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Ser grato não é tão simples
Parece que ser grato e dizer obrigado por pequenos ou grandes gestos de amigos, parentes e mesmo desconhecidos seja uma atitude comum, mas não é, a cultura paternalista e de certa forma assistencialista tornou o que é uma atitude de bondade em quase uma obrigação.
Alguns filósofos e até mesmo cientistas colocaram sobre a atitude externa (dita objetiva) e interna (ter compaixão pelo outro) em campos distintos quase opostos.
Para o senso comum descreveu Popper não é então a simples objetividade ou subjetividade desenvolvida pela filosofia idealista, ou ainda a intersubjetividade que liga a subjetividade de indivíduos ou discursos, é a possibilidade de atingir o conhecimento de coisas, situações e pessoas que leve ao conhecimento de determinada forma de saber que tenha fundamentos culturais, sociais ou mesmo de crenças que os levem a atitudes pro-ativas.
Então leva atos feitos isoladamente a um circulo virtuoso de atitudes, é claro que Popper não falou de gratidão, mas Marcel Mauss escreveu nos anos 20 a teoria da dádiva, ou do “dom” que é tirar a simples remuneração ou recompensa por atitudes positivas, porém não há problema em haver remuneração, este é seu aspecto idealista, mesmo neste caso pode haver gratuidade se feito como dom a quem recebe o serviço.
O que leva a gratidão e não a recompensa é como está na origem etimológica da palavra a noção de gratuidade que deve acompanhar mesmo aqueles atos para os quais existem uma justa remuneração, sem seja uma forma instrumentalizada ou corruptora aquele ato.
Assim a colaboração, a cooperação e até mesmo ações totalmente gratuitas que possam envolver valores, como é o caso de salários pagos, que devem ser pensados como atos de fraternidade e compaixão como os que estão envolvidos naquele ato.
Assim como atos contínuos levam a uma atitude, também gratidão contínua pode levar a gratitude, pode e não deve porque há uma diferença em ambos casos que é o fato que se não se torna um ato e uma gratidão social, mesmo havendo atitude e gratitude pode perder-se e levar a descontinuidade de atos e gratidões, isto é um problema em determinadas culturas.
Ser grato é uma atitude interior de amor e externa de reconhecer e dizer obrigado.
Civilizar a civilização
Este é um dos capítulos centrais do livro “Terra-Pátria” de Edgar Morin, é sempre importante lembrar que isto foi muito antes da atual crise bélica, que é o cume de um dos mais perigosos pontos da crise civilizatória.
Escreveu sobre o que significa civilizar: “A busca da hominização, que faria sair da idade de ferro planetária, nos incita a reformar a civilização ocidental, que se planetarizou tanto em suas riquezas como em suas misérias, a fim de realizar a era da civilidade planetária” (Morin, 2003, p. 110).
O lema é bonito, parece tão simples quando falamos do amor, mas realiza-los é algo muito mais difícil do que se imagina: “Nada é mais difícil de realizar que o desejo de uma civilização melhor” (Morin, 2003, p. 110).
É como quando foi feita a Revolução Francesa, o seu lema trinitário: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” parecia simples e realiza-lo, porém adverte Morin, a norma democrática de 1848 é complexa porque: “porque seus termos são ao mesmo tempo complementares e antagónicos: a liberdade sozinha mata a igualdade e a fraternidade; a igualdade imposta mata a liberdade sem realizar a fraternidade; a fraternidade, necessidade fundamental para que haja um vínculo comunitário vivido entre cidadãos” (Morin, 2003, p. 112).
Estes antagonismos vão desde o egoísmo econômico até o ódio político, e também o exercício da democracia: “ … exige simultaneamente consenso e conflitualidade, é muito mais que o exercício da soberania do povo” (idem) e este limite que exige tolerância foi ultrapassado.
Assim o que temos em jogo é “… a dificuldade de instaurar a democracia após a experiência totalitária. A regra do jogo democrático necessita de uma cultura política e cívica cuja formação foi impedida por décadas de totalitarismo; a crise económica suscita um excesso de conflitualidade que ameaça romper a regra democrática” (Morin, 2003, p. 113) e em várias partes do planeta este rompimento já aconteceu.
Escreveu Morin em tom profético para a época (escrito em 1993): “Correlativamente, o desmoronamento das grandes esperanças do futuro, a crise profunda do revolucionarismo, o esgotamento do reformismo, o achatamento das ideias no pragmatismo do dia-a- dia, a incapacidade de formular um grande projeto, o enfraquecimento do conflito de ideias em proveito dos conflitos de interesses ou dos etnocentrismos étnicos ou raciais ..” (p. 114).
É preciso ultrapassar estas fragilidades para reencontrar o caminho do bem comum e do bem estar social, não está longe o seu alcance, o problema é que este caminho como o amor e a fraternidade não são tão simples e exigem uma resiliência de fazer o bem exercitando-o.
MORIN, E. e KERN, B. Terra-Patria. Trad. Paulo Azevedo Neves da Silva. Brazil, Porto Alegre : Sulina,2003.
Desenvolvimento, poder e civilização
A política dominada pela arrogância do poder, pelo pouco serviço as causas sociais e pelo desprezo e desrespeito a cidadania do cidadão comum é a vida pública deteriorada.
A polarização em dois grandes blocos políticos não aconteceu recentemente, Edgar Morin em seu livro Terra-Pátria já afirmava: “A guerra fria começa já em 1947. O planeta está polarizado em dois blocos, travando em toda parte uma guerra ideológica sem remissão. A despeito do equilíbrio do terror atómico, nem por isso o mundo se acha estabilizado” (Morin, 2003, p. 30).
Que tipo de crise é esta? em outros livros Morin fala da crise do pensamento, neste de uma crise do desenvolvimento: “Nossa civilização, modelo do desenvolvimento, não estará ela própria doente do desenvolvimento?” (Morin, 2003, p. 83).
A crise civilizatória que vivemos, tem efeitos colaterais: “Os indivíduos só pensam no dia de hoje, consomem o presente, deixam-se fascinar por mil futilidades, tagarelam sem jamais se com- preender na torre de Babel das bugigangas. Incapazes de ficar quietos, lançam-se em todos os sentidos” (Morin, 2003, p. 84).
Outro efeito é os jovens: “Quando a adolescência entra em rebelião contra a sociedade, quando ela “se extravia” e mergulha na droga pesada, acredita-se que é apenas um mal da juventude; não se percebe que a adolescência é o elo fraco da civilização, que nela se concentram os problemas, os males, as aspirações difusas e atomizadas noutra parte”. (Morin, 2003, p. 85).
O que acontece é que entramos numa “corrida cega” como a chama Morin: “A corrida da tríade que se encarregou da aventura humana, ciência/técnica/indústria, é descontrolada. O crescimento é des- controlado, seu progresso conduz ao abismo”. (Morin, 2003, p. 92).
Certamente produzimos frutos civilizatórios importantes: “Ah, certamente! Shelley, Novalis, Hulderlin, Pushkin, Rimbaud, Bach, Mozart, Schubert, Beethoven, Mussorgski, Berg são os frutos históricos de um desenvolvimento civilizacional; mas a obra deles transcende esse desenvolvimento, ela exprime nosso ser-no-mundo, fala-nos do indizível, leva-nos ao limite do êxtase, lá onde se atenua a influência irremediável do tempo e do espaço” (Morin, 2003, p.107).
Porém os donos do poder, envoltos em seus devaneios megapolíticos, de impérios e lutas que não contemplam a grandeza humana e civilizatória, incapazes em sua arrogância de abrir mão de privilégios e de outros povos e nações como aliadas e amigas, incapazes de resolver os problemas sociais e climáticos.
Diz o evangelho sobre estes, que são também os de religiosidade farisaica: “Jesus dizia, no seu ensinamento a uma grande multidão: “Tomai cuidado com os doutores da Lei! Eles gostam de andar com roupas vistosas, de ser cumprimentados nas praças públicas; gostam das primeiras cadeiras nas sinagogas e dos melhores lugares nos banquetes. Eles devoram as casas das viúvas, fingindo fazer longas orações. Por isso eles receberão a pior condenação” (Mc 12,38-40)
MORIN, E. e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Pátria, trad. por Paulo Azevedo Neves da Silva. — Porto Alegre: Sulina, 2003.
Além das dores, outra alegria
Não há só cancelamentos de identidades e etnias, há também cancelamentos voltados às políticas que eliminam a fraternidade, a solidariedade e o amor.
Edgar Morin para falar da “salvação” escreveu: “A vida, a consciência, o amor, a verdade, a beleza são efémeros. Essas emergências maravilhosas supõem organizações de organizações, oportunidades inusitadas, e elas correm a todo instante riscos mortais. Para nós, elas são fundamentais, mas elas não têm fundamento” (Morin, 2003, p. 164).
Este tipo de cancelamento não é só o mais perigoso, é ele próprio um cancelamento da possibilidade de uma boa-nova: “O amor e a consciência morrerão. Nada escapará à morte. Não há salvação no sentido das religiões de salvação que prometem a imortalidade pessoal. Não há salvação terrestre, como prometeu a religião comunista, ou seja, uma solução social em que a vida de cada um e de todos se veria livre da infelicidade, do acaso, da tragédia. É preciso renunciar radical e definitivamente a essa salvação” (Morin, 2003, p. 164).
Morin cita outro autor fundamental para sua argumentação: “Como diz Gadamer, é preciso “deixar de pensar a finitude como a limitação na qual nosso querer-ser infinito fracassa, (mas) conhecer a finitude positivamente como a verdadeira lei fundamental do dasein”. O verdadeiro infinito está além da razão, da inteligibilidade, dos poderes do homem” (Morin, 2003, p. 164).
Como é este além da finitude pode ser escrito conforme o autor: “O evangelho dos homens perdidos e da Terra-Pátria nos diz: sejamos irmãos, não porque seremos salvos, mas porque estamos perdidos*. Sejamos irmãos, para viver autenticamente nossa comunidade de destino de vida e morte terrestres. Sejamos irmãos, porque somos solidários uns com outros na aventura desconhecida” (Morin, 2003, p. 166), e explica em nota de rodapé (*):
*Na verdade, a ideia de salvação nascida da recusa da perdição trazia em si a consciência recalcada da perdição. Toda religião de vida após a morte trazia em si, recalcada, a consciência da irreparabilidade da morte.
Cita Albert Cohen para explicar: “Que esta espantosa aventura dos humanos que chegam, riem, se mexem, depois subitamente param de se mexer, que esta catástrofe que os espera não nos faça ternos e compassivos uns para com os outros, isto é inacreditável” (Cohen, apud Morin, 2003, pgs. 166-167).
Assim fica seu apelo à fraternidade: “O apelo da fraternidade não se encerra numa raça, numa classe, numa elite, numa nação. Procede daqueles que, onde estiverem, o ouvem dentro de si mesmos, e dirige-se a todos e a cada um. Em toda parte, em todas as classes, em todas as nações, há seres de “boa vontade” que veiculam essa mensagem” (Morin, 2003, p. 167).
MORIN, E. e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Pátria, trad. por Paulo Azevedo Neves da Silva. — Porto Alegre: Sulina, 2003.
Além da dor e da agonia
As crises tanto pessoais como as humanitárias devem propiciar um novo alvorecer e uma glória maior do que aquelas que o processo civilizatório permitiu.
Edgar Morin ao analisar a policrise que vivemos faz uma análise de uma certa agonia, diz:
“Se considerarmos globalmente os dois ciclones crísicos e críticos das guerras mundiais do século XX e o ciclone desconhecido em formação, se considerarmos as ameaças mortais à humanida- de vindas da própria humanidade, se considerarmos enfim e sobretudo a situação atual de policrises enredadas e indissociáveis, então a crise planetária de uma humanidade ainda incapaz de se realizar enquanto humanidade pode ser chamada de agonia, ou seja, um estado trágico e incerto em que os sintomas de morte e de nascimento lutam e se confundem” (Morin, 2003, p. 97).
E conclui: “Um passado morto não morre, um futuro nascente não consegue nascer” (idem).
Procura salvar aqui que está além destas dores e dificuldades: “Há avanço mundial das forças cegas, de feedback positivos, de loucura suicida, mas há também mundialização da demanda de paz, de democracia, de liberdade, de tolerância…” (Morin, idem) mantendo a esperança.
Mas o cenário já era difícil quando escreveu o livro: “A luta entre as forças de integração e as de desintegração não se situa apenas nas relações entre sociedades, nações, etnias, religiões, situa-se também no interior de cada sociedade, de cada indivíduo” (idem) é uma luta interior.
Estamos condenados a isto, escreve: “Estamos irremediavelmente comprometidos na corrida ao cataclismo generalizado? De que parto esperamos a saída? Ou continuaremos, aos trancos e barrancos, rumo a uma Idade Média planetária nos conflitos regionais, nas crises sucessivas, nas desordens, nas regressões – apenas com algumas ilhotas preservadas?…” (p. 98).
Só temos uma saída para o autor: “A agonia de morte/nascimento é talvez o caminho, com riscos infinitos, para a metamorfose geral… Com a condição de que venha a tomada de consciência, justamente, dessa agonia” (idem, p. 98).
Esta saída é a redescoberta das nossas finalidades terrestres, tema das páginas seguintes e que já abordamos anteriormente, este caminho exige reflexão e retomada de equilíbrio e da paz.
MORIN, E. e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Pátria, trad. por Paulo Azevedo Neves da Silva. — Porto Alegre: Sulina, 2003.
Um novo meta-desenvolvimento
Encaramos viver como uma vida intensa de ação, prazer e desprezo pela verdadeira alegria de viver, aquele gaudio e paz que só corações solidários podem sentir.
Escreveu Edgar Morin sobre o meta-desenvolvimento:
“O desenvolvimento é uma finalidade, mas deve deixar de ser uma finalidade míope ou uma finalidade-término. A finalidade do desenvolvimento submete-se ela própria a outras finalidades. Quais? Viver verdadeiramente. Viver melhor.
Verdadeiramente e melhor, o que significa isso?
Viver com compreensão, solidariedade, compaixão. Viver sem ser explorado, insultado, desprezado” (Morin, 2003, p. 106).
Isto deve estender a todos povos, religiões e culturas do planeta, não haverá verdadeira processo civilizatório, justiça e liberdade sem estes valores, caras conquistas da humanidade.
Não apenas Edgar Morin sonhou com uma cidadania planetária, todos verdadeiros sonhadores e humanistas sonharam com ela, embora alguns se limitem a olhar os fracassos, a vida plena e a liberdade que não ignora os direitos dos outros é a única capaz de conduzir um novo momento.
Talvez as guerras e todas as mazelas que elas envolvem: lutas econômicas, politicas e até religiosas (uma verdadeira religião jamais contemplaria a menor violência contra a vida) é preciso sobretudo resistir e ter esperança que um futuro novo poderá vir, talvez com os sofrimentos atuais, diria uma “paixão violenta” na vida planetária com ameaças e guerras.
A que tipo de retrocesso, uma verdadeira barbárie estamos caminhando, já percebi o gênio e a sagacidade de Morin, da dupla barbárie: “É verdade que em todos os tempos, em todos os lugares, a humanidade se viu diante da necessidade de resistir à crueldade difusa feita de maldade, desprezo, indiferença. As duas barbáries presentes são formidáveis desenvolvimentos de crueldade: a crueldade odiosa vem da primeira barbárie e se exprime no assassinato, na tortura, nos furo- res individuais e coletivos, a crueldade anónima vem da barbárie tecno-burocrática” (Morin, 2003, p. 100).
Morin percebeu o retrocesso depois da primavera vivida em 1989-1990, onde os muros caíram, agora eles se reerguem é preciso resistir, conforme afirma em seu texto.
MORIN, E. e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Pátria, trad. por Paulo Azevedo Neves da Silva. — Porto Alegre: Sulina, 2003.
Provocações, ameaças e esperanças
As guerras continuam ameaçando a paz mundial, e as grandes potências estão envolvidas de modo crucial para que isto aconteça, não há discursos pacíficos nem humanitários, as forças envolvidas lançam uma grande sombra sobre toda a humanidade: uma guerra global.
O ex-presidente russo e atual vice-presidente do Conselho de Segurança russo, Dmitri Medvedev, em entrevista a agência de notícia RT declarou: “Os Estados Unidos estão errados ao pensar que a Rússia nunca ultrapassará uma certa linha no que diz respeito ao uso de armas nucleares” e de fato a Rússia tem feito exercícios militares neste sentido, mas em outros discursos o ex-presidente russo sempre reconheça que seria um desastre sem precedentes.
Outro polo de tensão é um confronto direto Irã e Israel, agravado por ataques e revides recentes entre as duas nações, o presidente iraniano Ali Khamenei declarou: “Os inimigos, tanto os EUA quanto o regime sionista [Israel], devem saber que certamente receberão uma resposta devastadora pelo que estão fazendo contra o Irã e a frente de resistência” se referindo aos grupos aliados ao Irã, incluindo Hamas e o Hezbollah.
A China também realiza exercícios militares em torno da ilha Taiwan, no domingo (04/11) 35 drones ultrapassaram a linha divisória entre os dois países no estreito de Taiwan (figura), que manteve apenas a prontidão do seu serviço de defesa, uma vez que não foram efetuados ataques.
Há sempre uma esperança de paz e que os líderes entendam o número de vítimas, de injustiças e de flagelos que as guerras trazem, a paz é uma condição civilizatória para todos.
Querela pacis e a verdadeira vida da paz
Embora um filósofo que possua várias limitações, Erasmo de Rotterdam, há mais de 500 anos escrevia o Querela Pacis, um lamento da Paz, que falava em primeira pessoa sobre a Paz e dizia “a paz precisa sempre de alguém que lhe dê voz”, assim é antes uma atitude do interior do Ser.
Os textos de Byung-Chul Han, destaco três: A sociedade do Cansaço, A crise da narração e Vita Contemplativa, podem parecer alienantes num mundo em pé de guerra, mas é um texto que aponta também este caminho, uma paz interior que dê voz ao mundo da pura exterioridade.
Diz na Crise da Narrativa: “a filosofia como ´poesia´(mythos) é um risco, um belo risco. Ela narra, até mesmo ousa, uma maneira nova de viver e ser” (Han, 2023, p. 106), destaques do autor, aponta até mesmo a concepção do Iluminismo e de Kant sobre a alma, como “ousada”, mas são narrativas e mais a frente lembra que Nietzsche apontará um mundo “transnarrado”.
É a partir deste autor que apontará um mundo onde “uma narrativa do futuro, baseada em uma “esperança”, em uma “fé” no amanhã e no depois de amanhã” (Han, 2023, p. 108) que é aquela mesma que o autor aponta em outro texto como o “já”, mas não “ainda”.
O que aconteceu com a filosofia na atualidade, e isto transbordou para as outras ciências é que “no instante em que a filosofia reivindica ser uma ciência, ser uma ciência exata, seu declínio começa. A filosofia como ciência renega seu caráter narrativo imaginário” (p. 108).
Como diz o autor “se priva de sua linguagem. Emudece” (idem), se esgota na administração da história, e é incapaz de narrar (p. 109), daí todas as modernas narrativas.
Depois o autor apontará a narração como cura, das páginas 111 até 129, para desembocar no capítulo seguinte “a comunidade narrativa”, que recupera a capacidade de narrar e imagina “uma família mundial” (p. 125), para além da nação e da identidade, esta é a paz desejada.
A pax romana e até mesmo a paz eterna (Kant) não saem dos limites das narrativas pessoais ou da identidade restrita a grupos, esta narração do cidadão do mundo, deve partir de vozes que tenham capacidade de ver a humanidade como família, como um todo na diversidade.
Eis o paradigma da complexidade desenvolvido nos posts desta semana: “o indivíduo vive no todo e o todo no indivíduo. É por meio da poesia que se origina a mais alta simpatia e a coatividade, da comunidade mais íntima” (Han, p. 125), lembrando um texto de Schriften Novalis), esta paz vem da voz interior, mas aponta para a coletividade, para a humanidade.
Esta paz beatífica, divina e verdadeira (Pax et Spes) é que pode dar voz a uma paz efetiva e duradoura.
HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023
A crise do pensamento simplista e o complexo
A epistemologia da complexidade é um ramo da epistemologia que estuda os sistemas complexos e fenômenos emergentes associados, em alguns ambientes como na mecânica e na física construíram uma tendência a aprofundar o que até então eram apenas chamados de sistemas dinâmicos, e agora sistemas não lineares ou caóticos.
O processo de industrialização serviu de grande suporte para um desenvolvimento até então impensáveis das ciências naturais, depois a geração de tecnologias: o vapor e a combustão, depois a eletricidade, e tudo parecia mover-se numa engrenagem perfeita.
Tudo se caracterizou até um certo momento em um movimento que Edgar Morin chamou de disjuntor-e-redutor, tanto as ciências como nas artes a ideia de reduzir o que é complexo ao simples (por exemplo, buscar na menor parte da física até então, os átomos) uma realidade que aos poucos mostrou-se complexas (sub-partículas em dimensões cada vez mais microscópicas até chegar ao universo quântico).
As particularidades da física subatômica introduziram incertezas e mostrou os limites do reducionismo que estava levando a uma visão distorcida da realidade, mostrou suas incertezas e ingenuidades, a pretensão de captar uma realidade objetiva que poderia ser independente do observador, quanto o próprio observador faz parte do fenômeno.
Assim esta lógica redutora-reducionista da física ampliou-se para o universo social e pessoal, e mecanismos aparentemente simples poderiam resolver problemas que são complexos, e toda a problematização decorrente desta realidade não foi observada.
O pensamento complexo não se limita ao mundo acadêmico, ele transborda e está presente em diversos setores da sociedade, assim como o simplismo de raciocínios que não contemplam a complexidade e a diversidade da vida social.
Também no mundo espiritual (ou subjetivo como poderia pensar quando vemos os objetos foram da realidade do sujeito) este equívoco nos conduz a uma porta larga, onde os valores básicos do humanismo podem ser ignorados e a vida fragmentada.
Assim a porta por onde passam lógica simplistas e triviais conduzem a grandes e problemáticos enganos, enquanto a complexidade de um caminho socialmente justo e verdadeiro não se reduz às formas ideológicas simplistas e pouco humanas.
Passar pela porta estreita nunca será um caminho fácil, porém o único que pode conduzir a humanidade a um futuro sustentável e realmente humano, de paz, de fraternidade e de valores sociais de respeito a dignidade humana.
Além da fraternidade generosa
O livro de Edgar Morin no capítulo 3, explora as “fontes biológicas da fraternidade: a ajuda mútua”, aborda o equívoco (de interpretação) da darwinismo tornado social ,“A origem das espécies por meio da seleção natural” (a obra é de 1859-1860), além de outros autores seu livro Método 2 “A vida da vida”, onde aponta que há uma solução da problemática entre a cooperação e conflito, para entender inclusive as sociedades.
Assim responde a esta “complexa relação”, presente em todas sociedades, há uma relação “complementar e antagônica (dialógica) entre solidariedade e conflitualidade.
Abre o quarto capítulo apoiando-se na filosofia de Heráclio (540-470 a.C.) “Concórdia e discórdia: pai e mãe e todas as coisas” o autor se vale da ideia do próprio universo: sua formação, desenvolvimento, dispersão e morte, mais ainda apoiado nas descobertas do mega telescópio James Webb (o livro é mais antigo) e hoje com a ampliação da cosmovisão se confirma.
O quinto capítulo finalmente chegamos a uma concepção mais complexa de fraternidade, para Morin as três noções: paternidade, maternidade e fraternidade, argumenta que, diferente do que a sociedade patriarcal demonstrou, o conceito de pai é tardio na história da humanidade.
Lembra que a ideia de macho (pai) e fêmea (mãe) não é um conceito universal para toda a natureza, e com isto a relação de irmandade (conceito mais horizontal de fraternidade) é o que deve prevalecer, mas lembra que os conceitos de nascimento e dependência, são muito importantes para o mutualismo e cooperação, estes sim presentes em todas formas de vida.
Para desenvolver o sexto capítulo recorre a experiências pessoais, e lembra que as esferas da fraternidade no interior de uma família, estão na origem das fraternidades externas que encontramos nas relações sociais no decorrer da vida.
As experiências do autor vão se tornar mais explícitas no capítulo 7 “minhas fraternidades” que são vivências do autor e um capítulo breve e inspirador que esclarece o posicionamento do autor sobre um tema tão importante num contexto dramático civilizatório que vivemos.
O autor assim apresentação o que chama no capítulo 10, de um “Oásis de Fraternidade”, onde a sociedade moderna, da globalização, contra a redução da vida humana a uma dimensão só “tecnoeconômica” que reduz o humano a uma dimensão particular mais material da vida.
Muito antes da crise atual, que Morin parecia antecipar, vai escrever nos capítulos finais “Mudar de via?” onde nossos problemas sociais ambientais são resposta ao Sapiens demens (ligados apenas a tecnologia, ao transumanismo e agora a inteligência artificial), somente uma mudança radical de via podemos recuperar a serenidade, a paz e uma volta ao processo civilizatório.
MORIN, E. Fraternidade: para resistir à crueldade do mundo, trad. Edgar de Assis Carvalho, São Paulo SP: ed. Palas Athena, 2019.