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Prudência e felicidade
Quebrar regras ou sair da caixinha, há até livros incentivando jogar tudo para o alto, é diferente do que pensavam os gregos, claro uma vida que vai mal precisa ser analisada.
Usei a palavra felicidade, porque a palavra usada pelos gregos é “Boa vida”, que na conotação atual significa comer, beber, gastar e dormir, mas não era a concepção de Aristóteles e outros filósofos da antiguidade.
Na Ética a Nicômaco, o filósofo demonstrar que para se alcançar a “boa vida” devemos levar em conta nosso instinto, sensibilidade e inteligência e, através da conjunção destes três elementos cultivarmos nossa melhor parte, porque, por exemplo, instinto pode ser um traço de personalidade que não leva ao equilíbrio, aí entra a ideia da prudência.
No livro X da Ética a Nicômaco, o filósofo de Estagira, acredita que somos possuidores de uma centelha divina (os deuses gregos não são os cristãos), que é a inteligência, de onde se desprendem duas energias: a sabedoria (sophia), que rege a ciência, e a prudência (phónesis) que rege a ética, entretanto os gregos acreditava numa ciência absoluta, capaz de conhecer a estrutura mais profunda do Ser.
Tal núcleo é eterno, imutável, absoluto, e a ética que é consequência disto é ciência prática.
Nela a prudência rege a temperança que é aquilo que irá reger nossos instintos, é ela que determina o bom exercício da temperança, o sábio nas decisões éticas é aquele capaz de encontrar o meio termo (ne quid nimis: nada em excesso), isto é uma das práticas.
Nela está a virtude (arethé) e na alma há três tipos de funções: as irracionais (nutrição, crescimento, etc.), as motivacionais (geradoras das ações) e as racionais (ligadas à nossa capacidade cognitiva que nos torna capazes de alcançar a verdade).
Só para dar um exemplo prático, quem controla as finanças pessoais poderia incluir um campo de descrição em entradas e saídas, uma explicação do Motivo do gasto ou obtenção do recurso.
Para Aristóteles a virtude é algo que se dá na alma, ou seja, nossa interioridade, então divide as virtudes entre éticas (coragem, generosidade, amizade, justiça, etc.) e dianoéticas (sabedoria, temperança, inteligência, etc.).
Assim podemos mudar um ditado e agora afirmar que “o hábito faz o monge”, agora não como veste exterior, mas com veste interior, as virtudes criam em nós “círculos virtuosos”.
Prudência virtude bíblica, moral ou dispensável
Em momento de guerra, violência e ira, uma virtude a ser lembrada é a prudência.
Como significa filosófico a prudência é vista por Aristóteles, como virtudes intelectuais, divididas em 5 classes: as ciências, a sabedoria, a inteligência, as técnicas e a prudência, assim ela pode ser vista como uma moral ascética, mas tem significado histórico e filosófico, sendo assim melhor dividida a moral.
Como virtude bíblica a prudência significa a capacidade de julgar entre ações maliciosas e virtuosas, não só num sentido geral, mas com referência a ações apropriadas num dado tempo e lugar, ajuda discernir sobre o que é bom, justo e meios para atingi-los.
Se dispensamos esta educação e força do hábito, as virtudes são dispensáveis.
Como um hábito, do ponto de vista filosófico e moral, é considerado como um saber que se adquire pelo hábito, os sabedores em geral são para Aristóteles indica algo que não se possui simplesmente por costume ou condicionamento, e sim como uma disposição pela qual algo ou alguém está bem ou mal disposto, seja em relação a si mesmo, ou em relação a outra coisa (ARISTÓTELES, Met. I, v. 20, 1022, b, 10-12).
Adquirimos tais por meio do estudo, da demonstração, do treino e da argumentação, de maneira que cheguemos a obter uma noção completa de determinado campo, a dominá-lo com maestria e passando a ter qualidades estáveis do sujeito que dificilmente se perdem (TOMÁS DE AQUINO, S.T., Iª. IIae q. 51 a 2 co.).
Então não simplesmente questão de gosto ou vontade, mas de como entendemos intelectualmente e como processamos os hábitos, assim a prudência é uma virtude adquirida pela compreensão, prática (hábito) e mediante condições estáveis do sujeito.
Não se obtém o retorno a paz e as “boas disposições da alma” sem a prática destes hábitos, se a valorização socialmente deles e sem que o sujeito e a sociedade lembrem deles como virtudes que devem ser inseridas socialmente para o retorno a condições estáveis de sociedade.
ARISTÓTELES. Metafísica: ensaio introdutório. Texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale, Tradução Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002. 696 p.
TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. São Paulo: Loyola, 2001-2006. 9 v.
Desgaste na Ucrânia e crise humanitária em Gaza
Enquanto a guerra entra numa etapa de desgaste no leste europeu, os governos europeus já querem algum tipo de acordo de paz e a etapa é de desgaste para forças russas e ucranianas, na faixa de Gaza o avanço terrestre das tropas de Israel agravam a crise humanitária.
A ONU, os países árabes e diversos países ocidentais tentam costurar algum tipo de acordo que possa levar um cessar fogo e permitir uma ajuda humanitária mais efetiva, a situação é de crise humanitária, faltam alimentos, remédios e água, a situação dos hospitais também é precária, e os palestino denunciam bombardeio em áreas próximas.
O número de mortos na faixa de Gaza está próximo aos 10 mil, desde 7 de outubro, e portanto amanhã completará um mês, Israel diz que agora entrou numa segunda fase e não há o menor desejo de alguma proposta de cessar fogo, mas a pressão ocidental cresce, enquanto o Hamas busca aliados árabes, além dos tradicionais grupos da Cisjordânia e a base do Hezbollah no sul do Líbano.
Por todo o mundo há manifestações de palestinos, uma feita em Portugal marcou a presença do presidente de Portugal, Marcelo foi interpelado por um grupo pró-palestina ou dar sua posição com a frase: “Contra o terrorismo, mas a favor de um Estado palestiniano”, porque os grupos pró-palestina não veem o Hamas como “terrorista”.
O papa ligou para o líder da Mahmoud Abbas que falou sobre a urgência de se criar corredores humanitárias, e em contrapartida os rabinos marcaram uma audiência com o papa, que apenas entrou seu discurso pois não estava passando bem.
Segundo o diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, Matteo Bruni: “O Papa expressou pesar pelo que está acontecendo e recordou a posição da Santa Sé, esperando que possamos chegar a uma solução de dois Estados e a um estatuto especial para Jerusalém”. (ali as 3 religiões abramicas tem como sagrada: judeus, islâmicos e cristãos)
O fato que a Europa tenha entrado num caminho de paz, até mesmo pelo desgaste e imenso esforço que faz para apoiar a Ucrânia, também na faixa de Gaza a pressão internacional é forte e o único problema é a irredutibilidade de Israel.
Nesta manhã (06/11) foi publicado que o papa ontem falou com o presidente do Irã, Ibrahim Raisi sobre a crise na faixa de Gaza, ontem 5/11 após a oração do Angelus (meio dia local).
Unitas multiplex, redes e as bem-aventuranças
Entre os principais conceitos desenvolvidos por Edgar Morin estão o dasein cósmico (parecido ao Dasein heideggeriano mas expandido ao cósmico e semelhante ao Cristo Cósmico de Teilhard Chardin), a hominização e a identidade humana, que também se liga a antropolítica, porém um conceito fundamental e novo é o Unitas Multiplex.
Segundo Jean Ladriére, Unitas Multiplex é “um sistema é um objeto complexo, formado de distintos componentes unidos entre si por um certo número de relações”, e isto tanto combina com o conceito de redes sociais (não mídias) como de complexidade de Morin, e aqui vamos estabelecer um conjunto de relações com as virtudes bíblicas das bem-aventuranças.
Num sistema complexo um certo número de relações pode estar rompido, aquilo que nas redes sociais são chamados “buracos estruturais” (Burt, 1992), os laços fracos (Granovetter, 1973) e os mundos pequenos de Watts (Watts, 1993).
Um sistema representado como uma rede social é uma estrutura que liga os nós (forma um grafo matemático), geralmente cada destes nós são pessoas, e ligações entre nós, representando relações entre essas pessoas (GRANOVETTER, 1973).
Para Granovetter pontes são os links que possibilitam laços fracos, aqueles que estão na periferia da rede ou que são alcançados apenas por alguns nós.
Mas nem a teoria das redes e a do unitas multiplex estabelecem as virtudes que possibilitam maior contato entre este nós, e como todos estes nós podem ser alcançados, falar de empatia e laços de solidariedade é pouca coisa, as bem aventuranças bíblicas podem ajudar.
Jesus sobe a um monte e fala para uma multidão de pessoas, não só os discípulos mas todos que os que querem ouvi-lo (Mt 5,3-12):
“Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados. [os laços fracos]
Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. [os laços fortes]
Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. [a empatia]
Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus!
Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim.
Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus” [manter a rede unida ao corpo místico ou ao “dasein cósmico”].
Parece heroico, ou utópico, mas se queremos uma Terra-Pátria de paz é uma boa receita.
BURT, R. S. The social structure of competition. In: NOHRIA, N.; ECCLES, R. G. Networks and organizations: structure, form and action. Boston: Harvard Business School, 1992.
GRANOVETTER, M. S. The strength of weak ties. American Journal of Sociology, Chicago, v. 78, n. 6, p. 1360-1380, May 1973.
WATTS, D. J.; Strogatz, S. H. “Collective dynamics of ‘small-world’ networks” (PDF), NATURE, Vol 393, 1998.
O homo economicus e a redução do Ser
Ainda sobre a Carteira de Identidade Humana, cap. 2 do livro Terra-Pátria de Edgar Morin, após um longo discurso sobre a questão pré-histórica, já há novos avanços e descobertas neste sentido, como por exemplo a Caverna de Chauvet (descoberta por espeleólogos amadores, em 1994, entre eles Jean- Marie Chauvet), mostram que aquilo que é chamado de subjetividade humana é algo presente e intrínseco no homem que nos faz repensar sua origem “genética”.
Esta caverna de 32 mil anos atrás (foto), do período Paleolítico, mostra através das pinturas e ambientes de uma caverna que o homem, mesmo que primitivo, guardava sentimentos já muito superiores ao que pensamos ser datados de nossa era.
Morin mostra a fragmentação desta visão de ser do homem: “Os caracteres biológicos do homem foram discutidos nos departamentos de biologia e nos cursos de medicina; os caracteres psicológicos, culturais e sociais foram divididos e instalados nos diversos departamentos de ciências humanas, de modo que a sociologia foi incapaz de ver o indivíduo, a psicologia incapaz de ver a sociedade, a história acomodou-se à parte e a economia extraiu do Homo sapiens demens o resíduo exangue do Homo economicus.” (MORIN, 2003, p. 61)
A filosofia, somente pode “se comunicar com o humano em experiências e tensões existenciais como as de Pascal, Kierkegaard, Heidegger, sem no entanto jamais poder ligar a experiência da subjetividade a um saber antropológico” (idem), e somente nas décadas de 50-60 aparecem os pensamentos sobre “as primeiras abordagens da dialética universal entre ordem, desordem e organização…” (ibidem) e que vai nos conduzir a uma base de uma antropologia fundamental.
Morin lança 5 pontos essenciais para sair da agonia planetária: “• estamos perdidos no cosmos; • a vida é solitária no sistema solar e provavelmente na galáxia; • a Terra, a vida, o homem, a consciência são os frutos de uma aventura singular, com peripécias e saltos espantosos; • o homem faz parte da comunidade da vida, embora a consciên[1]cia humana seja solitária; • a comunidade de destino da humanidade, que é própria da era planetária, deve se inscrever na comunidade do destino terrestre.” (MORIN, 2003, p. 63).
O pensamento de Morin não é um tratado sobre a humanidade, mas um alerta dos perigos que esta falsa aventura imperativa econômica, de poder e de desastre ambiental nos conduziu.
MORIN, E. e Kern, A.B. Terra-Pátria. Trad. por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2003.
Uma história da história
Este é o nome do primeiro capítulo do livro Terra-Pátria (Ed. Sulina, 1995) de Edgar Morin, a tentativa do autor era na época entender os diversos processos civilizatórios para encaminhar o mundo para um momento em que nos veríamos todos como cidadãos da mesma casa.
Escreve ali: “Mas, por diversas que tenham sido, constituíram um tipo fundamental e primário de sociedade de Homo sapiens. Durante várias dezenas de milénios, essa diáspora de sociedades arcaicas, ignorando-se umas às outras, constituiu a humanidade” (pag 15) e isto parece muito atual.
A história “impiedosa para com as civilizações históricas vencidas, foi atroz sem remissão face a tudo que é pré-histórico. Os fundadores da cultura e da sociedade do Homo sapiens são hoje vítimas definitivas de um genocídio perpetrado pela própria humanidade, que progrediu assim no parricídio” (pag. 15), pontua 10 mil anos na Mesopotâmia (os semitas), quatro mil anos no Egito, indo ao oriente “do Indo e no vale do Haung Po na China” (pg. 16) a 2.500 anos.
Esta história inicial é “o surgimento, o crescimento, a multiplicação e a luta até a morte dos Estados entre si; é a conquista, a invasão, a escravização, e também a resistência, a revolta, a insurreição; são batalhas, ruínas, golpes de Estado e conspirações […]” (pg. 16) e que parece se repetir nos dias atuais.
Depois esta história “começou a se tornar etnográfica, polidimensional. Hoje, o acontecimento e a eventualidade, que irromperam em toda parte nas ciências físicas e biológicas, aparecem nas ciências históricas”, nela aparece o que Edgar Morin chama de “homo sapiens-demens”.
Este “homo sapiens-demens. Deveria considerar as diversas formas de organização social surgidas no tempo histórico, desde o Egito faraónico, a Atenas de Péricles, até as democracias e os totalitarismos contemporâneos, como emergências de virtualidades antropo-sociais” (pg. 17), volto a esta reflexão porque o que deveria ser repensado, repete-se como ciclo cruel.
Coloca o autor: “Hoje, o destino da humanidade nos coloca com insistência extrema a questão chave: podemos sair dessa História? Essa aventura é nosso único devir?” (pg. 17).
O espírito sábio e profético de Morin anuncia: “Assim, uma fermentação múltipla, em diversos pontos do globo, prepara, anuncia, produz os instrumentos e as ideias do que será à era planetária” (pg. 18), mas com contornos graves e ameaças civilizatórios.
Fica sua pergunta essencial: “podemos sair dessa História?”, é preciso sabedoria e uma compreensão histórica que parece fugir das grandes lideranças mundiais.
MORIN, E. e Kern, A.B. Terra-Pátria. Trad. por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003.
Escalada de conflitos, um apelo à paz
É incrível que a polarização se aproprie até mesmo dos discursos da paz, como a questão do Outro e o significado do que significa “terror”, já o discurso antissemita está esvaziado e a ideia de forças “nazistas” também, a polarização atingiu escala mundial e pode crescer.
Também a guerra Ucrânia e Rússia se agrava, com novos equipamentos bélicos americanos de longo alcance e a chegada do inverno torna dramático e poderá ter desde já uma escalada.
Elogios e defesa do Hamas colocaram a própria ONU em posição de polaridade, há também um discurso que tenta descaracterizar matança de civis e inocentes como aquele que quem faz é o Outro, então não há espaço para o diálogo e a paz, tudo pode ter uma narrativa inversa.
O socorro humanitário enfrenta dificuldade tanto daqueles que querem atendimento a população como dos próprios governos que dificultam a passagem dos civis e da abertura de fronteiras, a guerra por terra em Gaza só agravará as condições humanitárias.
Também o posicionamento da Turquia a favor do Hamas, pode conturbar a região e escalar a guerra, este posicionamento é muito complicado porque a Turquia faz parte da OTAN e tem sido importante no posicionamento sobre a passagem de grãos lembremos que no estreito de Bósforo, a passagem por Istambul a cidade com território na Europa e no Oriente Médio é estratégica.
Na guerra são os civis que perdem, e os limites de civilidade são quase sempre extrapolados por todos lados, não há acordos que possam estabelecer limites claros e que sejam respeitados.
Uma verdadeira filosofia da paz deve condenar os lados em conflito, a tentativa equivocada de cada um dos lados de estabelecer uma narrativa aceitável, a polarização não permite.
Quais forças poderão pedir a paz? o que acontecerá em uma escalada de guerra crescente, com envolvimento do Irã ? e se a China e países do oriente se envolverem, lá já há questões de tensão entre os países.
A esperança é que venha um clamor sufocado dos que realmente desejam a paz, as forças que são de verdadeiro humanismo poderiam recuperar a esperança de um mundo menos perigoso.
O que é o Amor afinal
Embora a obra de Hannah Arendt não seja definitiva quanto ao amor, o próprio orientador Karl Jaspers manifestou isto, desenvolveu e se apropriou de algumas categorias fundamentais em sua tese de doutorado “O amor em Santo Agostinho”.
Segundo o autor George McKenna, em resenha de sua dissertação, Arendt teria tentado incluir em sua “A condição humana” uma revisão, porém não fica muito claro no livro of Arendt, que apesar disto é ótimo.
Se podemos também manifestar expressão deste amor na literatura grega antiga, como o amor ágape, aquele que se diferencia do eros e do philia nesta literatura, do ponto de vista cristão o melhor desenvolvimento feito é de fato o de Santo Agostinho.
Primeiro porque ele separou este conceito do maniqueísmo bem x mal, dualismo ainda presente em quase toda filosofia ocidental devido ao idealismo e ao puritanismo, depois porque foi de fato arrebatado ao descobrir o amor divino, escreveu: “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava fora!” (Confissões de Santo Agostinho).
Depois o homem deve amar o seu próximo como criação de Deus: […] o homem ama o mundo como criação de Deus; no mundo a criatura ama o mundo tal como Deus ama. Esta é a realização de uma autonegação em que todo mundo, incluindo você mesmo, simultaneamente recupera sua importância dada por Deus. Esta realização é o amor ao próximo (ARENDT, 1996, p. 93).
O homem pode amar ao próximo como criação ao realizar o retorno à sua origem: “É apenas onde eu pude ter certeza do meu próprio ser que eu posso amar meu vizinho em seu ser verdadeiro, que é em sua criação (createdness).” (ARENDT, 1996, p. 95)
Neste tipo de amor, o homem ama a essência divina que existe em si, no outro, no mundo, o homem “ama Deus neles” (ARENDT, 1996, 95).
Também a leitura bíblica sintetiza a lei e os profetas cristãos assim (Mt 22, 38-40): “Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’. Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos”.
O amor contém todas as virtudes: não se envaidece, sabe ver onde se encontram os verdadeiros sinais de felicidade, equilíbrio e esperança.
ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Chicago: University of Chicago Press, 1996.
O amor na literatura ocidental
No post anterior comentamos um exemplo pouco comum na literatura que é o amor humano visto de um ponto de vista da narrativa cristã, há outros é claro, porém este pela repercussão da obra de Francine Rivers e sua recente transformação em filme (2022) e a crítica aplaudiu.
Na história podemos relembrar algumas obras que marcaram a literatura: O Banquete de Platão, A arte de amar de Ovídio e Sobre el Amor de Plutarco, destacaria no período medieval O Romance de Tristão e Isolda e Correspondências de Abelardo e Heloísa.
O estilo filosófico do Banquete onde há uma predominância de elementos mitológicos que explicam ou denotam o amor, talvez daí a ideia de amor platônico, mas que nada tem de sublime ou não carnal, o que dizem comentaristas é que há relações homoeróticas que fazem parte do diálogo entre parceiros nas relações.
Se há algo de elevado é no diálogo de Sócrates que define o chamado amor filosófico, este fora da esfera sentimental e inserido num idealismo (sempre lembro aqui que eidos para os gregos que lembrar o Ser em sua essência, e não algo que vive só na mente), é um amor que está relacionado com a beleza e o bem.
Já Ovídio (45 a.C. – 18 d.C.) não está interessado em alcançar esta ascese a um amor divinizado, procura encontrar as ferramentas necessárias para realizar um amor mais sensual num mundo carnal.
Ovídio não encerra o amor restrito a esfera conjugal, já Plutarco (45 – 120 d.C.) o vê dentro de uma instituição social e política, é um “caminho” dentro do casamento em direção à felicidade, como uma ascese do tipo que os gregos a concebiam, assim não é uma ascese espiritual.
O romance de Tristão e Isolda e as Correspondências de Abelardo e Heloísa devem ser entendidos numa realidade de domínio da filosofia cristã na Europa medieval, onde o Amor a Deus é indiscutível, mas já o amor como união de dois corpos é ainda suscetível de debates.
Este tipo de romance inserido na tradição trovadoresca, é imbuído de um elemento “cortês”, encontramos na obra de Denis de Rougemont, uma interessante descrição deste amor:
O que amam é o amor, é o próprio fato de amar. E agem como se tivessem compreendido que o que se opõe ao amor o garante e o consagra em seus corações, para exaltá-lo ao infinito no instante do obstáculo absoluto que é a morte. Tristão gosta de sentir amor, muito mais do que ama Isolda, a loura. E Isolda nada faz para retê-lo perto de si: basta-lhe um sonho apaixonado.
Destacaria entre os romances modernos entre os mais característicos: Eugénie Glandet de Honoré de Balzac, Madame Bovary de Gustave Flaubert e Anna Karenina de Leon Tolstoi, enquanto Eugénie Grandet mostra a realidade do interesse material em torno do romance, Madame Bovary vai mostrar a falta de lucidez, o excesso e egoísmo humano, Anna Karenina mostra as cores trágicas da infidelidade dela com o marido Vronsky, porém há outros dois casamentos: um casamento feliz (Levin e Kitty) e outro que apenas se suportam (Stiva e Dolly).
ROUGEMONT, Denis de. A História do Amor no Ocidente. Trad.: Paulo Brendi e Ethel Brandi Cachapuz. São Paulo: Ediouro, 2003. 2ª Edição reformada.
O conceito de Amor em Agostinho de Hipona
A tese de Hanna Arendt foi um marco em seu desenvolvimento filosófico, por um aspecto fundacional, é a primeira de suas obras e marca um envolvimento com Heidegger, seu primeiro orientador com o qual chegou a se envolver afetivamente e Karl Jaspers, que influenciaram na escolha do tema.
A obra pode ser dividida em três eixos temáticos: o amor ao próximo, ou a vida em sociedade, o amor na relação entre o homem e Deus criador e o amor como desejo, chamado appetitus.
A autora também afirma que o bispo nunca chegou a excluir completamente as ideias filosóficas da antiguidade, notadamente Cícero, Platão e Plotino em seu pensamento, e não importa o quão fiel e cristão ele tenha se tornado, “ele nunca perdeu completamente o impulso de questionamento filosófico.” (ARENDT, 1996, p. 3).
A primeira parte da dissertação da autora designada como “Amor como desejo: o futuro antecipado”, dentro de uma perspectiva filosófica e em continuidade do pensamento helênico, não podia ter melhor título, uma vez que não é o amor no presente, mas o “futuro antecipado”, algo que se espera ter como, como meio de alcançar a felicidade.
Este amor chamado cupiditas é moldado por uma “ânsia desejosa, quer dizer, appetitus”, porém também a caritas possui este aspecto de desejo “futuro”, mas é um amor livre.
Pergunta Agostinho em Confissões: “O que eu amo, quando amo o meu Deus?” (Confissões X, 7, 11 apud Arendt p. 25), talvez a questão central de seu pensamento, e responde: o amor por Deus pode se relacionar com o amor próprio, pois o homem pode amar a si mesmo da maneira correta amando sua própria essência, enfim encontra em seu próprio Ser o amor eterno.
O amor ao próximo, ou o amor social, desenvolveu a autora: o homem deve amar o seu próximo como criação de Deus: […] o homem ama o mundo como criação de Deus: “no mundo a criatura ama o mundo tal como Deus ama. Esta é a realização de uma autonegação em que todo mundo, incluindo você mesmo, simultaneamente recupera sua importância dada por Deus. Esta realização é o amor ao próximo”. (ARENDT, 1996, p. 93)
Agostinho difere a polis da cidade de Deus, nome de outra obra sua, e esclarece Arendt: “Essa defesa é a fundação da nova cidade, a cidade de Deus. […] Essa nova vida social, que é baseada em Cristo, é definida pelo amor mútuo (diligire invicem)” (ARENDT, 1996, p. 108).
Assim a obra de Agostinho é filosófica, teológica e política, embora se ignore este aspecto.
ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine (O amor em Santo Agostinho). Chicago: University of Chicago Press, 1996.