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A ontologia e a tonalidade afetiva
Como um bom oriental, embora radicado na Alemanha, Byung-Chul Han parte sua análise não da perspectiva objetivista, materialista e substancialista dos autores clássicos da filosofia ocidental, mas na perspectiva daquilo que vai chamar de “tonalidade afetiva” em Heidegger.
Seu livro, diferente de outros que considero ensaios, analisa “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger” (Ed. Vozes, 2023), com esta análise nova, humana e diria até mesmo espiritual do cerne da filosofia ocidental.
Parte de um conceito caro a civilização judaico-cristã, que é o da circuncisão, porém da circuncisão do coração e não do órgão falido (a pele presa no início do pênis), é preciso lembrar que embora órgão masculino ele é emblema do poder, da autoridade e do desejo, foi culturalmente numa cultura bélica.
A parte de sua visão religiosa, ele tem um sentido espiritual para toda a sociedade, contrário ao que Han vai desenvolver que é a circuncisão do coração, aquela que modula e rege o afeto.
Começa por aquilo que é raiz da cultura eurocêntrica, começando pela hipocondria de Kant que confessa em seu texto “Conflito das faculdades”: “por causa de meio peito chato e estreito, que deixa pouco espaço para o movimento do coração e dos pulmões, eu tenho uma predisposição natural para a hipocondria, que em anos anterior beira o tédio da vida” (Han, 2023, pg. 8), e daí desenvolve o “anseio expande o coração, o faz definir e esgota as forças” (pg. 9).
Este anseio dirá não é também indolor para Heidegger, mas de acordo com este autor (foi tese de doutorado de Han), o anseio é a “dor da proximidade da distância”, o feitiço do “sempre-igual”, porém num movimento de sair do em-si existe uma “Dor da costura” com o Outro.
Assim, dirá Han, a “costureira” (Näherin] de Heidegger, “trabalha na proximidade”, é também uma circuncidadora do coração (pg. 10), desenvolve-se convertendo-o “em tímpano hétero- auditivo” (pg. 10), “o coração do ser-aí” palpita no horizonte transcendental, assim segundo Han no Heidegger tardio, “a constrição penetra mais profundamente” e o ser-aí separa-se do ser do aí: Da-Sein (Han, pg. 11).
Assim, “esta circuncisão liberta o coração da interioridade subjetiva” (Han, Idem), e há uma conclusão preliminar surpreendente em Heidegger: “O coação de Heidegger, por outro lado [confronta com Derridá], escuta uma só voz, segue a tonalidade e gravidade do “uno, o único que unifica”, para ele é um “ouvido do seu coração” porém há algo forte de espiritual nisto.
Espiritualmente há uma voz interior que fala aos nossos corações se estão circuncidados.
Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
Poder arbitrário e socialização
Em seu livro “No enxame: uma perspectiva do digital” Byung Chul-Han esclarece que só uma relação é simétrica (os dois lados têm o mesmo poder ou a mesma potência) o respeito, se o respeito falta há sempre um exercício arbitrário do poder, mas olhemos outras definições.
Uma bastante utilizada é a de Norberto Bobbio: “ … toda probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistência, seja qual for o fundamento dessa probabilidade (Weber, 1994, p.33), nela há sempre a possibilidade de “manipulação”, uso da recompensa, ameaça da punição e outras formas de assimetria que favorece a força.
Generalizando a diversas formas de poder, e contrárias a de Foucault (veja o post anterior), Lebrun diz que poder e dominação caminham justo, uma pessoa tem podere quando o outro é despossuído deste, coloca no mesmo barco: m Marx, Nietzsche, Weber, Raymond Aron, Wright Mills e outros.
Esta concepção vem da sociologia norte-americana conhecida por “Teoria do Soma Zero”, teoria que vem desde Hobbes, que definia o poder do “soberano” ou do Estado, como sendo “um contra todos” e a “favor de todos ao mesmo tempo”, mas de cima para baixo.
Assim este poder pura e simplesmente aplicado como obrigação ou proibição aos dominados passando por eles e através deles, da mesma forma, os dominados também se utilizam dele e se apoiam nele, mas os dominados possuem subjetividade (na relação ontológica é o dasein), e produzem novos conhecimentos sobre as relações de poder e se empoderam também, neste sentido é importante relacionar poder com potência, ou capacidade de ação.
O conceito de ato e potência em Tomás de Aquino é entretanto mais completo, porque está relacionado também com a verdade, não a temporal, mas a ontológica, presente no Ser:
“[…]algumas coisas podem ser, embora elas não sejam, enquanto outras na verdade são. O que pode ser (illud quod potest esse) se denomina ser em potência; o que já é (illud quod iam est) se denomina ser em ato. Porém, duplo é o ser: o ser essencial ou substancial da coisa, como ser homem, é ser simplesmente; o outro é ser acidental, como o homem ser branco; e isso é ser outro”. (AQUINO, T, 1976, p. 39.)
Assim o poder é visto de outra forma, que é também matéria e ser completo, para o Aquinate todos são componentes básicos da substância, a noção de ser completo é atribuída assim tanto à forma que significa o ato primeiro, a atualidade, que a forma possui por si mesma e não por um mediador, quando este ato primeiro é atribuído à matéria haverá uma atualidade, aquilo que hoje é confundido com virtualidade (a potência ou possibilidade do ser), pois assim todo ser o é em potência, assim todos podem ter poder de forma a realiza sua potência plena.
Isto significa que é preciso potencializar o homem, a sociedade e recuperar os desapoderados, assim sempre é possível a reeducação, a ressocialização e até mesmo dos que são socializados.
O poder se exercido sem arbitrariedade e com a dimensão de todos pode e deve servir ao bem comum, a justiça e a liberdade.
AQUINO, T. De principiis naturae ad fratrem Sylvestrum, [ed. H.F. Dondaine]. Ed. Leon., t.XLIII, Opuscula, vol.IV. Roma [Santa Sabina]: Editori di san Tommaso, 1976,
LEBRUN, G. O que é poder. São Paulo: Brasiliense, 1999.
WEBER, M. Economia e Sociedade. Brasília – DF: Editora da Universidade de Brasília, 1994.
Poder em Foucault e Chul-han
Michel Foucault rompeu com as concepções clássicas do termo poder e define como uma rede de relações onde todos os indivíduos estão envolvidos, e entendemos a rede aqui com o sentido moderno de rede embora fosse vago no seu tempo, os indivíduos são tanto geradores como destinatários do movimento destas relações, entretanto ele as identifica como biopoder, enquanto Chul-Han vai identificar como psicopoder, e de certa forma agrega as mídias a isto.
A ideologia de Estado, nascida de Hegel é a base de toda história de poder contemporâneo, o autoritarismo e as guerras modernas nasceram de uma nova ideia de imperialismo e colonialismo, na qual estados mais fortes controlam o poder não apenas pelas armas, mas antes pelo biopoder e agora pelo psicopoder.
O biopoder de Foucault, o estado é o primeiro nível de poder (ele chama de setor), o mercado o segundo nível, e, o terceiro é a sociedade civil, a ideia de 4º. poder da imprensa vem daí.
Ele estudou o poder não para desenvolver uma teoria sobre ele, mas para identificar aspectos da subjetividade (na ontologia seria a questão do Ser), ou seja, sujeito sobre os outros sujeitos.
Isto é importante para diferencia-lo de Chul-Han, que parte das relações ontológicas entre os seres e identifica a ação de mídias e estruturas mídias que atuam sobre a psicologia do poder, assim sua ideia de poder (O que é poder) é como uma técnica de dominação que estabiliza e reproduz o sistema dominado por meio de uma programação e de um controle psicológicoc.
Foucault vê o biopoder, como no corpo como uma máquina de adestramento, já que a biopolítica, em meados do século XVIII, estava focada em controles reguladores da população, a ideia que era o aumento populacional que proporcionava a miséria e a fome.
Peter Sloterdijk que orientou a tese de doutorado de Chul-Han sobre Heidegger, defende que este processo de “adestramento” falhou e assim, o processo de controle desenvolve-se para o quarto poder, que Chul-Han focaliza excessivamente nas mídias, esquecendo do 4º. poder da imprensa, TVs e cinema que influenciaram enormemente.
Ele desenvolve patologias de autocentramento (narcisismo), instabilidade emocional (borderline) como respostas às demandas de uma sociedade intoxicada de exigências de eficiência, de aparência e de coerção disciplinar, escreveu o autor):
“É inerente à sociedade pré-moderna da soberania a violência da decapitação; seu medium é o sangue. A sociedade disciplinar moderna é, em grande medida, uma sociedade da negatividade, sendo regida e dominada pela coerção disciplinar, isto é, pela ‘ortopedia social’. Sua forma de violência é a deformação. Mas nem a decapitação e nem a deformação estão em condições de descrever a sociedade de desempenho pós-moderna. Ela é dominada por uma violência da positividade, que confunde liberdade e coerção. Sua manifestação patológica é a depressão” (Han 2018, pp. 183-184).
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.
Felicidade, medo e serenidade
Entre os principais convidados de “Fronteiras do Pensamento” está Luc Ferry, ainda pouco conhecido no Brasil, e já com um certo expoente na Europa ele também falou do medo, um dos nossos temas desta semana.
Defende uma espiritualidade laica, para mim e outros cristãos frágil, porém alguns de seus raciocínios e comentários são importantes, por exemplo sobre felicidade: “… não existe, temos momentos de alegria, mas não existe um estado permanente de satisfação …. podemos almejar é a serenidade, algo completamente diferente. Só se atinge a serenidade vencendo o medo” (entrevista ao Fronteiras do Pensamento).
Classifica o medo em três tipos: a timidez (surge em função do ambiente e da sociedade), a fobia (medo do escuro, de insetos, de ficar presos num elevador), ao nosso ver é o único que realmente se encerra dentro daquilo que o autor trabalha principalmente: a psicologia, e o terceiro é o medo da morte (das pessoas que amamos e de nossa própria morte), ao nosso ver este remete necessariamente a finitude da vida e do homem, só é possível transcender com uma espiritualidade não laica.
Cita um importante autor que é Hans Jonas, e seu livro O princípio da responsabilidade, onde há um capítulo chamado de Heurística do medo, descrito como uma paixão positiva e útil.
Através da leitura deste autor faz uma leitura positiva: “A ecologia inverte essa tradição filosófica ao sustentar que o medo é o começo de uma nova sabedoria e que, graças ao medo, os seres humanos vão tomar consciência dos perigos que existem no planeta. O medo não é mais visto como algo infantilizado, mas como o primeiro passo no caminho da sabedoria”.
Se não tivermos medo da guerra, de uma catástrofe atômica, de um planeta desertificado, da fome já presente em pessoas e países pobres, não teremos responsabilidade social, a maioria de nós (que não vivem estes medos) imagina que jamais serão atingidos, porém não é assim.
Reconhece que a religião também trabalho esta questão, mas sua espiritualidade laica afirma que: “só que as grandes filosofias são doutrinas da salvação sem Deus e sem a fé”, então fica a pergunta como vencer a finitude e a morte, e se a ressurreição de Jesus for verdadeira?.
Claro é uma pergunta a partir da fé, mas os homens daquele tempo viram, presenciaram e deram testemunho, então porque não apostar na fé como propunha Pascal, o que perderia com esta “aposta”, claro que é importante ir além, mas poderia ser um primeiro passo.
O que ganho hoje com esta aposta, é uma resposta simples, mais paz e mais convicção da possibilidade da paz, de não precisar destruir para descobrir que optamos pela morte e pelo medo?.
Luc Ferry – A boa vida – YouTube
O medo, a sociedade e a esperança
O medo não é algo destes dias e talvez da sociedade contemporânea, não é, porém, algo transitório e nem mesmo impossível de ser vencido.
Em diversas sociedade e pensamentos foram eles foram elaborados, no pensamento clássico antigo
Engano pensar que o cansaço, a cobrança e o medo sejam os problemas atuais, eles estão presentes a algum tempo em nossa sociedade: a competição e a cobrança de perfeição estão presentes na história da humanidade.
Heidegger (1889-1976) afirmava assim (não é literal aqui): o medo nos convida
a viver na impropriedade, não atribuímos sentido, deixamos que os outros e as circunstâncias o atribuam, nos alienamos de nós mesmo, vivemos sempre correndo, com nossas agendas cheias de distrações que nos ocupam.
É para alguns um modo mais fenomenológico e prático de ver o medo, como Pascal e Kierkegaard teriam um medo mais teológico, porém há um equívoco teológico “temor a Deus” não é necessariamente um medo, e sim um respeito, afinal o primeiro mandamento cristão é Amar a Deus sobre todas as coisas.
Então ver o medo como “coisa”, o sentido fenomenológico de Heidegger e outros não suprime a visão teológica, um pensamento limitado ao homem também limitará sua existência a este mundo sendo um intelecto limitado.
A obra de Kierkegaard “O Conceito de Angústia”, lembrando que fizemos um post sobre isto, tem um demanda de perguntas muitas são feitas em relação ao “medo da morte”, que em certo sentido é uma teológica frágil, já a obra de Pascal tem também um víeis de “arriscar em Deus”, ao pensar na alma.
Diz o filósofo: “A imortalidade da alma é uma coisa que nos preocupa tanto, que tão profundamente nos toca, que é preciso ter perdido todo sentimento para permanecer indiferente diante dela.”, não afirma, portanto, sua imortalidade, mas sim frente a dúvida.
Para Heidegger, ela é mais que um fenômeno psicológico e ôntico; ela tem uma dimensão ontológica, pois nos remete a totalidade da existência como ser-no-mundo, porém a angústia o homem só existe só é o homem se puder ter uma compreensão do Ser, embora não o diga, é uma realidade além da “coisa”, Hannah Arendt sua discípula, dirá além da vitta activa.
A vitta contemplativa (ver também Byung-Chul Han) nos leva a consciência do Ser, é um caminho para a superação do medo e da angústia.
O que a ontologia contemporânea não é
Fundamentada nos trabalhos de psicologia social, onde Franz Brentano trabalhou duas sub-categorias do tomismo: consciência e intenção, a fenomenologia moderna foi se derivando em Husserl e depois em Heidegger, desvio para uma ontologia chamada continental, em Nicolai Hartmann e junto dela surge uma doutrina conhecida como realismo estrutural ôntico (OSR).
Aquilo que parecia um desvelar, termo apropriado usado por Heidegger para inferir sua clareira, vai ficando novamente confuso, porque a OSR não só ganhou destaque como se subdividiu em três doutrinas: OSR1, que é a visão de que as relações são ontologicamente primitivas, mas os objetos e propriedades não o são; OSR2, que é a visão de que objetos e relações são ontologicamente primitivos, mas propriedades não; OSR3, que é a visão de que propriedades e relações são ontologicamente primitivas, mas os objetos não (Ladyman, 1998).
Central para a ontologia de Heidegger, como dissemos no post anterior é a noção de diferença ontológica: a diferença entre ser como tal e entidades específicas, o erro da filosofia atual é além do esquecimento do ser, entender o ser como tal como uma espécie de entidade última, por exemplo, como “ideia, energia, substância, mônada ou vontade de poder”, as primeiras ligadas a filosofia “natural” contemporânea e as duas últimas a visão social e de poder.
Este erro teve que até mesmo ser retificado em sua “ontologia fundamental”, concentrando-se no sentido de ser, um projeto semelhante à meta-ontologia contemporânea, leia-se os trabalhos de Michael Inwood (ontologia fundamental) e Peter Van Inwagen, (meta-ontologia).
E tudo isto parece essencialmente teórico, mas não é, estamos discutindo as coisas e não-coisas ônticas (Byung Chul Han tem um ensaio) e estratégias e lógicas de poder, que esquecem o ser.
Nicolai Hartmann é um filósofo do século XX, embora sua perspectiva seja a “continental”, ele esclarece que as modalidades relativas dos sentidos dependem das modalidades absolutas e propõe esta realidade em quatro níveis: inanimado, biológica, psicológico e espiritual, que formam uma hierarquia, ainda que seu desenvolvimento seja excessivamente esquemático, há a questão do ser, da qual o homem contemporâneo escapa e não coloca apenas estes níveis em cheque, mas a própria civilização.
O esquecimento do ser é fundamental para compreender o destempero e a crise de sentido da vida que está em todas esferas humanas, da política, educacional até a espiritual.
Inwood, Michael. «Ontology and fundamental ontology» A Heidegger Dictionary. [S.l.]: Wiley-Blackwell, 1999.
Inwagen, Peter Van. «Meta-Ontology». Erkenntnis. 48 (2–3): 233-50, 1998.
Ladyman, J. What is structural realism? Studies in the History and Philosophy of Science 1998.
A verdadeira ascese
Não há definições claras, nem na psicologia, nem na sociologia e na moral daquilo que seja uma verdadeira alegria equilibrada, ou se desvia para uma euforia que é manter a alegria em níveis elevados, o que não é possível todo o tempo, ou sua compensação, que é diminuir para níveis nostálgicos e baixos que não pode mais que um contentamento.
Também na filosofia de falou sobre alegria e euforia, para derivada do grego (euphoria) que significa sustentar facilmente o que carrega (phoros), porém o termo aparece em termos modernos em 1875 pra referir-se ao contentamento experimentado pelos viciados em morfina, sendo também característica daquilo que se chama transtorno bipolar.
Tudo depende do desejo de elevação humana a um estágio em que estando mais alto seja sustentável (carregado – eu + phoros), assim pode-se supor uma subida, uma ascese.
Peter Sloterdijk conceituou a sociedade atual como tendo uma ascese desespiritualizada, claro que sua espiritualidade não se refere a um culto ou crença definida, porém questiona que esta subida é hoje sem sustentação espiritual, sem uma verdadeira ascese.
A metáfora que Sloterdijk usa das esferas, mais uma vez com alusões explícitas a Heidegger, se referir às construções das esferas íntimas e imunológicas, é a da casa (Haus ou Gehäuse), não é apenas um lugar que oferece proteção, mas também constitui uma esfera psíquica, espiritual e intelectual para esta “ascese”.
Não há subida sem esforço, e muitas vezes sem sacrifícios, e não há subida se não for para o alto, assim uma ascese não é um exercício um treino, mas uma vida prática de ascender.
Portanto a alegria sem esforço para a vida, para o pão de cada dia, para o progresso humano e não apenas material é falsa ascese, não tem sustentação, desmorona após o “exercício” e se pode-se comparar a subida de um monte, deve-se lembrar para ao descer suportá-la no alto.
Discursos, apoteoses e vertigens são buscas quase intermináveis nos dias de hoje, frases de efeito não produzem vida, não dão alegria e paz duradoura as pessoas, posse de sabedoria falsa, de alegria e elevação falsas, porque desmoronam no dia seguinte diante da realidade.
Promessas de paraíso terrestre, enriquecimento e bens de consumo não passam de euforia, de falsa ascese, a posse de um bem não significa necessariamente a felicidade e a paz interior, o que todos homens almejam, mais ainda nos dias de hoje, um pouco de paz e alegria durável só é possível com uma verdadeira ascese, sem abdicar dos bens da vida e do respeito mútuo.
A alegria passará e uma quarta-feira de cinzas virá e então enfrentemos as dificuldades com coragem e determinação, uma ascese verdadeira sabe cada passo que deve dar.
Existe um Ser interior
A filósofa Hannah Arendt já havia desenvolvido o tema de Vita Contemplativa, e o ensaísta coreano-alemão Byung Chul-Han amplia este tema em seu livro com o mesmo nome, porém vamos apontar apenas as novidades ali, entre elas aquilo que retoma de Heidegger que é a disposição.
No Ser e o Tempo, Heidegger trabalha o verbo stimmen, usando a conjugação stimmung (que é traduzida por disposição) e usa também Gestiment-Sein (ser disposto), mas que no alemão é algo como estar afinado, estar em sintonia com algo e isto modifica o conceito de intenção.
Ao pé da letra disposição, um estado de espírito precede qualquer intencionalidade referida a objetos: “A disposição já abriu, porém, o ser-no-mundo como todo, e torna principalmente possível um dirigir a [algo]” (Heidegger apud Han, 2023, p. 66).
Assim a relação com o mundo exterior, com os objetos, com os entes e com tudo que vem de fora ao Ser, significa que estamos dispostos a, diz o texto: “A disposição nos abre o espaço unicamente no qual nos confrontamos com um ente. Ela desvela o Ser” (Han, idem).
Esta visão transforma o que somos e pensamos, em termos espirituais aquilo que a alma esta disposta e para o que se dirige a partir da interioridade, diz o texto: “A dimensão contemplativa que nele habita o transforma em um corresponder. Ele corresponde àquilo que “se dirige a nós como voz [Stimme] do ser”, ao se deixar de-finir por ela” (Han, 2023, p. 67).
Assim o pensar torna-se outra coisa do que articulação lógica ou discurso narrativo: “Pensar significa “abrir nossos ouvidos”; ou seja, escutar e ouvir atentamente. Falar pressupõe escutar e corresponder. “Philosophia é o corresponder verdadeiramente consumando que fala atenta ao chamado do ser do ente. O corresponde ouve a voz do chamado […]” (Han, 2023, pgs. 67-68).
Tudo isto parece excessivamente filosófico e o é de fato, porém significa conforme afirma o autor que há algo de-finido, e temos muitas definições pré-dispostas, é algo que está condensado em nossa mente e nossos pensamentos “no âmbito pré-reflexivo”, quer dizer dentro de nós.
Assim é o que temos dentro, em nossa interioridade que nos ajuda ou limita, diz o autor citando novamente Heidegger: “Se a disposição fundamental fica de fora, então tudo é um aglomerado forçado de conceitos e cascas de palavras” (Heiddeger apud Han, p. 68).
Assim não é o exterior e aquilo que tomamos fora de nós que nos define, mas o que temos dentro e por isso a interioridade é fundamental para qualquer análise.
HAN, Byung-Chul. Vita contemplativa: ou sobre a inatividade. Trad. Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
Poder e respeito
Byung Chul-Han em seu livro O enxame, esclarece que somente o respeito possui simetria, isto é, pode tornar a relação de mutuo respeito e reconhecimento daquilo que é bom para todos.
Nisto consiste um dos maiores valores da ação social, a solidariedade com aqueles que por algum motivo erraram ou tiveram um desvio em sua ação comportamental, ser permitido ao retorno da vida social e a esperança de uma vida nova.
É preciso fazer a experiência do novo, da retomada da relação de respeito com o Outro, e da reinserção social, não significa tolerar aquilo que é inaceitável quer seja moral ou socialmente, mas fazer uma nova experiência de vida da ressocialização e da reorganização da vida pessoal.
O poder quando exercido somente para a repressão e combate aquilo que é condenável social e moralmente não deve estar ausente, seria omissão e desorganização, porém cada ser humano e cada pessoa pode e deve ser permitido sua ressocialização e reinserção social.
O convívio social se degradou não porque as pessoas erram, isto é próprio da vida social e humana, mas porque retomar a relação de respeito, ser paciente em ouvir o Outro e permitir sua mudança é dar-lhe Esperança e condições de fazer uma experiência nova e de respeito.
A cultura da exclusão, do ódio e da ausência de perdão leva a uma sociedade hostil, ao fim de relações sociais justas e ao caminho que dá possibilidade para maior equidade e justiça para todos, a exclusão engrossa o caldo da marginalidade, da cultura do desrespeito e dá asas a todo tipo de polarização e confronto.
A sociedade sem um retorno a vida social equilibrada, justa em todos os sentidos, inclusive o moral e econômico, torna possível o desenvolvimento de uma cultura de paz e de fraternidade.
Não há caminho de retorno apenas impondo regras e conceitos, muitas vezes duvidosos e sem uma razão prática adequada (a phronesis grega), torna-se um direcionamento ideológico que é tão hostil quanto aquilo que condena: o autoritarismo e a ignorância.
Falta bom senso, razão prática em todos os âmbitos da sociedade, do político ao religioso, a prática da desconfiança, do descrédito e desrespeito ao pensamento diferente, torna o campo do autoritarismo cada vez mais presente e o campo da democracia e da igualdade distante.
A prática de atitudes cotidianas do bem, do ouvir paciente é o caminho para aqueles que de fato desejam um mundo mais fraterno e solidário, a prática da agressão e do ódio não levam a uma possibilidade real de retorno ao caminho da guerra e do confronto.
Aqueles que dizem seguir o Amor e a solidariedade precisam sair das palavras e ir aos atos.
Feliz 2024 e este blog
Difícil fazer um balanço positivo de 2023, esperava-se alguma reação positiva da humanidade no pós-pandemia onde muitos faleceram em decorrência do agravamento de doenças colaterais do coronavirus, esperava-se mais solidariedade e respeito a vida humana.
A Ucrânia iniciará o ano com um dia de luto devido ao maciço ataque feito pela Rússia que matou 39 pessoas e feriu outras 159, a maioria civis, a ONU se pronunciou considerando o ataque como “inaceitável” e os Estados Unidos admitem uma intervenção direta na guerra através de suas tropas, isto representaria na prática o início de uma 3ª. Guerra Mundial.
Além desta crise, há o flagelo da guerra na faixa de Gaza e a tensão entre Venezuela e Guiana.
Ainda não finalizou o ano e este mês o blog bateu seu record de acessos com mais de 32 mil e a nova linha onde aprofundamos a questão da noosfera, a partir de Teilhard Chardin que cunhou o termo, também a crise do pensamento (vemos que a filosofia vive também uma crise) e que é a origem da atual crise civilizatória e a Cibercultura, com aspectos éticos e sociais que são aprofundados em leituras tanto do aparecimento de novas tecnologias (ChatGPT, Bard, Azure, etc.) que entram na Era da IA Generativa, no modelo LLM (Large Language Model).
O cenário complexo requer leitura de uns poucos autores que detectam o fio de ouro da crise atual, o modelo idealista que vem do dualismo da Grécia Antiga (o ser é e o não ser não é), o modelo de estado centralizador e monopolizador (mesmo o modelo liberal que cresce em alguns países não deixa de ditar teorias e modelos centralizados) e cuja crise atinge o corpo social, a cultura e até mesmo a religião onde não faltam falsos profetas, adivinhos e apocalípticos, este apelo cresce em função da gravidade do momento.
Deixamos um alento de esperança, de certeza que é possível sair de uma crise com equilíbrio, responsabilidade e um olhar desapaixonado sobre os problemas, paixão pela vida sim, mas não a de fanáticos e salvadores da pátria que pouco ou nada colaboram com saídas humanitárias e responsável sobre o futuro humano.