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Arquivo para a ‘Ciência da Informação’ Categoria

Neosofisma, inimizade e violência

17 jun

A polis moderna, culto da civilização ocidental em crise, nasceu da necessidade de políticos que pudessem gerenciar o bem público com virtudes (aretê), verdadeiro conhecimento (episteme) e a justiça acima do que é vantajoso e benefício para determinado grupo.

Sócrates, visto pelo texto a República de Platão era o método de diálogo (dialética, mas no sentido grego) onde o poder da argumentação e da maiêutica, “parir” o conhecimento.

Assim é que o escrito Teeteto (ver post) de Platão discorre sobre o relativismo e a polis, o diálogo é o método socrático de investigação, incluindo a análise entre razão e sensação, tinha como objetivo principal superar o pensamento sofista que apenas justificava o poder, a despeito de qualquer virtude (moral ou ética) e de qualquer conceito razoável de justiça.

Por isto Teeteto é considerado o primeiro texto clássico sobre relativismo, e o diálogo como método socrático de vencer as dicotomias das formas oligárquicas de poder, tinha também a ideia da superação de toda forma de relativismo que envolvia a sede de poder dos soberanos.

Assim a República de Platão deveria ser relida pelos políticos contemporâneos e poderiam evitar o que chamamos de neo-sofismas, o que vale para o poder não vale para o povo, por exemplo, o que é vantajoso pode ser encontrado na epistemologia de Protágoras, onde segundo alguns comentadores (Chappell, 2005) que discorre sobre o “vantajoso” e a prudência política e moral, e são largamente aplicáveis a política contemporânea.

O sentido do que é vantajoso, Sócrates concede aos sujeitos da epistemologia de Protágoras a possibilidade de sustentarem suas convicções conforme a demanda particular ou social nas cidades, ao mesmo tempo que procura garantir para o estado uma esfera mínima de valores em torno do que é benéfico ou prejudicial, o destaque de mínima aqui é para boa compreensão.

O divórcio entre justiça e benefício conforme o comentador citado (Chappel, 2005), está bem na ordem do dia pois não é muito diferente entre a prudência política e moral atual, aqui incluo o que leva a violência na sociedade moderna, não apenas a falta de prudência como também o que a política moderna considera como justos os benefícios e imoralidades do círculo do poder.

Sócrates foi levado ao martírio, não por causa de cultuar falsos deuses, este era o argumento sofista (vale em certa medida também para a atualidade), mas por querer “parir” o verdadeiro conhecimento, justiça e moral pública, daí a violência do poder dos oligarcas e seus reis.

Claro, a humanidade caminhou 2 mil anos de lá até aqui, porém a polis atual vive uma crise parecida em certa medida às cidades gregas e a violência parece institucionalizada e sem freio.

 

CHAPPELL, T. Reading Plato’s Theaetetus. Indianápolis/Cambridge: Hackett, 2005.

PLATÃO. Teeteto. Trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

 

Outras guerras e heróis

16 jun

A África viveu um longo período de colonização que não seria exagero chamá-lo de genocídio ou ao menos de apagamento de uma cultura e de uma cosmovisão imperiocêntrica, no sentido que toda ideia de libertação na África vem acompanhada de alguma forma de epistemicídio, que é impor uma cosmovisão às nações mais desarmadas e que não participam da riqueza.

Tive contato através do livro que ganhei de um amigo: “História Geral da África – África desde 1935” (2011, Cortez e UNESCO), tomei cuidado de ver os editores que são independentes e a tradução teve participação do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de São Carlos, universidade onde estudei e mais tarde fui professor.

Ali A. Mazrui foi um professor e escritor político queniano, falecido em 2014 e que teve como assistente Christophe Wondji falecido em 2015, professor universitário ivoiriense (Costa do Marfim), aqui postaremos de uma guerra atual que a República Democrática do Congo vive.

O capítulo 21 do livro, este escrito pelo próprio Ali A. Mazrui e colocabolaradores, encontro uma definição da alma africana em forma de um poema: “Nous sentons [nós sentimos], donc nous pensons [portanto, nós pensamos], donc nous sommes [por conseguinte, nós somos] (Mazrui, 2011, 763), os destaques são dos tradutores, dele traduzimos: sentimos (percepção) precede pensamos (logos) que precede somos (ontológico), e com isto entendemos a ontologia africana como percepção e acrescentaria intuição fenomenológica.

O livro estabelece todo um histórico profundo da África pós 35, assim ainda como parte da África colonizada (o apartheid por exemplo, durou até 1994) e tem uma lacuna de 2015 a frente, no período anterior caberia uma análise do Reino do Congo, já colonizado desde 1942.

Faço outra anotação pontual: “o colonialismo da manutenção da ordem foi, em sua essência, um substituto do colonialismo do desenvolvimento. O colonialismo belga, no Zaire (atual R. D. do Congo), não foi senão marginalmente melhor que o colonialismo português em Angola” (Mazrui, 2011, p. 772), que pontualmente queremos analisar.

Inicialmente colonizado por Portugal, a República do Zaire sob domínio belga (daí Congo Belga) após revoltas tem o nome e a constituição modificada para República Democrática do Congo de 1971 a 1997, é o segundo maior país da África (a Argélia é o primeiro) depois que o Sudão foi dividido criando o Sudão do Sul, que vive também uma guerra e há outras na África.

O Zaire sofreu um golpe militar em 1965 liderado por Joseph-Désiré Mobutu, depois de uma crise conhecida como crise do Congo (1965), Patrice Lumumba democraticamente eleito não toma posse, torna-se República Democrática do Congo, porém o mobutismo ficou conhecido pelo seu nepotismo, corrupção e messianismo sendo deposto em 1995 por Laurent-Desiré Kabila, politicamente sendo considerado ambíguo, é aliado dos tutsis inimigos dos hutus.

O regime da República Democrática do Congo é semi-presidencialista, e o atual presidente é Félix Tshisekedi, eleitor em 2019 e reeleito em 2023, e a primeira ministra é Judith Tuluka.

O país tem enormes riquezas minerais que incluem as famosas terras raras, importantes para a tecnologia atual (columbita tantalita), e entre os conflitos, a província do nordeste de Kivu do Norte e do Sul, que envolvem tanto questões políticas como étnicas.

Hoje será proclamado “servo de Deus” um jovem de Kivu Floribert Bwana Chui (na foto numa escola para a paz), que se opôs a entrega de alimentos estragados a população, morto sob tortura negou-se a ser corrompido e a abandonar suas crenças e valores, em cerimônia na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, com presença do bispo congolês Willy Ngumbi e outros cardeais do Congo, e a presença do cardeal para Causa dos Santos, Marcello Semeraro.

Para a paz, a África pede respeito aos seus valores e fim da corrupção ocidental no país.

MASRUI, Ali A., WONDJI, C. (Eds) História Geral da África: África desde 1935, v. 8, 2a. ed. São Paulo: Cortez Editora, Brasília: MEC/UNESCO, 2011.

 

 

A guerra escala: Israel ataca Irã

13 jun

Desde as primeiras horas de ontem o movimento nas embaixadas americanas no Oriente Médio indicavam que o governo Trump havia autorizado o ataque do Irã e aconteceu, também na Rússia a guerra escala, pois agora a Ucrânia ataca sistemas militares em território russo.

O próprio ministro da defesa Israel Katz declarou a imprensa: “Após o ataque preventivo do Estado de Israel contra o Irã, um ataque com mísseis e drones contra o Estado de Israel e sua população civil é esperado em futuro próximo”, a população já faz estoques de comido e procura bunkers de proteção.

Também haviam aviões russos próximos a região de conflito, indicando apoio estratégico, já que o Irã é aliado russo, tendo fornecido drones e a Rússia apoia o armamento nuclear do Irã, um dos pontos principais de conflito dos EUA com o governo de Israel.

A TV estatal iraniana confirmou que o chefe da Guarda Revolucionária Islâmica, Hossein Salami foi morto nos ataques, há indícios de outros membros do alto comando tenham sido mortos, mas o Irã não confirma, apenas se sabe que foram alvo os sistemas militares iranianos.

O secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio garante que não participa da ofensiva, mas que o governo tem como objetivo proteger os “interesses e o pessoal” na região.

Na Rússia, a Ucrânia com drones kamikaze atingiram a estação de controle do sistema Navodchik-2, que é responsável por comandar os voos dos UAVs (veículos não tripulados) e a Rússia acusa envolvimento direto da OTAN nas operações atuais da Ucrânia, por outro lado a Europa espera ataques fora da Ucrânia, em especial, por tropas concentradas na Bielorrusia.

A região é próxima de Sumy no noroeste da Ucrânia, onde a Rússia tem concentrado ataques.

Na madrugada, em Israel tocam as sirenes (foto) e na Europa o clima é de tensão a espera de resposta russa fora do território da Ucrânia nos países do sul ou em países bálticos.

Em Israel havia uma moção para convocar novas eleições e Netanyahu resistiu, o governo Trump enfrenta manifestações e protestos em várias regiões do país, a guerra deve acirrar.

Os interesses bélicos vão sufocando as vozes da paz, mas só uma saída civilizatória sem mais tragédias e conflitos: a diplomacia, que os governos retornem à sanidade e aos diálogos.

No início da manhã de hoje (13/06) a comunidade internacional pede uma desescalada e o secretário da ONU António Guterres pede a Israel e Irã a mostrar moderação máxima

 

 

O Outro, a ontologia e o trinitário

12 jun

O Outro entrou definitivamente no pensamento ocidental mais recente, embora existisse a questão do “próximo” no pensamento cristão, era compreendido como uma “bondade”.

Isto porque pensamento ocidental marcado por um humanismo ético, o humanitas (já postamos algo) no sentido que o processo civilizatório deve contemplar tanto a natureza humana como a bondade, por isto iniciamos o percurso da categoria Outro por Lévinas.

Embora influenciado pela fenomenologia de Husserl e pela ontologia de Heidegger, o pensamento de Levinas (1905-1995) parte da ideia da Ética humanitária e não da Ontologia.

A influência é clara na sua tese de doutorado La Théorie de l’Intuition dans la Phénoménologie de Husserl (1930) e continua escrevendo artigos sobre os dois autores, alguns recolhidos mais tarde em seu En Découvrant l’Existence avec Husserl et Heidegger (1949).

Ele observa que o pensamento ocidental foi dominado pelo Ser até o final da idade média e depois substituído pelo eu, seus diálogos inclui Platão, Descartes, Kant, Hegel e Bergson.

Sua contribuição mais importante é a análise que faz do “il y a”, o há ou o existir no qual conclui que não é possível reduzir tudo a esta existência, há algo além então fala do infinito.

O diálogo com Heidegger fica preso a ideia do ser do ente, a quididade do ente ou o que o ente é, porém conforme alguns autores isto já aparece em De l´evansion (1935), mas aqui ficamos na leitura que conhecemos mais a fundo de Totalidade e infinito (1961).

O pensamento de Levinas parte da ideia de que a Ética, e não a Ontologia, em 1949 conheceu Martin Buber (autor de Eu-Tu) e recebe a semente que o lugar dos outros é indispensável para nossa realização existencial, mas solidifica sua ideia que a ética é crítica e por isto antecede a ontologia, que é dogmática, é bom lembrar que ambos tinha fortes influencias judaicas.

Assim a categoria de Infinito de Levinas não se remete nem a questão cosmológica nem a ideia de Outro Ser, fica presa ao idealismo no aspecto da afirmação da liberdade do sujeito cognoscente frente a exterioridade do objeto cognoscível, assim universaliza a razão.

Lembre-se que já em Platão o Bem é o aspecto funcional do Um, está acima da substância ou essência, o Uno que será tratado pelo neoplatonico Plotino que influencia Agostinho de Hipona, na obra De trinitate que levou quase 20 anos para ser finalizada, Agostinho a vê como Ser, e sem dúvida é um aspecto dogmático, que é a existência além do Eu e o Outro, um Ser.

Boécio leitor de Agostinho e tradutor de Porfírio, para muitos o primeiro escolástico, afirmava que este Ser não é nem ente nem substância, mas ultra-substância, seu pensamento pode ser concluído como: “A substância é responsável pela unidade; a relação faz a Trindade”.

Falamos de unidade presos ao humanitas e precisamos falar de Trindade, há o Terceiro Ser.

AGOSTINHO, St. De trinitate, livros IX e XIII, Trads. Arnaldo do Espírito Santo / Domingos Lucas Dias/João Beato/Maria Cristina Castro-Maia de Sousa Pimentel, LusoSofia:press, Covilhã, 2008. (pdf)

BOÉCIO. Consolações Filosóficas. Trad. Luís M. G. Cerqueira, 2a. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2016. (pdf)

BUBER, Martin. Eu e tu. Trad. Newton A. Von Zuben. São Paulo, Ed. Centauro, 2006. (pdf)

LEVINAS, E. Totalidade e Infinito, Trad. José Pinto Ribeiro, Lisboa: Ed. 70, 1980. (pdf)

 

 

Peitarquia, relativismo e violência

09 jun

Mais de 100 anos após Sorel ter escrito Réflexions sur la violence (Paris, 1908) e 50 do texto de Giorgio Agamben Sobre os limites da violência (Nuovi Argomenti, n. 17, 1970) esta discussão parece estar na ordem do dia, os últimos acontecimentos e a visão de uma polis agora sem tolerância e sem diplomacia toma conta das mentes bélicas.

Agamben lembrando A condição da humana de Hannah Arendt escreveu: “Ser político, viver na polis, significava antes de tudo aceitar o princípio de que tudo fosse decidido através da palavra e da persuasão, e não com a força e a violência” (Agamben, 1970, pp. 154-174) e usou o conceito de peitarquia, uma particular compreensão de sua relação da política com a verdade, ou seja, sobre a crença de que a verdade tinha por si o poder de persuadir.

Os sofistas para justificar poderes e tornar legítimos governos autoritários, faziam do uso da retórica como arte e técnica, um atributo para distorcer a verdade, e Platão tinha assistido impotente à condenação à morte de seu mestre Sócrates, a República de Platão é lida assim.

Teeteto aparece nos diálogos de Platão como uma figura, apontada com um dos primeiros indícios do relativismo, à pergunta de Sócrates sobre o que é conhecimento, Teeteto a vê como a Geometria e demais artes, e Sócrates responde com ironia: “É nobre e generoso, pois pedem algo simples e tu ofereces múltiplas e diversas coisas”.

E primeira exigência de Sócrates, é que Teeteto abandone suas ideias iniciais, que aparecem conjugadas com as ideias de aparência, verdade e alma, e a segunda é abandonar a ideia de “familiaridade” que temos coisas, e devemos abandoná-la pois: “Parece-me que aquele que conhece algo percebe aquilo que conhece, e para dizer a coisa tal como agora ela se manifesta, o conhecimento nada mais é do que sensação.”

Por isso Sorel, Agamben e Hannah Arendt podem ser retomados na atualidade, os argumentos sobre a guerra não são mais do que justificativas para a violência, quando ela própria já é uma ruptura com a verdade, diz o dito popular: “a primeira coisa que morre na guerra é a verdade”.

A resposta a operação Teia de aranha que a Rússia fez atacando alvos civis sem discriminação (na foto uma área residencial), alvos que em larga escala também foram resposta ao terrorismo do grupo Hamas e a notícia deste final de semana de que Miguel Uribe, pré-candidato a presidência da Colômbia sofreu um forte atentado, e está em estado gravíssimo, não é senão que os limites estão ultrapassados.

Tanto na Europa quanto no Oriente Médio a escalada bélica já é realidade, nas América a política começa a romper os limites do diálogo e da persuasão, é um passo para o pior.

Não faltam esperança e apelos para a paz, no entanto vão sendo sufocados pelas armas.

PLATÃO. Teeteto. Trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

 

A grande clareira e o sonho Bergsoniano

06 jun

Bérgson considerava o misticismo além da experiência religiosa, para ele é uma chave para compreender a vida como um “elan vital” que permitir acesso direto a força criadora da vida e, portanto, permitir uma compreensão divina, visto que é fonte de todo ser.

Bergson sofreu duras críticas de Gaston Bachelard, Merleau-Ponty, Julien Brenda e Jacques Maritain que rejeitavam o conceito de intuição bergsoniano de unidade do querer, e alguns de sua religiosidade sem Deus, mesmo rejeitando o ateísmo puro.

A grande clareira de Heidegger elabora situações raras em meio a floresta, é um conceito central que se refere à abertura que permite o “aparecer” do ser, a sua manifestação ou desocultamento, notem que é diferente de re-velar (velar de novo) sendo um desvelar.

Este espaço onde a luz permite uma compreensão profunda da verdade, permitindo entender o mundo, é diferente da “duração” de Bergson justamente pela visão do tempo, lembro que o nome da obra máster de Heidegger é Ser e Tempo, enquanto Bergson fala de “duração”.

Abandonando apenas momentaneamente o discurso filosóficos, a clareira de Heidegger é no meio da floresta e pode ser feita sob certas condições, para Bergson ela estaria acessível a todos homens pela intuição, assim também o Espírito Santo seria acessível a todos e não é (acima, quadro de

Não é no conceito cristão é claro, porém o que aconteceria se toda a humanidade pudesse ter este acesso e se como realmente é, diante da realidade desocultada ou desvelada, qual seria o choque de uma grande clareira, faço uma premissa diferente quais as condições para isto?

Se o sonho bergsoniano estiver acessível a todos homens, seria então uma grande clareira e ela se daria sobre certa “duração”, parece razoável pensar que seria numa condição humana estrema e por intervenção divina (ou não) o homem estaria naquele estado de alerta máximo.

Assim é para mim possível uma pequena clareira, acesso a Verdade que habita em nossa alma (os cristãos chamam de Espírito Santo), sob as condições de graça, unidade e humildade (vazio, epoché ou ausência) e sob uma condição extrema de que a própria vida (ou civilização) esteja em jogo, muitos já passaram por esta situação (não gosto, mas alguns chamam de EQM, uma experiência de quase morte) e sabem que temos soluções intuitivas muito rápidas que nos salvam de perigos.

É interessante que na história do cristianismo, após a “ascensão” ao céu (postamos toda a semana anterior sobre ascese), Jesus afirmava é preciso que “eu vá para que ele (o Espírito Santo) venha” (Jo 16:7-8), é preciso “ausência”, vazio para abrir espaço a clareira (do Espírito).

O intitulado Pentecostes cristão, momento que o Espírito Santo vem sobre os apóstolos, esteve ao alcance de diversos místicos, claro que muitos falsificam e vulgarizam isto, porém é preciso saber as premissas para isto ocorrer, não é só um espaço de articulação retórica.

BERGSON, Henri. As Duas Fontes da Moral e da Religião, tradução: Nathanael C. Caixeiro, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Trad. Marcia Sá C. Schuback. 15ª. edição. Petrópolis. Vozes, 2005.

 

O Espírito na filosofia e na religião

05 jun

O idealismo alemão que ainda hoje influencia profundamente a sociedade teve seu ápice com Hegel, sua concepção de estado e de direito são fundamentais, mas não é secundária sua visão do Espírito, em especial na sua obra “Fenomenologia do Espírito”.

Primeiro é preciso deixar claro que sua fenomenologia é oposta à Fenomenologia de Husserl, para o idealismo é possível o desenvolvimento da consciência até chegar ao conhecimento Absoluto, categoria abstrata que o idealismo julgava possível alcançá-la por meios humanos.

Hegel considerava o desenvolvimento do Espírito em 3 momentos, o primeiro próprio do idealismo o Espírito Subjetivo, do sujeito na relação consigo mesmo, o segundo Objetivo, os objetos estão “fora” na realidade do mundo e o terceiro o Espírito Absoluto, que atingiria a unidade e o posto mais alto da consciência.

Henri Bérgson foi por outro caminho, o conhecimento para ele vinha da intuição, por isso chamado de intuicionista, a introspecção não é uma divagação subjetiva, e sim um valioso caminho para a compreensão do ser enquanto totalidade vivente e em perpétua mudança.

Assim sua visão de Espírito é algo mais próximo das realidades da alma, seu objetivo era demonstrar que a autêntica vida estava além dos símbolos, densos, estáticos e inflexíveis, para isto desenvolveu a ideia da duração que não é um contínuo espaço-tempo e sim vivência.

Só a consciência é capaz de ligar o já acontecido e o que pode acontecer, lembremos que até o advento da física quântica a física, a ciência e até a sociologia eram ligadas ao determinismo.

Sua visão de Espírito não era a visão cristã do Espírito Santo, uma pessoa da Trindade, e sim a consciência “interna”, porém reconhecia a mística, disse “A mecânica, exige uma mística”.

Via a seu modo o que Sloterdijk chamou de “ascese desespiritualizada”, para ele o mundo atual sofre de uma indigência espiritual que lhe impede apreciar a força criadora da vida, e o reconhecimento desta força pode aproximar cada ser humano de uma mística, da sabedoria.

Em sua juventude, Bérgson mostrou indiferença à religião judaica dos pais, adotando uma visão agnóstica, mas herdou de sua mãe uma sensibilidade espiritual e reconhecia tanto a possibilidade como a realidade dos místicos, entretanto seu Espírito não é o Espirito Santo.

Na religião a diferença entre fariseus e saduceus, é que estes não acreditavam em anjos e no Espírito, hoje também há aqueles que proclamam só o Espírito sem considerar a natureza, Tomás de Aquino escreveu: “a graça pressupõe a natureza”. 

Para reconhece-lo é preciso estabelecer uma ponte entre o humano e o divino, como uma terceira pessoa, o que ele chama de duração, a filosofia chama de epoché, a filosofia oriental de ausência, podemos entender o espaço vazio, o silêncio que deixamos na alma para ouvir aquela voz, algo inteiramente novo que não passa por nossos sentimentos ou paixões.

Disse em Confissões Agostinho de Hipona sobre o tempo: “Se não me perguntam, sei o que é, se me perguntam não sei explicar o que o tempo é”, já postamos sobre sua obra De Trinitate. (pintura acima: The mistery of a Summer Night, E. Munch, 1892).

Para entender o Espírito Santo é preciso estar num estado de graça, depois estar vazio das ideias e convicções (epoché ou ausência) e por último entender o terceiro entre Eu e o Outro.

AGOSTINHO, St. De trinitate, livros IX e XIII, Tradutores: Arnaldo do Espírito Santo /Domingos Lucas Dias /João Beato /Maria Cristina Castro-Maia S. Pimentel, LusoSofia:Press, Covilhã, 2008.

BÉRGSON, H. A ideia de tempo. Tradução de Débora Cristina Morato Pinto. São Paulo: Editora Unesp, 2022

HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espirito. Parte I. Trad. Paulo Meneses. 2ª. edição. Petrópolis: Vozes, 1992.

 

Blog ultrapassa 100 mil leitores em maio

01 jun

Em maio este blog ultrapassou a marca dos 100 mil leitores e fazemos uma projeção de mais 45o mil para o ano.

Em 16 de março de 2010 escrevia o primeiro post deste blog sobre o iPad, sendo que o primeiro iPad foi lançado somente no dia 3 de abril de 2010, assim nosso blog anteviu seu sucesso, ainda que seja crítico do modelo de negócios da empresa e use os Androids.

No dia 27 de agosto de 2010 colocava a primeira imagem no blog falando a rede Diáspora*, cujo desenvolvimento agora está em um novo link, porém o projeto ainda não decolou.

No mesmo ano a internet estava prestes a chegar a 2 bilhões de usuários, anunciamos a chegada do modelo 4G nos EUA, apontando que a tecnologia LTE era compatível com a GSM e anunciamos o lançamento do livro Practical Open Source for Libraries, de Nicole C. Engard.

Nunca esquecemos a preocupação social, a luta no Brasil do modelo de Ficha Limpa contra os corruptos, comentamos e popularizamos a primeira mulher Nobel de Economia Elinor Ostrom (2009) e seu modelo de organizações com gerenciamento dos bens comuns (Governing of Common) e procuramos de diversas formas como enfrentar de fato e de frente a miséria.

Agradeço aos leitores, não há aqui qualquer preocupação midiática (no sentido de promoção pessoal), procuro olhar todos os lados de problemas sociais e políticos e buscar a verdade.

Renovo o compromisso com uma humanismo universal e fraterno, com respeito às diferenças e soluções pacíficas.

 

 

 

Por uma ascese espiritualizada

30 mai

A expressão inversa criada por Sloterdijk é muito sugestiva: “uma ascese desespiritualizada” pois constata a realidade da vida interior humana, o homem descobre-se “abaixado”, e isto não é apenas como indivíduo e é também como sociedade, então busca “exercícios” para levantar-se e se por numa posição vertical, cria não uma espiritualidade, mas sim uma “sociedade de exercícios”.

Escreve assim Sloterdijk “Em uma palavra, nós tínhamos que falar sobre os incapacitados, sobre os com outra constituição, para encontrar uma expressão que articula a constituição geral de seres sob tensão vertical. “Você tem que mudar sua vida!” isso significa […]. Você deve prestar atenção para a sua vertical interior e examinar como a tração do polo superior age sobre você! Não é o andar reto que transforma o homem em homem, mas a consciência emergente do desnível interior que faz com que o homem se levante.” (Sloterdijk, 2009, p. 99).

Isto é parcialmente verdadeiro, porque de fato um homem com sua coluna reta não está só de pé, ele também se eleva e pode olhar de frente e mais alto o mundo ao seu redor, e até os exercícios podem ajudar, mas sem uma vida vertical “interior” os exercícios serão inúteis.

Na leitura antropotécnica de Sloterdijk, não são apenas as novas mídias (as anteriores radio, cinema e televisão já o faziam), mas o atletismo olímpico retomado em 1896, retoma a ideia do homem viril e superando marcas como um modelo do homem dos “exercícios” e isto foi de certa forma incorporado na espiritualidade moderna, “exercícios espirituais”, diz assim o autor:

“Sejam cristãs ou não-cristãs, elas [as religiões] formam materialiter e formaliter nada diferente do que complexos de ações interiores e exteriores, sistemas de exercícios simbólicos e protocolos para a regulamentação da relação com fatores superiores estressantes e poderes “transcendentais” – com uma palavra antropotécnicas de modo implícito.” (Sloterdijk, 2009, p. 139).

Sloterdijk (2006) já tinha mostrado no seu livro Zorn und Zeit [Ira e tempo], no contexto de uma psicologia política, como orgulho, ambição e vaidade contribuem para uma verticalização da vida social (sem a interior), porém seu discípulo Byung-Chul Han aprofunda criando a psicopolítica social.

Fazemos exercícios, nos “convertemos”, porém, a vida interior continua a mesma, saímos dos exercícios e voltamos a uma vida não vertical externamente: corrupções, mentiras pequenas e grandes, perversões, chegando a bebedeiras e drogas enfim um mundo desespiritualizado.

Uma verdadeira ascese tornaria o homem mais vertical, mais reto, com pavor de situações de desordem e desconforto humano (senão no momento, existe sempre uma cobrança física e mental nos pós euforia ou falsa alegria).

A filosofia oriental da ausência explica muita coisa, precisamos estar ausente para que venha uma verdadeira espiritualidade, este exercício sim é difícil e exigente, porém passado aquilo que é “apenas momento” eis que se transforma em espiritualidade vivida e vertical.

SLOTERDIJK, Peter. Du musst Dein Leben ändern. Über Antropotechnik Frankfurt, Suhrkamp, 2006. (versão original em alemão).

 

Alegria, dor e ascese

29 mai

A alegria verdadeira é gaudio, É um termo usado para expressar um sentimento de grande contentamento ou prazer, extravasar palavra tem origem no latim “gaudium”, não se confunde com êxtase e euforia (veja que a-phoria abordamos no post anterior, é não-passagem) que são descontroles emocionais e onde nos perdemos.

A dor faz parte da realidade humana, e assim nenhuma alegria é perene se não entende o sacrifício, na etimologia da palavra “ofício sagrado”, não é exatamente a dor, conforme descreve Byung-Chul Han em A sociedade paliativa: a dor hoje, a dor sem sentido, é  a “aflição corporal” a dor se coisificou, perdeu um sentido ontológico e de certa forma “escatológico”, “a dor sem sentido é possível apenas em uma vida nua esvaziada de sentido, que não narra mais.” (Han, 2021, p. 46).

Han cita autores da literatura como Paul Valéry, para quem em seu livro o personagem Monsieur Teste “Se cala em vista da dor. A dor lhe rouba a fala” (Han, 2021, p. 43), e também Freud, para quem “a dor é um sintoma que indica um bloqueio na história de uma pessoa. O paciente, por causa de seu bloqueio, não está em condições de avançar na história” (p. 45).

Byung-Chul Han explica como a sociedade contemporânea caiu nesta cilada de alegria através de conquistas e feitos que usam o máximo de nossas forças, e junto com elas trazem o “imperativo da felicidade”, e alcançam na contramão A sociedade do cansaço.

Muitas pessoas com stress, depressão, com síndrome do pânico e Burnout (que é o nome no livro em inglês sobre o cansaço), vemos sobre a pressão do desgaste mental e físico, “alegria” para ele não é o oposto do sofrimento, e sim algo que deve ser cultivado pela reflexão ou meditação e a busca por um sentido mais profunda que a vida tem.

Seu raciocínio também alcança a esperança, não o sentimento acomodado de quem sempre “espera”, mas a crença num futuro melhor mesmo que diante de um sofrimento, que pode ser uma contingência ou uma fatalidade, ela é a abertura para o que ainda não existe, não apenas no futuro temporal e sim algo que está além de nossa compreensão imediata.

Por último, em quase todos seus livros, há sempre um cultivo através da meditação (Vita contemplativa), devemos ir além de nossa individualidade e permitir uma conexão com algo maior, está na nossa capacidade de celebrar e nos alegrar tanto com coisas pequenas como grandes da vida, não apenas aquelas que depende de algo material e de consumo.

Esta ascese não pode deixar de estar ligada à justiça, à verdade, e reconhece que mesmo os sofrimentos estão ligados ao nosso crescimento pessoal e interior e assim dar espaço a uma verdadeira ascese humana, social e que sem ela não conseguimos uma alegria individual.

Não há ascese nem alegrias verdadeiras sem um salto interior onde a esperança vive.

HAN, BYUNG-CHUL. A Sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado, Petrópolis: ed. Vozes, 2021.