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As estruturas do mal
Se o mal é ausência do bem, é possível também que em nossas ações individuais por descuido, por intenção ou por maldade mesmo, desejando fazer o bem façamos o mal, como explicou Ricoeur no mal simbólico.
Depois que o mal se estrutura socialmente ele parece dar sentido aquilo que em consciência plena sabemos que não é moral ou socialmente correto, não se trata do politicamente correto aqui, mas aquela estrutura de sentido que se dá através da linguagem simbólica, um exemplo grosseiro, mas que serve aqui, os diversos tipos de preconceito que entram na sociedade.
Pode-se didaticamente dividi-lo em três tópicos, sendo o primeiro dentro da experiência humana, o segundo dentro de vários discursos onde o mal tem uma importância filosófica de aporia, isto entro de um pensar filosófico, e o terceiro como determinação da linguagem que pergunta se o mal existe em si mesmo ou ´uma realidade de denominação sobre coisas e ações em torno da existência.
É assim possível discuti-lo fora do sentido maniqueísta, não são polos que se opõe, mas sim estruturas simbólicas que penetram em nosso cotidiano como experiência, como aporia (dificuldade ou dúvida racional sobre sua existência objetiva) ou elemento simbólico da linguagem.
A simbólica do mal foi profundamente desenvolvida no livro de Paul Ricoeur, está ligada a transcendência humana que de alguma forma determinada a negação dos valores positivos da existência humana: defesa da vida, valorização da solidariedade, proteção dos mais fracos, etc. já a aporia é aquela que pela indefinição clara dela cair na indeterminação do bem.
A aporia não só nega o mal, nega a evolução humana (social, tecnológica, ecológica e moral), desconhece o imaginário, a transcendência e valores morais além dos aparentes, nega o Outro imaginando que assim estarei afirmando seu Ser, que na verdade não o compreende ou não está integrado, prevalecendo assim uma rigidez idealista sobre o que seria a transcendência.
Construir o nosso Ser interior, coloca-lo a serviço da sociedade em todos sentidos, em solidariedade com todos os outros não é só um bem, é condição de evolução civilizatória (por exemplo, cidades ecológicas, imagem).
A civilização evolui não apenas porque constrói novas estruturas, tecnologias e valores humanos, mas porque em algum momento deste processo ele passa por imaginação, transcendência e olhar ao Outro e ao redor.
Narrativa e coerência ética
A polarização levou ao relativismo ético e o relativismo ético leva a instabilidade social, não há coerência entre o que se diz e o que se faz, tudo é feito para justificar esta ou aquela visão.
A coerência ética deve acompanhar todos primas de nossas vidas ou não é ética, apenas um comportamento conveniente, precisamos cultivá-la na visão social, profissional, religiosa e no âmbito familiar, não é apenas numa área porque o comportamento se torna um hábito.
A nudez de um jogo de vôlei universitário (evento esportivo numa universidade), a discussão sobre o aborto, a lógica da punição política ideológica e os discursos emblemáticos nos órgãos oficiais do país não são mera coincidência, não são tentativas autocráticas, são a falta resultado de um longo processo social onde a ética não predomina.
Um professor de ética de uma universidade após discutir um assunto em sala de aula, pediu que no intervalo os alunos anotassem na cantina ao menos um ato antiético: pés na parede, papéis no chão, fura filas, etc, na volta do intervalo todos alunos tinham algo a contar.
Não se trata também no exagero ou na ausência de punição, mas a medida justa, aquilo que no direito é chamado de punição desproporcional, mas também a ausência de punição é perigosa.
O problema é que Vigiar e Punir é um processo que pode levar a lógica do hospício, Foucault no seu famoso livro mostra que a justiça já no seu tempo deixou de aplicar torturas mortais e passou a buscar a “correção” dos criminosos, mas as práticas educativas são raras e hoje pior ainda, tornou-se unilateral, ou seja, a punição depende da condição e situação do réu.
É aquilo que Byung Chul Han chamou da psicopolítica, uma espécie de volta a tortura por meio de propaganda e visão distorcida dos verdadeiros problemas sociais, trata-se de combater o “inimigo”, e se aplica a lei somente neste caso.
As narrativas confundem a sociedade, criam buracos religiosos e animosidades, não é favorável a nenhum processo social saudável, cria mais divisão e injustiças.
O mal e as guerras de Dario
A separação entre a história humana laica e a religiosa nem sempre é possível sem uma adulteração de ambas por parte de quem a faz de modo particular.
Neste processo também se insere a questão do bem e do mal, é pensamento comum que serão “salvos” aqueles que estão nesta ou naquela confissão religiosa, ou ainda, que de alguma forma aceitaram Deus em suas vidas, esta é só uma parte da verdade.
Diz a leitura bíblica: “nem todo aquele que diz ‘Senhor Senhor!!’ entrará no reino dos céus” (Mt 7,21) e assim a compreensão do que significa de fato fazer um bem agradável aos céus, não é nem de longe o simples compromisso religioso formal ou nominal, é preciso a vontade.
A vontade também não é como uma crença que se espalha nos dias de hoje a reafirmação diária do desejo de determinada coisa, chamada de lei da atração ou “o mistério”, nem é também a vontade de potência como pensou Nietzsche, para o filósofo tudo no mundo é Vontade de Potência porque todas as forças procuram a sua própria expansão.
Vontade é num sentido espiritual aquilo que está em consonância com a potência que somos e que devemos desenvolver, dir-se-ia uma vocação, porém em atos cotidianos e que exigem a capacidade de discernir entre a própria vontade, muitas vezes impetuosa, e aquela que é um bem.
Aquilo pode-se distinguir melhor o mal, ausência do bem, e este mal, é o que desenvolvemos na semana passada como a inadequação do bem: enriquecer de modo ilícito, ser superior aos outros, julgar por critérios próprios não universais, enfim uma infinidade de questões são um mal não aparente, mas real.
Uma história universal e citada na bíblia é a de Dario no Império Persa, não sendo religioso ele chegou a nomear o profeta Daniel a uma de suas províncias (chamadas sátrapias), determina que o povo hebreu seja repatriado e autoriza a reconstrução do templo, conforme narra o livro de Esdras.
Sem ser religioso reconhece o povo hebreu, assim Dario tem um lugar privilegiado na história bíblica e religiosa, também um outro evento curioso é a guerra dos medos e lídios, após uma batalha indecisiva, no dia 25 de maio do ano de 585 a.C., ambos exércitos encerram a luta por um sinal no céu, que na verdade era um eclipse lunar anular.
Esta data foi confirmada por cálculos científicos, sendo uma das primeiras de eclipse anular registrado, outro igual acontecerá dia 14 de outubro próximo.
Assim pode-se entender os desígnios históricos e divinos mesmo sem uma crença, como fez o rei Dario e fazer aquilo que é justo e bom para os povos e a humanidade.
Em tempos de ameaças de guerra, encontrar este bem pode evitar grandes desastres.
Um inverno europeu frio e perigoso
Entramos na primavera do hemisfério sul e no outono do hemisfério norte, na Europa a preocupação com o estoque de combustíveis para o inverno devido ao embargo russo é crescente, há perigo de racionamento e uma corrida ao uso de carvão, na Polônia por exemplo já há filas para comprar os estoques.
Mas este não é o único aspecto, a redução da oferta de diesel pela Rússia afetará todo mercado mundial e o preço dos combustíveis fósseis pode disparar, segundo a Abicom a defesa no Brasil é de 7% em relação ao mercado internacional e 12% no caso do diesel, e poderá aumentar.
Outra crise é a dos alimentos, porque a Ucrânia manteve boa parte de sua produção o que ajuda o mercado internacional, mas há um conflito do escoamento através da Polônia onde os produtores do país tem proteção e é famoso o porto de Gdansk, já que no mar Negro cresce o embate militar na Criméia.
A crise geopololítica é o problema mais grave, se a Ucrânia perder parte de seu território, países bálticos como Estônia e Letônia que fazem fronteira com a Rússia e Bielorrússia, e Lituânia que faz fronteira com a Bielorrússia se sentem ameaçados (mapa), e a pergunta é quem será o próximo alvo.
O noticiário fala da ajuda da OTAN, porém estes pequenos países devido a sua fragilidade têm apoiado militarmente e materialmente a Ucrânia, há inclusive vários relatos de alistamento de militares na guerra da Ucrânia.
Os Estados Unidos anunciaram mísseis de longo alcance (tipo ATACMS) e o inverno é sempre uma estratégia durante a guerra devido as dificuldades de logística e mobilidade das tropas, agora também devido às provisões e energias para aquecimento.
A Ucrânia propôs um plano de paz que foi rechaçado pela Rússia, Zelenski foi até a assembleia que se realizava e teve conversas bilaterais, inclusive com o Brasil, o que certamente irritou a Rússia, mas além e princípios de paz e ajuda mútua não há qualquer indicio de um posicionamento brasileiro no confronto.
O que se pode esperar para o inverno, não havendo paz é perigoso não apenas para os países em conflito, mas para toda Europa pela proximidade e todo mundo pelas questões econômicas, os combustíveis são só um aspecto.
Administrar o bem comum e a paz
Pensei em fazer um silêncio e apenas escrever hoje PAZ, PAZ, PAZ, mas seria calar diante do perigo da guerra.
Administrar o bem comum é fazer a paz prosperar, desconsiderá-lo é permitir um grande espaço para o ódio, a intolerância, a violência e em uma escala maior: a guerra.
O dia 21 de setembro foi instituído pela ONU como dia internacional da Paz, o secretário geral António Guterres citou em vídeo o efeito de conflitos que expulsam um número recorde de pessoas das suas casas, e não deixou de falar também destes fatores pessoas, outros fatores como: incêndios fatais, cheias e altas temperaturas, aliados à pobreza, às desigualdades e às injustiças numa realidade de desconfiança, divisão e preconceito.
Na Itália um grupo com inúmeras iniciativas sociais lançou uma campanha “Itália unida pela paz”, a Comunidade de Santo Egídio se destaca por uma visão desapaixonada e bilateral sobre os problemas das guerras e da paz, tem autoridade para falar de paz.
Já haviam promovido nos dias 10 a 12 de setembro em Berlim na Alemanha, um encontro religioso que intitularam “A ousadia da paz”, e não faltaram reflexões sobre as desigualdades sociais, as intolerâncias e as injustiças presentes em vários âmbitos em todo planeta.
Precisamos administrar aquilo que a Natureza, o Planeta e o próprios desenvolvimentos humanos nos deram para permitir um mundo mais fraterno, mais justo e mais humano.
Para quem crê tudo isto é dádiva divina, mas é preciso administrá-la bem pois seremos cobrados de alguma forma pelas consequências de nossos atos, como diz a parábola bíblica dos empregados aos quais foram confiados os talentos através do dono de uma vinha.
Chegam os trabalhadores contratos, mas como precisava de mais foi a praça e contratou também os que estavam desocupados, e perguntou porque estavam ali sem trabalho, eles responderam: “porque ninguém nos contratou” (Mt 20,7) e então também foram contratados.
Ao final da tarde pagou o mesmo salário 1 moeda de prata a todos, e alguns que estavam ali desde o início não acharam muito justo, mas o patrão lembro que o combinado era uma moeda de prata então todos estavam recebendo o combinado.
Assim o sentido do bem comum é este todos tem direito ao salário digno, mas é preciso a administração correta e a honestidade e zelo de quem paga, o justo é todos receberem o salário digno.
Mas a paz requer também um coração aberto ao justo e digno direito do outro excluído.
O mal simbólico
Uma das características de Paul Ricoeur é a busca por explicações sobre quem é homem e as circunstâncias que os afetam, entre elas há uma abordagem sobre o mal pois ele afeta todas as pessoas, de maneira direta ou não.
Essa busca na filosofia vem desde Platão que definia o Sumo bem como: o destino final de todas as coisas, que para Aristóteles é o melhor bem, ligado ao logos, assim a ciência, enquanto na filosofia cristã será Deus e o paraíso.
Também é importante o pensamento neoplatônico de Agostinho de Hipona, para o qual o mal é a ausência do bem, e assim não é seu oposto, mas sua ineficacia.
A filosofia medieval associa o Bem ao paraíso e o mal àquilo que conduz o homem a sua destruição, não apenas na vida eterna, mas já nesta vida, veja-se por exemplo Boécio em suas “Consolações filosóficas” e Tomás de Aquino para o qual ha uma “imperfeição” do Ser, de virtudes na natureza do ser, que o priva do bem.
Na filosofia contemporânea a visão idealista e iluminista relativiza-o e quase inevitavelmente cairá em visões maniqueístas do mal e do bem, ou seja, arbitrárias, dependente muito mais de convenções e conivências sociais.
Paul Ricoeur e Emmanuel Levinas destacam-se no tratamento do bem, eles retomavam a questão da relação do bem e o ser de modo parecido e diferente.
Para Levinas o bem antecede o ser, mas não é na consciência nem no discurso, assim transcende o ser, assim define-o como o outramente do ser, aquilo que o liga ao infinito e seu sentido ontológico, é o da ética do Outro.
Paul Ricoeur ao penetrar, através da hermenêutica, de modo mais profundo na questão do mal, retoma a questão do mito, em especial do mito adâmico (Caim matou Abel) onde o mito “é o lugar procurado de fusão entre história e ficção” (Ricoeur, 1976, p. 295), mas também trata a questão “simbólica” do mal.
Este texto citado acima é fundamental para conhecer o pensamento de Ricoeur porque ele trata-o dentro daquilo que para ele é “a crise da filosofia” de hoje.
A questão simbólica do mal é a morte salvífica que não encerra, mas reinscreve na história da humanidade as pautas míticas e mesmo o iluminismo e o idealismo não estão fora disto, já que criarão estruturas simbólicas de “salvação” do homem.
RICOEUR, P. La philosophie aujourd´hui: entretien sur ce qu´on appelle la crise de la philosophie. Lousanne: Grammont-Salvat,1976.
RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal. Lisboa: Edições 70, 2013.
Uma voz para a paz
Poucos foram escritores e jornalistas que não se envolveram em meados do século XX em apelos ideológicos e nacionalistas que faziam a Europa em meio ao enfraquecimento do Império Austro-húngaro e o crescimento de sentimentos militaristas que levavam a guerra, Karl Kraus, um dramaturgo e escritor austríaco (eram nascido em 1874 numa vila da Boemia (hoje republica Tcheca), então parte do Império Austro-húngaro.
Ao contrário do jornalismo de seu tempo que criticava, daqueles que julgavam videntes como Raphael Schermann que estava em evidencia em Viena e que o criticava, a crítica de Karl Kraus era dirigida ao engajamento político-ideológico dos jornalistas de seu tempo, que criticava desde a linguagem vulgar que usavam até a decadência moral de seu tempo que espelhavam.
Famoso e conhecido nos dias atuais por seu livro “Aforismos” (Arquipélago Editorial, 2010), o qual definia como “O aforismo jamais coincide com a verdade; ou é uma meia verdade ou uma verdade e meia”, teve várias obras publicadas recentemente em português, teve os lançamentos em português das obras “Os últimos dias da humanidade” pela editora portuguesa Relógio d´água e mais recentemente de textos do seu jornal “Die Fackel” (A tocha ou O archote, como preferem os portugueses) que são escritos já na 1ª. guerra mundial, a qual era um dos mais destacados opositores.
Havia uma edição incompleta d´Os últimos dias da Humanidade, editada pela Antígona em 2003, por seu tradutor português Antônio Souza Ribeiro, lembra o jovem chegado em Viena que já escrevera “A literatura em demolida” de 1897 e “Uma coroa para Sião” em 1898, como “De facto, desenha‑se aqui com clareza o que irá ser a marca distintiva da posição de Kraus no campo literário vienense, definida por Edward Timms como um “isolamento combativo” ” (pg. 96).
Enquanto os “media” de sua época se engajam em discursos ideológicos de seu tempo, escreve seu tradutor “… pelo contrário, Kraus está a lançar, de forma pioneira, os fundamentos do que poderia hoje chamar‑se uma crítica dos media, no que constitui uma das dimensões de mais flagrante actualidade da sua obra” (pg. 97).
Embora solitário, Karl Kraus não se fechou: ”A realidade é que, ao longo de toda a vida, ao mesmo tempo que se defronta com ódios irredutíveis no interior do campo literário austríaco e alemão, Kraus cultivou um círculo de relações muito alargado, que se intersecta com círculos intelectuais e artísticos relevantes e com vários nomes de destaque das primeiras décadas do século…” (pg. 97).
Com a eclosão da guerra em agosto de 1914, sairia apenas um número da Revista “Die Fakel” em dezembro de 1914 com o texto de 20 páginas “Nesta grande época”.
Depois de publicar novo texto curto em fevereiro de 1915, a revista “ … volta a publicar‑se, em Outubro de 1915, com um número extenso de 168 páginas, é para se constituir como um espaço de rejeição violenta da política de guerra em todos os seus aspectos” (p. 101).
Além de sua importância para a história do jornalismo, Karl Kraus traz uma grande reflexão para os dias atuais.
RIBEIRO, Antônio Sousa. Os últimos dias da humanidade – manual de leitura, Portugal, Porto: Manual de Leitura Últimos Dias final.pdf (tnsj.pt), 2003.
Civilização, crises e raiva
O processo civilizatório que andou de guerras e guerras, foi também marcado por outras grandes crises, coincidência ou não, simples fato natural ou intervenção divina, a peste negra 1347 a 1353 que matou 50 milhões de pessoas, um número alto para a população da época, antecipa um momento de crise do final da idade média e inicio do renascimento.
Não há hoje uma correte que possa ser chamada de “cínica” pela conotação atual da palavra, porém a Crítica a Razão Cínica de Sloterdijk se aplica bem aos céticos: não creem em nenhuma moral, não creem na civilidade e a todo social levam a ira e o desprezo.
O evento político é a queda de Constantinopla, em 29 de maio de 1453, que dá início ao Império Otomano, que depois se expandirá para toda Europa, pondo fim ao Império Bizantino, claro junto com um movimento cultural que retomava o ensinamento grego clássico.
Também no início da primeira guerra mundial temos a gripe espanhola, claro uma correlação entre epidemias, crises e guerras não é tão simples e fácil de ser compreendida, porém o fato que períodos de crises civilizatórias levaram a guerras e nascimento de novos impérios é um fato, afinal depois da queda de Constantinopla nasce o Império turco-otomano que foi até a primeira guerra mundial.
A existência do ódio, da intolerância é praticamente inerente as guerras, justificativas de certo tipo de “justiça” não faltam, há diversos argumentos para o ódio, para a paz um único: amor a vida e apreço ao processo civilizatório, talvez seja hora de inverter a lógica a guerra: conquista.
Somente entraremos num processo civilizatório digno da humanidade, se abandonarmos os primitivos métodos de correção de erros e injustiças, quase sempre sujeitos a narrativas, um verdadeiro processo de desenvolvimento humano digno do nome não pode ser feito com a prática de guerras e genocídios com tentativas de eufemismos que suavizem a crueldade.
Diz o livro do Eclesiástico (Eclo 17,33): “O rancor e a raiva são coisas detestáveis, até o pecador procura dominá-las”, e o erro deve sempre dar espaço ao perdão e a reconciliação, quantas vezes? Diz a leitura bíblica: “setenta vezes sete” (Mt 18,21).
O processo em desenvolvimento aponta para a eclosão e uma guerra cujas consequências são muito preocupantes pela potência dos armamentos, as tecnologias e o envolvimento mundial.
Sempre há uma atitude possível contrária, sempre é possível um círculo virtuoso, ele virá?
A ira e a tranquilidade da alma
O estóico Sêneca não escreveu apenas da Ira
também da Tranquilidade da alma, pode-se encontrar uma edição atual com seu outro livro “a tranquilidade da alma”, não significa ausência de inquietude, de dor ou de erros.
Escreve no seu livro I, ainda sobre a Ira: “Assim, alguns sábios disseram que a ira é uma breve insânia. Ela é igualmente desenfreada, alheia ao decoro, esquecida de laços afetivos, persistente e aferrada ao que começou, fechada à razão e aos conselhos, incitada por motivos vãos, inábil em discernir o justo e o verdadeiro, muito similar a algo que desaba e se espedaça por cima daquilo que esmagou.” (Sêneca, 2014, p 91).
Embora possamos esconder sentimentos a Ira nos desnuda, mostra-se mesmo na aparência a ferocidade animal, uma vez que seu “controle” argumentado por alguns autores é incerto: “Mas para comprovares a insanidade dos que estão em poder da ira, observa a própria aparência deles, pois assim como são sintomas claros dos loucos o aspecto audaz e ameaçador, o semblante sinistro, a face enviesada, o passo apressado, as mãos inquietas, a cor mudada, os suspiros sucessivos…” (Seneca, 2014, p. 91).
Não ignora que outras paixões também possam nos desnudar: “Não ignoro que também as demais paixões são dificilmente ocultadas; que a luxúria, o medo e a audácia dão sinais de si e podem ser pressentidos.” (p. 92), mas também estas se afloram em meio a ira generalizada.
Não ignora a visão de Aristóteles, como supõe alguns autores apressados: “Para sermos nocivos, todos somos poderosos. A definição de Aristóteles não se afasta muito da nossa. Pois ele afirma que a ira é o desejo de devolver uma dor. Encontrar a diferença entre essa definição e a nossa exigiria longa explanação” (p. 94), portanto também sabe que há diferenças.
Sem sair por um altruísmo exagerado, sabe que somos irascíveis, passíveis de alguma ira, porém explica-a assim: “Explicou-se suficientemente o que é a ira. Em que ela difere da irascibilidade fica evidente: como o ébrio difere de quem está embriagado, e o medroso, de quem está com medo” (p. 95), assim há o iracundo, que pode por vezes não estar irado.
Examina se a ira é nossa natureza, e assim de certa forma necessária, por exemplo para a correção, diferencia-a: “Mas este sem a ira, com base na razão, pois ele não é nocivo, mas medica sob a aparência de ser nocivo” (p. 97), é assim médico que cura, não como vingar-se.
Mas será que algumas vezes ela foi útil? Lembra que “O início de certas coisas está em nosso poder, seus estágios ulteriores nos arrebatam com sua força e não permitem regresso” (p. 98) e este também é causa de injustiças que desperta novas iras e novas fúrias, então não cura.
O sol de Brian Wildsmith é poderoso, mas benevolente (o desenho acima).
Sêneca. Sobre a ira. Sobre a tranquilidade da alma diálogo, transl. José Eduardo S. Lohner, 1a ed. São Paulo, Brazil: Penguin Classics, Companhia das Letras, 2014 (pdf).
Desoneração da violência e ira
Não foram as religiões abramicas (islamismo, judaísmo e cristianismo) que desoneram a violência, assim pensou Peter Sloterdijk em Ira e Tempo (Sloterdijk, 2012), na verdade foi a ideia do Iluminismo que fez da violência e domínio, desde o princípio da expansão do mercantilismo e que depois tornou-se colonial-imperialismo, que era anticlerical e pouco religioso, e depois foi sacralizado no “absoluto” de Hegel, cuja imagem do poder e do Estado se justapõe ao poder e dominação e nada tem ligado a Deus.
Assim esse poder é a desoneração da violência e sua captura e tutela pelo estado, assim pode-se desenvolver o plano colonial e imperialista, fundo da crise civilizatória de hoje, é um estado prepotente militar e autocrático, de liberal só o nome, não pode dar em outra coisa: a ira.
A constatação de Sloterdijk sobre a leveza e alívio, é particularmente clara supondo que o progresso iria numa jornada progressiva, nós pensaríamos numa resposta mais trivial que ele estaria levando as pessoas em condições melhores que as anteriores, e isto não é verdade.
O autor também fala da dor, lembra que até 1940 a ideia da dor era normal nos tratamentos centros cirúrgicos, não cita mas lembro que cicatrizes nos rostos masculinos indicavam virilidade e algumas era feitas de propósito, antecessores das atuais tatuagens, o autor lembra que os analgésicos aparecem na década de 40 e depois aos poucos os antidepressivos e estimulantes e finalmente as cirurgias plásticas que corrigiam o que deve ser corrigido em nós.
Diz o autor que o pensamento a direita é a disciplina e a esquerda é a salvação dos pobres, a disciplina cai em sonhos e leva ao mundo da lua, enquanto a pobreza na sua condição de caído, de perseguido por um sistema injusto se vê sempre vitimizado o que nem sempre é real, assim ambas narrativas escapam de um conceito de justiça, de paz e de equilíbrio e nos vemos em narrativas que justificam a ira e o desprezo pelo Outro, vão em direção a ira.
Se o ser deve ser leve é ser alguém que não é sério, assim a leveza do ser é insustentável, ele deve ser em ambas narrativas “pesado”, transformando-se em balões de gás que estão em voos a esmo, o próprio voo não é razoável, embora o desejo final seja tudo pode, mas nada é.
Diz o cancioneiro popular brasileiro diria: “não há pecado do lado debaixo do equador”, mas já era o que havia na Europa pós-renascentista, na “divina comédia” de Dante que se transforma na comédia humana de Balzac, foi ali que se fez a circum-navegação (na foto a armada de Jacob Hashimoto), sim a terra é redonda, então os povos deviam ser dominados e colonizados, novamente a esferologia de Sloterdijk faz sentido.
O acontecimento fundamental de nosso tempo é sair deste fardo pesado do dogmatismo, do stress perfeccionista da sociedade do cansaço, sair das batalhas físicas, discursivas, políticas, projetistas e espaciais, a tecnologia para o homem e não do homem, robôs são máquinas.
É a agonia do pesado que tinha e que não tem mais uma narrativa coerente. a esferologia, parte do princípio de que uma espécie de “hermenêutica da existência” deve formar arte de figuras, sentidos e vocabulários de uma existência leve, digamos, descarregada do ódio pelo Outro que não é nosso espelho, claro o caminho reverso está aí, ele leva a ira e a violência.
SLOTERDIJK, P. Ira e tempo: ensaio político-psicológico. Estação Liberdade, 2012.