao Outro sem reservas.
Duas falsificações místicas são possíveis nesta direção, uma que nega a consciência e o respeito ao Outro, aqueles que apelam para uma falsa religiosidade cristã, a Bíblia é clara: “Se alguém declarar: “Eu amo a Deus!”, porém odiar a seu irmão, é mentiroso” (1 João, 4:20-21), mas há os que clamam pelo extremo oposto da materialidade da fé, a estes a resposta bíblica também é clara: “Não só de pão o homem viverá” (Mateus 4,4), curiosamente se opõe e não dialogam.
Curioso porque a visão da ceia derradeira de Jesus com seus discípulos, o seu grande memorial e seu presença eternizada em sua materialidade (carne e sangue), é causa de muita controvérsia e divergência, tanto é verdade que ele fracionou o pão, como é verdade que declarou sua divindade.
Pensar as coisas do alto assim não pode deixar de ter sua concretude, sua materialidade, vejam que o pão não é o trigo, mas o trigo transformado por mãos humanas em pão, assim como o vinho.
Não deixa de ter o aspecto mais sagrado e divino ao pedir aos discípulos que façam isto em sua memória e em seu nome, assim ele é renovado e divinizado pelas mãos humanas que o repetem.
Como entender a comunhão sem a presença do Outro, sem a dialógica com o contrário, sem este paradoxo de entender que mesmo havendo oposição é possível novos horizontes como preconiza o círculo hermenêutico, que pede que antes sejam deixados “entre parêntesis” os pré-conceitos.
Temos uma visão de verdade, de lógica e de racionalidade, porém a verdadeira comunhão só é possível com um passo além, a crença que algo divino também pertence ao Outro, ao diferente e ao oposto a minha visão de mundo, não há comunhão sem isto, há apenas tolerância.
Sempre me perguntei porque guerras, fome, miséria, injustiças entre os homens, minha resposta hoje é que não há verdadeira comunhão entre homens, talvez alguma pequena tolerância, algum respeito que esconde verdadeiros interesses, talvez um respeito até humano porém não divino.
A policrise e pensar alto
Quando pensamos apenas nas coisas cotidianas, elas são importantes e até fundamentais, muitas vezes deixamos de perceber o que de mais profundo implicam nelas, o pensamento e a cultura que estamos imersos e que apontam aceleradamente para uma policrise.
A palavra cunhada por Morin foi retomada em uma entrevista ao Le Monde, onde ele enfatizou: “A crise da saúde desencadeou uma engrenagem de crises que se concatenaram. Essa policrise ou megacrise se estende do existencial ao político, passando pela economia, do individual ao planetário, passando pelas famílias, regiões, Estados. Em suma, um minúsculo vírus em um vilarejo ignorado na China desencadeou a perturbação de um mundo”(Le Monde, em 20 de abril de 2020).
Em seu livro VI do Método: a ética, ele explica: “Nossa civilização separa mais do que liga. Estamos em déficit de religação e esta se tornou uma necessidade vital”, assim não como não pensar em coisas do alto: a empatia, a civilidade, a cordialidade e outros valores que aos poucos foram se perdendo e nos embrutecendo como civilização.
Como pensador complexo o seu pensamento é antidisciplinar (no sentido de especialidades rígidas) e transdisciplinar (no sentido de recuperar o todo perdido em fronteiras rígidas do pensamento que definem apenas um aspecto da vida).
Os operadores do pensamento complexo (o livro Introdução à Complexidade é fundamental) é como diz a própria palavra intrincado e abrangente, porém destaco dois pontos essenciais ao seu método, o aspecto dialógico e hologramático.
O dialógico considera a união de termos opostos e contraditórios como complementares, por exemplo vida e morte, este paradoxo é vivido no sentido sagrado nesta semana de Páscoa, embora não se limite ao religioso, pode e deve ser pensado no existencial e político.
O hologramático destaca que o aparente paradoxo dos sistemas são partes componentes de um todo (na figura a formação do universo), assim como cada parte tem prefigurado um aspecto do todo, o exemplo mais comum é o do caleidoscópio, porém o do corpo humano também é interessante, cada parte é viva pelo funcionamento do todo e auxilia o todo a funcionar.
Nos comportamos como torcidas fanáticas e desinteressadas do todo por exercer de modo demasiado uma cultura material, puramente terrena e humana que torna o todo, o alto e o divino inconcebíveis no dia a dia.
Contratualismo e inocência
A grande discussão dos contratualistas era sobre a não inocência da pessoa, todos eles são defensores dos poderes do estado e em última análise do in dubio pro societate (na dúvida, a favor da sociedade e não do réu), Hobbes via o homem como mau e o estado devia policia-lo, Locke via como limitava os poderes do estado e dava direito ao povo de rebelião e Rousseau via o homem como bom, a sociedade é que o corrompia.
Nenhum deles nega a necessidade e a prioridade dos poderes do estado, assim foram pilares de todas as modernas constituições dos países, e sua atualização está em John Rawls e seu sucessor Michael Sandel.
Ambos foram idealistas kantianos e utilitaristas, porém há uma pequena diferença que Sandel criticava o voluntarismo de Rawls, segundo o qual princípios políticos e morais se legitimam partir do exercício da vontade individual através da escolha ou do consentimento.
Reivindicava para isto o empirismo de Locke: “somos todos, por natureza, livres, iguais e independentes, ninguém pode ser excluído dessa situação e submetido ao poder político de outros sem que tenha dado seu consentimento” (1988, seção 95).
Para entender a posição de Sandel é necessário ler ao menos a obra que indicamos ou entender claramente seus exemplos, os quais procura tornar práticos e claros seus conceitos, em relação ao pertencimento de grupos, como garantia de interesses coletivos (ele rejeita o termo comunitarismo) cita dois casos: o de um piloto da resistência francesa que durante a Segunda Guerra Mundial se recusou a bombardear a sua cidade natal, mesmo sabendo que isso contribuiria para a libertação da França (2012, p. 279), o pertencimento a sua cidade natal.
O segundo exemplo é o de uma operação de resgate organizada pelo governo de Israel para salvar judeus etíopes de campos de refugiados no Sudão (2012, p. 280), o pertencimento ao povo judeu.
Porém em uma de suas famosas palestras na qual dá outros exemplos, e faz vários diálogos com a plateia, é pego em contradição ao dar o exemplo de 6 pacientes chegam a um pronto socorro e 1 está em estado grave enquanto os 5 pacientes que precisam de doação de diferentes órgãos para sobreviverem e o paciente em estado grave exige muito tempo de cuidados, faz a pergunta se o deixaria morrer para ajudar os outros.
A maioria das pessoas concordaram em deixá-lo morrer, mas um jovem (na foto) disse que tinha outra solução, dos 5 que estavam para morrer, o que morresse primeiro doaria os órgãos para os outros, o que deixou Sandel constrangido e chegou a admitir: “é uma boa ideia, exceto pelo fato que destruiu o ponto de vista filosófico” (vejam o vídeo abaixo).
Há relações interpessoais e ontológicas que ultrapassam a mera subjetividade é algo entre seres e não apenas dos seres e suas culturas ou pertencimentos, está numa espécie de alma coletiva, numa noosfera onde tudo é mais do que lógico, é onto-lógico.(155) Justiça com Michael Sandel O Lado Moral do Assassinato – YouTube
LOCKE, J. (1690). “Second Treatise of Governement”. In: Two Treatises of Government Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
SANDEL, M. “Justiça – o que é fazer a coisa certa”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
A vida examinada no amor
Podemos examinar que uma vida examinada seja segundo os grandes feitos, nomes que ficaram na história, as recentes revisões mostram que não é bem assim, também tiranos, colonizadores e Pessoas não tão honestas podem ter glórias terrenas, mas passageiras.
A vida examinada segundo Sócrates, e também o pressuposto de Kurosawa em seu filme Viver é sobre aquilo que se construiu por amor aos outros, e isto torna uma vida “bem vivida”, por isto Sócrates vai inspirar a criação da polis grega, uma sociedade a serviço de todos cidadãos, ainda que o conceito de cidadania fosse restrito.
Sempre se pode olhar a volta e perceber algo de bom e justo que se pode fazer, muitos homens fizeram pequenos ou grandes feitos para o bem público sem que tenham recebido qualquer reconhecimento, o velho que morre no parque que ajudou a construir no filme de Kurosawa está feliz mesmo diante da morte.
Chamo a este tipo de clareira de iluminação das consciências, não pode ser feita de aparências e nem de subterfúgios, deve ser feita diante do espelho e da própria consciência, o fenômeno que acredito ser possível, quiçá um dia para toda a humanidade (se é que não é feito na hora da morte), tornaria os homens melhores porque perderiam as máscaras de suas narrativas.
Há dois Lázaros na Bíblia que são infortúnios, o miserável que fica na porta da casa de um rico, que fica a porta a espera de esmola e das sobras, e Lazaro amigo de Jesus, que mesmo sabendo de sua morte só vai visita-lo 4 dias depois e o ressuscita, não o faz por compaixão apenas, também o faz por uma atitude pedagógica, depois do feito alguns judeus acreditaram nele por tamanho feito.
Diz a Leitura de Jo 11, 41-42: “Tiraram então a pedra. Jesus levantou os olhos para o alto e disse: ´pai, eu te dou graças porque me ouviste. Eu sei que sempre me escutas. Mas digo isto por causa do povo que me rodeia, para que creia que tu me enviaste”.
O texto diz que Jesus chorou, assim o amor evangélico não é desprovido de sentimento, como também não é puro sentimento, há uma razão para crer: acreditar que o amor dá dignidade a vida humana.
Cegueira, lucidez e serenidade
O que pode ser chamado de cegueira na literatura, quase sempre ultrapassa a simples dificuldade de funções visuais, ao menos uma deve ser considerada que é a das faculdades cognitivas que em última análise desenvolvem e adaptam o pensamento às percepções visuais.
Assim há uma cegueira civilizatória, aquela que não percebe os obstáculos e até abismos que podem se abrir no processo civilizatório contemporâneo, as forças e o domínio das forças da natureza, como pensava Heidegger sobre as técnicas, que impedem um pensamento reflexivo.
Olhar para a cegueira apenas como a dificuldade do campo visual, a realidade imediata é assim a pior das cegueiras, incapaz de contemplar a essência do Ser, aquilo que é designo de cada homem durante a sua vida pessoal e social.
Assim ao desenvolver as funções cognitivas o homem pode ganhar lucidez, olhar com clareza para a própria vida e a de sua sociedade e cultura, pode leva-lo além desta clareza a uma vida de serenidade e de paz, ainda que esteja numa vida social em conflito.
Não é a paz cômoda ou individualizada, mas aquela que é capaz de lidar com contradições, oposições e incompreensões, comuns em um processo de crise civilizatória.
A realidade que vivemos pode levar mais rapidamente a uma ruptura de lucidez e serenidade e quanto mais longe delas, mais dificuldades para encontrar caminhos e veredas de retorno a paz.
Uma das passagens mais elucidativa da leitura bíblica cristã sobre a cegueira, é a cura de um cego de nascença, que, portanto, não desenvolveu o aparato cognitivo para enxergar e assim teria dificuldade de perceber os objetos, cores e seres a sua volta, mais do que ter a função da visão, ele compreende cognitivamente o que está vendo.
Diz a passagem os fariseus questionavam a cura do cego (Jo 9,10-12): “Então lhe perguntaram: ‘Como é que se abriram os teus olhos?’ Ele respondeu: ‘Aquele homem chamado Jesus fez lama, colocou-a nos meus olhos e disse-me: ‘Vai a Siloé e lava-te’. Então fui, lavei-me e comecei a ver.’ Perguntaram-lhe: ‘Onde está ele?’ Respondeu: ‘Não sei.’”
E os contemporâneos de Jesus continuaram na cegueira sem entender a cura do cego.
Da lucidez à serenidade
Se a clareza (ou claridade) é propriedade da lucidez, a lucidez precede a serenidade, ou seja, pode-se ter lucidez sem que se atinja a serenidade, este estado de espírito é algo muito atual, é uma busca do homem na modernidade.
A obra “Serenidade” de Heidegger, publicada em 1955, mas como meditação foi feita em 1949, por ocasião do centenário de morte de Conradin Kreutzer, compositor conterrâneo de Heidegger, ambos nascidos na cidade de Messkirch, porém em épocas diferentes.
Heidegger neste opúsculo vai diferenciar o pensamento reflexivo (ou meditativo) do pensamento calculador (ou maquínico) próprio de nosso tempo, assim vai comparar o pensamento de nosso tempo com a música, “limitamo-nos a ser entretidos por um discurso. Não é necessário pensar enquanto ouvimos a narração, isto é, meditar (besinnen) sobre algo que, na sua essência sobre algo que, na sua essência diz respeito a cada um de nós direta e continuamento” (p. 11)
Assim “A crescente ausência-de-pensamentos assenta, por isso, num processo que corrói o âmago mais profundo do homem atual: “o Homem atual ´está em fuga´ do pensamento” (p. 12)
Por outro lado, o pensamento maquínico assenta-se na técnica (veja que o texto é de 1955), onde “o pensamento que calcula não é um pensamento que medita, não é um pensamento que reflete sobre o sentido que reina em tudo que existe” (p. 13)
Heidegger sabe que um dos argumentos sobre a reflexão é que “a pura reflexão, a meditação persistente, é demasiado ´elevada´ para o entendimento comum” (p. 14), diz ao homenagear seu conterrâneo músico, que bastaria pensar no que significava naquele momento a sua terra natal, onde surgiu a música extraordinária de Kreutzer, lembro de um conto de conto de Leon Tostoi que falava desta dinâmica dos sentimentos justamente num conto chamado “Sonata a Kreutzer”.
Propõe assim aos presentes “o que nos sugere esta celebração, se estivermos dispostos a meditar? neste caso, atentamos que, do solo da terra natal medrou (gedieben) uma obra de arte. (p. 15)
Assim não é preciso um pensar elevado, mas apenas uma pequena pausa, um silêncio na alma.
HEIDEGGER, M. Serenidade. trad. Tradução de Maria Madalena Andrade e Olga Santos. Lisboa: Instituto Piaget, s/d.
O que há além do humano
Certamente existente a natureza, os planetas e todo o universo, quando mais visto pelos engenhos humanos: as viagens interplanetárias e o megatelescópio James Webb, mais complexas e desafiando a inteligência humana.
Mas há algo no homem no além humano que está na sua consciência e nos seus sentimentos e afecções, há uma complexa centelha divina, diz o poeta que o faz procurar fora o que está dentro.
Imaginar que isto poderá estar numa máquina é apenas um dos aspectos do controle e da vontade de poder humano, cujo tema desenvolvemos na semana passada, o transumano cria uma ficção e uma fantasia humana de que o próprio homem criaria algo para ultrapassá-lo, a grande fantasia do desenvolvimento dos recursos da Inteligência Artificial atual, tudo que estiver lá o homem que pôs.
É o desejo humano de ser seu próprio criador e quem sabe atingir uma divindade terrena, porém ao contrário do que busca, a tecnologia não tem só a finalidade de destruir e também de auxiliar, pode por devaneio impelir forças extra-humanas de destruição.
Fomos criados pois o homem não existiu sempre na terra, e mesmo a hipótese de termos vindos de outros astros celestes, a fantasia dos alienígenas, que até podem existir, serão criados por algo que tem uma consciência infinita e maior que a nossa, teve que existir um princípio criador celeste e ontológico, com lógica do ser (onto).
Esta fantasia mística faz sentido, por que qualquer ciência, filosofia ou teologia que se preze vai especular sobre a criação humana, e qualquer escatologia vai pensar sobre o nosso destino.
Há um momento na vida terrena de Jesus, a figura histórica é incontestável, em que Ele se revela como divino aos seus discípulos, que ficam tão maravilhados que querem construir três tendas e ficarem ali, o evento chamado de “Monte Tabor” (foto), onde estavam com Jesus apenas três discípulos.
(Mt 17,1-3): “Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha. E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz. Nisto apareceram-lhe
Poder e interioridade
Esclarecido no post anterior a diferença entre alma e espirito, o conceito usado por Hegel para desenvolver a ideia (metafisica, para ele “subjetiva”) de poder usa uma analogia da digestão, que Byung Chul Han aproveita:
“O poder é, para Hegel, já efetivo no nível mais elementar da vida. A digestão, desse modo, é já o processo do poder no qual o ser vivo leva consigo, aos poucos, seu outro a identidade” (Chul Han, O que é poder?, p. 102), chega a dizer que o ser vivo gera identidade com o outro, porém ignora que em sua gênese há um processo metafísico.
Nietzsche vai desenvolver esta questão como vontade de poder, neste caso confundido com a dominação que já tratamos aqui e que é uma categoria sociológica, porém o poder como uma metáfora, a nosso ver mais adequada, é aquilo que geramos em nossa interioridade digestiva.
Como digerimos a imagem do outro como nossa identidade ou não, pois reconhecemos diferenças não só no genótipo, mas principalmente nas diferenças de sentimentos, julgamentos e decisões, de modo mais amplo de acordo com a nossa cosmovisão.
Assim o desejo de paz ou de guerra com o diferente, a tolerância ou intolerância em diversidades de pensamento sobre o mundo e as coisas não deve estar na categoria do certo e do errado, claro assim o errado deve ser punido, mas o que é errado deve estar circunscrito nos limites do humano, assim se matar é errado, a guerra é um erro grave onde um povo pode exterminar outro.
A renúncia a este poder metafísico, gerado em nossa interioridade ela nossa visão de mundo, deve sempre estar interiorizada (digerida) também como uma vontade, um comando, do tipo não-posso.
A lição bíblica sobre esta questão, descrita como as “tentações de Cristo”, estão na passagem Mt 4,1-11.
Na passagem após jejuar e renunciar ao poder de transformar as pedras em pães e disser que se lançasse sobre a cidade de Jerusalém, o diabo o tenta com o poder e mostra-lhe os reinos do mundo: “e lhe disse: “Eu te darei tudo isso, se te ajoelhares diante de mim, para me adorar”. Jesus lhe disse: “Vai-te embora, Satanás, porque está escrito: ‘Adorarás ao Senhor, teu Deus, e somente a ele prestarás culto’”. Então o diabo o deixou. E os anjos se aproximaram e serviram a Jesus” (Mt 4. 9-11).
Poder e alma
Não há no discurso sociológico algo que de fato desvende o que é o Espirito, a grande razão ela qual a filosofia veio re-trabalhar a questão do Outro (Levinas, Ricoeur e até mesmo Habermas e Chul-Han a retomaram) é que a visão idealista é centrada no “eu”, também o pensamento vulgar foi por este caminho: o “mistério”, a chave do sucesso, etc.
Para se ter uma relação com a alma é preciso saber não a ex-sistência (ex-fora e cistere – cisterna), mas que Deus é, sua essência é Ser em sua plenitude e assim nele há a plenitude ontológica e assim a alma, do grego anima, é o que Ele insere no homem para dar-lhe vida.
Assim seu poder é ontológico, Byung Chul Han chega a relacionar Heidegger com sua concepção de poder, e também de religião com poder, mas sua leitura é dualista neste ponto, ou religião ou ontologia, é verdade que existe uma teo-ontologia, porém há uma relação forte entre elas, desde Tomás de Aquino.
A relação que Chul Han estabelece está descrita assim: “Embora Deus seja a ´subjetividade´, esta não se esgota na identidade abstrata, sem conteúdo, do ´eu sou eu´. Ele não permanece em um silencio e hermetismo eternos´” (Han, 2019, p. 120), citações que ele retira de Lições de filosofia da religião de Hegel, e não é de estranhar que pense, ele é próximo ao budismo e a ascese é humana.
Já escrevemos no post anterior que Deus é poder na visão hegeliana, e Chul Han a descreve a partir da ideia idealista: “pois Ele é um poder de ser Ele mesmo” (Han, 2019, p. 121), e assim não há relação de criação (e não imanência) com tudo que existe, incluindo o homem e sua alma.
Diferente do Espirito desenvolvido por Hegel (Fenomenologia do Espírito), sem a relação com a alma não há um Deus trinitário, além do divino-humano Jesus, o Espírito Santo, terceira pessoa.
Através de uma verdadeira ascese o homem conhece um verdadeiro poder, que não é uma dominação sua descrição sociológica, mas uma relação ontológica com sua ascensão, por ela diz a leitura bíblica o homem se eleva verdadeiramente.
Diz uma passagem da leitura divina, na qual Mateus revela como uma lição de Jesus (Mt 4,25):
“Com efeito, de que adianta a um homem ganhar o mundo inteiro, se se perde e se destrói a si mesmo?”, ou seja, se destrói sua alma.
HAN, B.C. O que é poder?. Trad. Gabriel Salvi Philipson. RJ: Petrópolis, Vozes, 2019.