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A redução do meio divino ao humano
Pode-se negar a existência de Deus, o argumento da evidência é ingênuo, não sendo nem lógico como queriam alguns racionalistas modernos, nem humano como queriam alguns idealistas alemães e nem ontológico como apresentado por Santo Anselmo.
Há uma verdade que vem de Sócrates que diz que ela não está com os homens, mas entre os homens, isto significa que é ontológica e complexa ao mesmo tempo, e não se pode negar a existência histórica de Jesus, quer seja por seu nascimento histórico num período em que o senso foi obrigatório, por isto nasceu em Belém, e o registro de sua morte e crucificação que é contada por historiadores da época, incluindo Josefo e pela historiografia judaica.
Porém o que Nietzsche, nascido numa família de religiosos luteranos enxergou além do seu tempo, é uma evidencia filosófica e histórica da morte de Deus, através de sua epifania humana através da figura histórica de Jesus, ao menos para a cristandade, enquanto Deus pode ser pensado em inúmeras escatologias presentes em quase todas as culturas para não ser exaustivo, pois mesmo os povos ditos bárbaros, tinham alguma forma de divindade.
Porém o grito do louco de Nietzsche é a constatação da construção da filosofia idealista e positivista que desejou assumir como discurso único sobre a realidade, Tomás de Aquino e outros medievais eram realistas como corrente filosófica, tem agora um ocaso obscuro.
Desta filosofia isolacionista, individualista e separatista do mundo decorrem três formas de heresias coletivas: um Deus meramente humano, um Deus meramente divino e uma total ausência da terceira pessoa divina: o Espírito Santo, para o qual não há perdão.
Este pecado não é a mera negação de Deus, mas sua negação concreta a negação do Outro.
Teilhard Chardin diz sobre a inclusão do Outro que este é o “meio divino”, a mística típica do nosso tempo, que também pode ser expressa como “onde dois ou mais estão em meu nome” (Mt 18:20), que é um texto subsequente a pergunta “e vós, quem dizeis que eu sou” (Mt 16:15), do qual seguem várias passagens da relação com o Mundo e com Deus.
Pode-se dizer que há duas reduções: ao meramente humano e ao meramente divino, porém a principal redução é a ignorância de uma terceira redução que é a da ação do Espírito Santo.
Na redução do divino, Jesus nos milagres quase sempre pedia descrição ou fazia alusão a fé do curado, do agraciado ou apenas da maravilha do contato como o cego Bartimeu, a profetiza Ana, Simeão, os paralíticos, leprosos ou a mulher a quem dirige a palavra.
A verdadeira escatologia não vê apenas princípio ou fim, mas ambos em relação ao cotidiano da vida humana, Teilhard Chardin faz reflexão no livro O meio divino (1957): “a tensão lentamente acumulada entre a Humanidade e Deus atingirá os limites fixados pelas possibilidades do Mundo, e então será o fim … que devemos esperar não como uma catástrofe mas como uma ´saída´ para o mundo para a qual devemos colaborar com todas as nossas forças cristãs sem receio do mundo, porque os seus encantamentos já não poderiam prejudicar aqueles para quem ele se tornou, para além dele mesmo, o Corpo d´Aquele que é o d´Aquele que vem”
Assim como o evangelista Lucas (Lc 9,20), Mateus também repete a pergunta de Jesus aos discípulos Mt 16,15: “E vós, quem dizeis que eu sou?”.
CHARDIN, T. O meio Divino: Ensaio de vida interior. Lisboa: 1957.
Deus não morreu, nós o matamos
É má leitura de Nietzsche a ideia que Deus morreu, o que acontece na leitura de “A gaia ciência” (Nietszche, 2017), primeiro que fala de ciência, segundo que Gaia no sentido grego refere-se a Mãe-Terra e por fim, o louco “pôs-se a gritar incessantemente: Procuro Deus”.
Vejamos o próprio texto dele, ainda que a tradução possa ter imperfeições:
“homem Louco. – Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança?
Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós os matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo?
Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós os matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará esse sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele?
Nunca houve ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!” Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo.
Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles cometeram! – Conta-se também no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas , e em cada uma entoou o seu Réquiem aeternaum deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?”.
No próximo post sugiro algumas interpretações, inclusive uma cristã, agora façam as suas.
NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Aforismo 125, LeBooks, 2017.
Uma Maria mais humana
Uma menina de 15 anos fica sabendo que vai ser mãe de uma maneira difícil de compreender, apesar de ser profundamente religiosa, e ter coragem de assumir aquilo que para ela era uma Vontade de Deus, certamente ficaria abalada, como de fato ficou, diz a leitura bíblica Lc 1, 27-28:
“O anjo, aproximando-se dela, disse: “Alegre-se, agraciada! O Senhor está com você!”
Maria ficou perturbada com essas palavras, pensando no que poderia significar esta saudação.
Ela diz não conhecer (ter se relacionado com) homem algum, então o anjo explica Lc 1,35:
“O Espírito Santo virá sobre você, e o poder do Altíssimo a cobrirá com a sua sombra. Assim, aquele que há de nascer será chamado Santo, Filho de Deus”.
Diante da perplexidade da adolescente, o anjo lhe dá uma chave de leitura Lc 1,36:
“Também Isabel, sua parenta, terá um filho na velhice; aquela que diziam ser estéril já está em seu sexto mês de gestação.”
“O anjo respondeu: “O Espírito Santo virá sobre você, e o poder do Altíssimo a cobrirá com a sua sombra. Assim, aquele que há de nascer será chamado Santo, Filho de Deus.”
E diz aqui que é usado por religiosos em diversos contextos e não deveriam ser Lc 1, 37:
“Pois nada é impossível para Deus”.
Curiosamente é quase sempre quem usa o texto bíblico os que menos acreditam que Maria era especial, aos olhos de Deus e dos homens, mas também há aqueles que não veem a fragilidade e as dúvidas desta jovem adolescente que vai em corrida a casa da prima, justamente pela chave de leitura dada pelo anjo: “também Isabel, sua parenta, terá um filho na velhice”, e provavelmente isto instigou Maria a visitá-la (na foto o quadro Visitación de Rafael de 1517).
Diz a leitura seguinte, que dias mais tarde, Maria foi “apressadamente ás terras montanhosas da Judeia”, a vila onde morava Isabel, grávida de João Batista, o precursor de Jesus e Zacarias seu marido que ficara mudo ao saber da concepção.
Ora Maria até este momento não entoara seu canto, o chamado Magnificat, e é muito provável que seu coração ainda tinha dúvidas e conservava parte do abalo inicial.
Diz que assim que Maria saudou o a prima, o menino de Isabel (João Batista) saltou no seu ventre, e Isabel ficou “cheia do Espirito Santo”, ora falamos no post anterior o papel deste Deus pouco compreendido, o Espírito Santo.
Assim como a relação ontoantropológica com Eva, há uma relação ontoteológica com Izabel, sua prima, e só então Maria entoa seu canto Lc 1,46-48)
“Disse então Maria: A minha alma engrandece ao Senhor, E o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador; Porque olhou para a humildade de sua serva; Pois eis que desde agora todas as gerações me chamarão bem-aventurada”, que é um proto-evangelho de Maria, de onde se pode tirar também relação com a Ave Maria dos católicos, que tem referência bíblica Lc 1,42.
O que devemos fazer
A aporia dos gregos, a impropriedade (eu traduzo como irrazoabilidade) de Heidegger, o medo e a fragilidade de Martha Nussbaum, podem todos serem compostos em um suco que ajude a olhar para frente o momento atual, com serenidade e esperança.
Antes do advento do nascimento de Jesus, o Natal tem este significado simbólico mais profundo, esperamos uma “salvação” e ela deve ser concreta, João Batista pregava no deserto e a multidão que o seguia tinha apreensão e angustia, perguntavam-lhe: “Que devemos fazer?” João respondia: “Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo!” (Lucas, 3,11).
Iam para lá também cobradores de impostos, os corruptos de hoje que sujam toda a saúde financeira do estado, este é o protesto na França, e parece que também Teresa Mey no Reino Unido começa a dar sinais de fraquezas, a virada conservadora mostra sua impotência.
O que devemos fazer, não perder a solidariedade, a fraternidade, e que o espírito do advento do natal nos ajude naquilo que deve “advir” e virá, mas é preciso mentes e corações fortes.
O sentimento de morte, e até de certo abatimento nos corações desejosos do futuro podem estar presentes, mas não devem significar rendição nem paralisia, mas sim Aporia.
É preciso estar aberto ao novo, e desenvolver a solidariedade denunciando a violência e os abusos sociais, o prêmio Nobel o médico Denis Mukwege que socorre vitimas de abusos no Congo e que denuncia a violência ignorada pelo ocidente que acontece em seus pais, junto com Nadia Murad ativista contra o abuso sexual de mulheres, que foi ela própria vítima de violência dos
Denis Mukwege elogio o bom uso das novas mídias para denunciar estes fatos que a grande imprensa ignora ou torna-os menos graves do que são, assim a mudança digital, a inteligência artificial, a informação e a comunicação estão aí não para atrapalhar, mas para ajudar isto.
Os exemplos de Denis Mukwege e Nadia Murad nos servem para vencer o medo e seguir em frente, as mudanças que todos esperam virão com nosso empenho sereno e decidido.
O medo, a angústia e a mudança
O filósofo Martin Heidegger (1889-1976) convida aqueles que vivem no medo, a viver na impropriedade, ou seja um tipo de aporia que significa pensar sem atribuir valores e sentido, deixando que as circunstâncias o atribuam, parece uma alienação, mas é a alienação do eu.
Num mundo que vive sempre correndo, e alerto que isto já era reflexão de Nietzsche e também a Paulicéia Desvairada de Mario de Andrade da década de 20, e agora a Monarquia do Medo que é uma reflexão de Martha Nussbaum para os EUA, mas que serve ao Brasil e outros.
Nada está mais relacionado ao medo que a Morte, mas ela desperta também a angustia, seria de pensar qual a relação destas com a mudança, diria nenhuma, a menos da hipótese que Heidegger nos lança: a impropriedade, ou seja, deixarmos de atribuir sentido e permitir que os outros o atribuam, diria que é uma dialógica resignada.
Heidegger escreveu também que é na angústia que experimentamos nossa fragilidade.
Nela encontramos de forma inesperada a mudança, aonde nem a angústia e o medo alcançam, alem deles portanto, onde nasce a esperança e a “clareira”, luzes sobre a floresta.
Então o medo existe porque existe um perigo real, e significa que algo está em mudança, a angústia nos leva a pensar sobre qual é a mudança e o rumo dela.
Desconfio que o termo impropriedade usado na tradução nacional para a palavra de Heidegger unangemessenheit, possa ter outro significado, já que angemessen pode ser traduzido como o que é razoável, então eu traduziria irrazoabilidade, ou seja, o que não é em certo sentido como sendo razoável, mas que diante do medo e da angústia surgem como tendo novos horizontes, de onde podem emergir mudanças que antes eram impensadas.
O poeta alemão Hölderlin dizia que onde há medo há salvação, pode-se dizer nos dias de hoje de modo mais amplo, ou seja, na ciência, na política e porque não na espiritualidade.
Entre a Aporia e a Aletheia
A palavra grega Aporia (Ἀπορία) significava na Mitologia grega a impotência, a dificuldade e o desamparo, ou ainda a falta de meios, foi repensada pela escola aristotélica como impasse, paradoxo, dúvida, incerteza ou mesmo contradição, seus estudos são designados aporética.
Aristóteles a definiu como “igualdade de conclusões contraditórias” (Tópicos, 6.145.16-20).
Ela é importante porque rompia, ainda que participialmente, como a lógica de Ser ou Não ser, não podendo haver contradição, o que veio dar no idealismo contemporâneo.
É radicalmente diferente da Aletheia, porque está é encobrimento, não a contradição e assim era designada pelos antigos gregos como verdade e realidade, simultaneamente.
Heidegger a retoma na tentativa de “desvelar” a verdade, esta considerada um estado descritivo objetivo, e, portanto, carente de um movimento metafísico ou subjetivo.
Aporia foi também usada por autores contemporâneos, como Derridá e Paul de Man, portanto na teoria literária pós-estrututalismo, é assim a própria leitura desconstrutiva do texto, que já alertamos anteriormente que nada tem a ver com negação da verdade, mas indeterminação ou indecidibilidade.
O sentido de as colocarmos juntos aqui é justamente buscar uma relação que na teoria contemporânea está desconexa, sendo ela própria uma aporia, a viragem linguística parece não ter nada e nenhuma ligação com a ontológica, assim aporia e aletheia estão desconexos, os gregos pouco ajudam, pois, a leitura é no particípio passado e não particípio presente.
É curioso, mas foi Portugal que me alertou para o fato, aqui não se usa o gerúndio: alguém está falando, está a falar dizem, assim nada estará sendo, mas está a ser, esclareceu-me padre Manuel Antunes ao dar características do povo português: povo místico, mas não metafísico.
Enquanto aporia é particípio passado ela torna-se fatalista, indeterminada como busca da verdade, já a aletheia enquanto desvelamento é uma constante busca de horizontes, onde não há verdade definitiva, mas verdade em construção: sendo, revelando, acontecendo.
O determinismo filosófico, político e principalmente o religioso leva a diversos tipos de fundamentalismo, vai da pura aporia a pura “verdade”, não há dialógica nem desvelar.
O círculo hermenêutico de Heidegger não é apenas um método, é u desvelar, admitir a ideia que todos temos pré-conceito é um desvelar para a crise da modernidade, o legalismo e o positivismo idealista deu no que deu, uma realidade aporética, que parece sem saída, mas a própria humanidade aponta caminhos, um já é claro: admitir que há pré-conceitos é o único remédio e diagnóstico capaz de superá-los.
Culturas, religiões e conceitos políticos estão em choque isto é aporético, podem e devem entrar em dialógica humanista, isto é, desvelamento e busca de horizontes.
Aporética e maiêutica digital
No período pré-socrático, a filosofia chamada sofista tinha como pressuposto criar discursos para favorecer os governantes e isto logo levou a democracia grega a definhar e a um relativismo moral, Sócrates que viveu no séc. IV a.C. propôs um método para enfrentar isto que foi desenvolver a maiêutica, um método de perguntar que desenvolvia o logos.
Porém o estado aporético que de vivia era necessário mais que perguntar, um interlocutor devia abandonar seus pré-conceitos e o relativismo das opiniões exigia algo mais do que apenas perguntar, algo que fizesse um parto no pensamento novo, daí o nome maiêutica que era a arte de parir, assim não se tratava de “criar” conhecimento, mas de o parir.
Não há dúvida que o meio digital tornou-se torcidas de “opiniões”, a doxa como chamava os gregos, mas pode-se parir e indagar no meio digital ? é possível uma maiêutica digital, o caso não é apenas o modo como torcidas (claques em Portugal) se organizam, mas como são manipuladas por sofismas, hoje atualizada como “fake news”.
O sofisma existe na história, nunca deixou nem deixará de existir, em tempos digitais o problema é o processo viral, mas os grupos editoriais através de jornais e canais de TV já fizeram isto e sempre houve uma maiêutica que se contrapôs a manipulação aos fatos.
Retornemos ao método de Sócrates, este não tinha inicialmente saber algum, não fazia seus juízos segundo a tradição, os costumes, as opiniões, nem era dono de um episteme, ou um método elaborado, apenas perguntava, o problema hoje é que as questões são amplas e a modernidade já criou um saber “organizado” (no sentido sistemático e não como verdade), mas podemos usar isto para uma nova maiêutica digital, repelindo discursos equivocados.
Penso que não por acaso que a Inteligência Artificial esteja evoluindo, mas a inteligência prática, a phronesis unida a techné e a própria práxis (que é, portanto, uma parte da prática) poderão ajudar, então o discurso de Martha Nussbaum faz muito sentido.
Muita gente fala em manter o “foco” (mas ele pode estar errado) ou inteligência emocional, que desligada de uma sabedoria prática (a phronesis) pode cair em paralisia ou alienação.
Tudo o que temos hoje não é devido o mundo digital, embora afete o mundo, ele é um complexo meio e por isto é incorreto vê-lo como causa final ou inicial, nem mesmo foi a revolução industrial que causou isto, mas o conjunto de valores e sentimentos construídos na sociedade moderna, que nada mais são que uma forma de ser-no-mundo, um dasein como Heidegger mostrou.
Os recursos digitais parecem bem-vindos, mas ainda temos a barreira dos pré-conceitos, uma hermenêutica humana elaborada é necessária.
A aporia e o deserto
O que acontece em momentos de profunda crise é retornar ao porto seguro, infelizmente o porto seguro para as massas é aquilo que elas conhecem: um estado moderno forte e quando não o fundamentalismo religioso que parece devolver as raízes de cada povo.
Não são poucos os exemplos no mundo, até mesmo aqueles que se recusam, a rediscutir o estado, percebem que alguma coisa vai muito mal: cansaço da democracia ou até ódio à democracia, não é tão simples, não se cansa nem se odeia o que é bom, há algo errado.
A aporia é neste momento, mais que o vazio, porque este significa ouvir alguma coisa que vem a mente (o cogito cartesiano que não vai além do ego), o alter que é ouvir aquilo que não é o Mesmo, a aporia é o reconhecimento de uma falácia, mesmo que seja enquanto etapa histórica.
O diagnóstico de Sloterdijk é duro, devemos abandonar as profundezas de nossas interpretações antropológicas: todas as interpretações do homem enquanto “trabalhador” ou “comunicador” agora devem se traduzir na linguagem do exercício o que conhecemos até então como manifestações do homo faber ou homo religiosus, uma vida de “exercícios”.
Claro que é questionável, mais seu diagnóstico acertou até agora, os dualismos: sagrado vs. profano, pculturas aristocratas nobre vs. comum, culturas cognitivas conhecimento vs. ignorância, culturas militares vs culturas liberais, e vai por aí agora, é como se para diversos sistemas houvessem apenas a lógica dual binária, . Niklas Luhmann seguiu na mesma direção e chega a dizer que se constitui sua identidade, possibilita sua comunicação interna e regulamenta e restringe, ao mesmo tempo, sua comunicação com seu ambiente (Luhmann).
O que estaria além disto? A compreensão de cultura como regra e não como ancestralidade, é na verdade uma nova compreensão do humanismo ou mesmo o seu fim querem alguns.
Sob cultura entendem, desde Wittgenstein até Sloterdijk, são o conjunto de todas as formas comportamentais possíveis dentro de uma determinada sociedade, ou seja, todas as formas de vida que passam pelo crivo da regra; regra esta colocada num nível tão alto de exigência, que somente uma vida de exercícios pode alcança-la.
Assim poucos seriam capazes de cumpri-la. Wittgenstein, Nietzsche, Heidegger e até Foucault seriam todos representantes de uma filosofia enquanto disciplina, assim a filosofia, é mais que uma matéria escolar: ela é engajada e caracterizada por uma “tensão vertical”.
Se a politica conservadora brasileira requer uma escola sem partido, ela não pensa outra coisa que não seja o retorno a uma vida de exercícios: morais, religiosos e culturais, porque pouco ou nada sabe da origem de lemas como: “ordem e progresso”, lembra do positivismo de Augusto Comte do qual foi retirado a palavra “amor”, dispensável para ditadores.
A aporia necessária é o reconhecimento de uma noite cultural, filosófica e até mesmo religiosa que o ocidente enfrenta, mas também o budismo e o hinduísmo outrora pacifistas já dão sinais de “intolerância” em casos atuais em regiões da India e do Myanmar.
Somente uma “aporia moderna” será capaz de abrir um novo horizonte, esquemas antigos estão falidos, sou mais otimista que Sloterdijk e outros, o humanismo não morreu, há um humanismo de novo tipo que deve nascer: de todo homem e de toda cultura, sem exclusões.
Como está escrito em Lucas 3,4: “palavras do profeta Isaías: Esta é a voz daquele que grita no deserto: ‘preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas’ ”.
Aporia e esperança
O que podemos ter além da aporia, uma paralisação diante do impensável, retorno aos extremismos ?
Já postamos aqui sobe a phronesis, a sabedoria prática, que junto a techné e a práxis forma uma forma mais elaborada de entender a relação dualista e idealista de teoria e prática, mas foi Martha Nussbaum que colocou isto em novos patamares, apesar de desconfiança da crítica.
Martha Nussbaum foi a primeira ao desfilar em seu livro The Monarchy of Fear (A Monarquia do medo, poderá haver outras traduções pois o livro é de 2018), a obra que era uma visão clara do medo nos EUA, é agora também aplicada ao Brasil e ao crescimento dos fundamentalismos no mundo de hoje.
O nome pode parecer estranho, mas vai na linha de Rousseau o democrata “contratualista” mais lúcido e menos autoritário, onde a autora argumenta que numa monarquia a criança nasceu para “escravizar” as pessoas, mas ela evolui e vira um ser humano maduro quando consegue ver seus pais como uma extensão de si mesmo e passa a respeitá-los e a retribuir a vida que recebeu.
Partindo da teoria política, psicanálise, estudos psicológicos e clássicos, a filósofa argumenta que algumas emoções estão sabotando a democracia: o medo, a repulsa e a inveja, se antes não a levaram a sério, agora é hora de levar ao menos em conta.
Ela se contrapõe a esta teoria a escolha da esperança como um hábito prático, que significa colocarmos em contato com aquilo que a priori repelimos: a religião, as artes, a educação e o que parece mais fundamental: o estudo em detalhe das teorias da Justiça.
É um dos caminhos da transdisciplinaridade, mas antes devemos considerar o que está além do senso comum, pois também nestas áreas um certo nível de aprofundamento é necessário, além do autoritário e liberal, do justo e injusto social, da arte e das belas artes, há algo além e não é nem inter nem multi, mas trans, ou seja, além e nisto há algo de metafísico.
A esperança prática é também uma boa receita porque além de colocar algum luz no quadro atual de crise do pensamento, da cultura e até da religião, coloca-nos em movimento não na vida activa, mas em atividades que podem ser inseridas no dia a dia e alteram a vida e os resultados (incorporam assim phronesis e techné, embora a autora não a chame assim), ela trás para a conversa o tema das emoções, diz sobre si mesma: “não se tinha aprofundado o bastante”, disse em entrevista a Fronteiras do Pensamento.
Martha Nussbaum além de ser reconhecida estudiosa da cultura clássica, recebeu em 2016 o prêmio Kyoto, o equivalente japonês ao Nobel, que receberam também Karl Popper e Jürgen Habermas.
Não li o livro só esta entrevista e comentários em jornais, mas estou compondo minha lista de leitura para 2019, ele está nesta lista e que o espírito de paz e de fraternidade nos traga esperança.
O Natal e o Inverno
O Natal é diferente na Europa, o contraste entre o calor dos corações e o gelado das ruas dá um clima de recolhimento muito especial, diferente de países tropicais.
Pensava ser mais triste, mas não é, há corações atentos às luzes, ao burburinho das ruas, mesmo que alguém critique o consumismo ou o exagero, as pessoas querem se cumprimentar, querem fazer alguma coisa quase da mesma forma que no Brasil, sinto aqui até mais quente.
Fizemos um almoço com os colegas de meu ambiente de trabalho, e era mesmo festa, colocaram até as músicas de Natal de minha infância, não as convencionais, mas aquelas de criança como “deixei meu sapatinho”, é um clima gostoso, ao menos em Portugal.
Fui as ruas do centro iluminadas, uma bela árvore de Natal num dos lados da Praça do Comercio, a conversa nas ruas é curiosa, até mesmo islâmicos ou evangélicos, talvez seja só em Portugal, mas aqueceu meu coração.
Não estarei aqui na noite de Natal, nem no final de ano, mas ganhei uma visão mais otimista.
Difícil imaginar que em meio a tantas inclusive as religiosas, as políticas são fruto de uma volta a sentimentos nacionais e xenófobos, ainda há espaço para o aconchego, o amor e a amizade.
No meu cantinho festejei, certo de que será um pouco mais difícil no Brasil, mas não impossível, é preciso tentar mantar laços e evitar armar mais bombas do que as que estão ai.
Tempo de advento, que significa algo virá, ainda que seja contrário ao que desejamos é preciso manter a esperança, o espírito atento a injustiças e não fazer com os outros, o que não queremos que façam a nós.
Ainda que o Natal seja frio pelo clima natural ou pelo clima político, mantenhamos o calor.