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Os limites do pensamento lógico
O pleno desenvolvimento da ciência moderna e da técnica foi a realização de um programa sonhado por Francis Bacon, René Descartes e Immanuel Kant como um domínio total do homem sobre a natureza num perigoso limiar ético, fabricar aquilo que é natural, porém isto esbarra em dois dilemas: o natural foi e (ao meu ver) sempre será o “não fabricado” e ao torna-la substancia manipulável continuar a ser de fato o que era naturalmente.
Em trechos de apontamentos de Heidegger entre 1936 e 1946 (portanto na etapa final da 2ª. guerra mundial), o autor escreveu um ensaio chamado Superação da Metafísica, e com toda a sua genialidade descreve o que resultaria na produção técnica e industrial da vida, escreveu: “Uma vez que o homem é a mais importante matéria prima, pode-se contar com que, com base nas pesquisas químicas atuais [da época claro], serão instaladas algum dia fábrica de produção artificial de material humano. As pesquisas do químico Kuhn, distinguindo de dirigir planificadamente a produção de seres vivos machos e fêmeas, de acordo com as respectivas demandas” (Heidegger, Uberwindung der Metaphysik, parágrafo 26).
Também Adono e Horkheimer expressaram na célebre Dialética do Esclarecimento, que esta “desde sempre, no mais abrangente sentido do pensamento em progresso, perseguiu a meta de retirar do homem o medo e instituí-lo como senhor. Porém, a terra completamente esclarecida cintila sob o signo do infortúnio triunfal.” (Adorno, Horkheimer, 1987, p. 25).
Também Habermas falava desta extravagância da má ficção científica, produção experimental de embriões, mesmo ateu convicto, em sua obra Die Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik? reclama desta visão de “parceiros da evolução” ou até “brincar de Deus” como metáforas para auto-transformação da espécie.
Não se trata de opor ao avanço da ciência, pensamento retrógrado presente em todos os meios sociais, mas de se opor a má ciência, ao mau progresso que resultam em flagelos para a própria humanidade.
O sentido de recuperar plenamente a vida, de se opor ao crescente autoritarismo e belicismo, de proclamar a paz, o desenvolvimento sustentável e a origem divina da vida humana não é só uma proclamação de fé ou de humanismo sério e sincero, é uma resistência do espírito, da esperança e de uma racionalidade acima da lógica instrumental e agnóstica.
Desencantamento, narração e dor
Chul Han lembra de um hábito muito conhecido em muitas sociedades que é o fato de contar histórias para as crianças dormirem, lembro que é antigo, pois são famosas As fábulas de Esopo (Grécia antiga), os contos dos Irmãos Grimm, as histórias organizadas por Charles Perrault e muitos outros, Han vai escolher uma história pouco conhecida (pelo menos aqui no Brasil) de Paul Maar do jovem Konrad que não sabia narrar e sua irmã Susanne que pede que ele conte uma história para ela dormir.
Os pais por outro lado gostavam de narrar, eram “quase viciados nisto” e quando o pai termina de contar uma história a mãe escreve R de Roland no papel e quando a mãe termina de contar história o pai escreve um O de Olivia, mas os pais percebem que Konrad não consegue narrar história e o mandam para um certa senhorita Muhse, ele chega a uma casa pequena e a senhorita que sabe que ele veio aprender a contar histórias pede que ele suba uma escada e leve um pacotinho para a irmã, mas a escada parece infinita até que encontra uma parede que se abre como uma porta.
Lá dentro está tudo escuro e vê uma coruja com voz e conversas estranhas e percebe que não tem piso e cai num longo encontrando ao final a senhorita Muhse que lhe dá outro pacote e pede que leve ao irmão dela no térreo pois não entregou o primeiro, Konrad fica confuso pois pensava ter caído para o térreo, e ele novamente cai nas “estranhas escuras” da casa e novamente chega a senhorita Muhse, que agora fuma um charuto fino, sabe que ele não entregou o pacote e lhe dá outro novamente, ele diz “não estou aqui para entregar pacotinhos, estou aqui para aprender a narrar”, ela vê que é um caso perdido, abre uma porta na parede e diz: “Boa triagem e tudo de pão” (ela sempre muda os ditados) e desta vez está de volta a casa dos pais (páginas 74 a 77).
Os pais e irmãzinha estão tomando café da manhã e ele diz animado: “tenho que contar para vocês. Vocês não vão acreditar no que vivi …”, o mundo de Konrad agora é outro e agora os pais escrevem K (de Konrad) no papel que eles anotavam suas narrações.
O desencantamento do mundo é quando tudo é reduzido a causalidade, a facticidade (as narrativas de hoje dizem os fatos não mentem, mas sob uma interpretação parcial), Walter Benjamin diz que “as crianças são os últimos habitantes do mundo encantado” (pg. 79), diria não há mais no mundo “adulto”: leveza, empatia e imaginação.
“As crianças de hoje caçam informações como ovos de Páscoa digitais” (pg. 80), hoje a “falta de interioridade narrativa distingue as fotografias das imagens de recordação … as fotografias retratam o dado sem internalizá-lo … não querem dizer nada … “ e é por isto que concluo que dados podem não ser, e quase sempre não são, informações.
Mais difícil ainda é entender o que é conhecimento como vivência: “a narrativa se opõe a facticidade cronológica” (pg. 81), lembra Han lendo Marcel Proust e também Benjamin que a aura é justamente a “distância do olhar que desperta no objeto observado” (pg. 82) e lembrará também Karl Kraus citado em Benjamin: “quanto mais de perto se olha para uma palavra, mais distante ela parece estar” (pg. 83).
A memória desnarrativizada é como uma “loja de sucatas” aqui o autor lembra Paul Virilio (Informação e Apocalipse) sendo o “depósito abarrotado de todo tipo de imagens completamente desordenadas, mal preservadas e de símbolos desgastados” (pg. 84), onde se torna “amontoado de dados ou informações [que] não tem uma história. Ele não é narrativo, mas cumulativo” (pg. 84).
Termina este capítulo de forma muito agradável e sensível, depois de citar trechos das obras de Susan Sontag, Adorno e Gershom Scholem, parafraseando este último escreve: “O fogo mítico na floresta foi esquecido. Não sabemos mais fazer orações. Também não somos capazes de meditações secretas” (pg. 89) e diria aproveitando o tópico Dor do livro “Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade” (veja posts anteriores) não sabemos mais o significado da dor, do afeto e perdemos qualquer noção do “todo”.
Han, B.C. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis: Vozes, 2023.
Narração, cultura digital e oralidade
Ainda no trecho sobre a Pobreza e experiência, citando Walter Benjamin escreveu Byung-Chul: “Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do ´atual’. A crise econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra a próxima guerra” (Han, 2023, pg. 37-38, citando Pobreza e Experiência de Benjamin), era o limiar da 2ª. guerra mundial.
Em que a modernidade resume a felicidade, esclarece o autor “a felicidade não é um acontecimento pontual (pg. 43), hoje “quando tudo nos lança em um frenesi da atualidade, quando estamos no meio da tempestade de contingências, somos infelizes” (pg. 44), relembra Marcel Proust “Em busca do tempo perdido” que entendeu o “resgate do passado como tarefa do narrador” (pg. 45) e a vida moderna como “uma atrofia muscular”.
Discordando de Heidegger para reafirmar sua importância contextual (também para hoje): “Ser e tempo não é uma análise atemporal da existência humana, mas um reflexo da crise temporal da modernidade” (pg. 45), “o ser-si-mesmo de Heidegger é anterior ao contexto narrativo da vida produzido posteriormente. O ser-a-i se assegura de si mesmo antes de narrar a si mesmo uma história coerente referente ao mundo da interioridade” (pg. 47) e isto explica o livro que postamos anteriormente aqui O coração de Heidegger.
Após um discurso de algumas páginas sobre as novas mídias: Phono sapiens, os selfies, o Facebook, é uma fixação do autor ainda que reconheça Benjamin anterior a isto, ainda que diga de modo correto: “eles são alinhados de forma sindética, sem nenhum nexo narrativo” (pg. 51), reconhece que sempre “A memória humana faz escolhas. Nesse aspecto, ela se diferencia de um banco de dados”, uma precisão técnica fundamental, por há quem confunda e as vezes ele também, com dados sem informação e informação sem conhecimento.
É anterior até mesmo ao surgimento da prensa de Gutenberg e pertence à cultura oral: “a narração autobiográfica pressupõe uma reflexão posterior sobre o que foi vivido, um trabalho de recordação consciente” (pg. 53) enquanto “a qualidade dos dados é melhor quanto menos consciência eles contêm” (idem), porém é preciso lembrar a busca semântica, a ligação dos dados (linked data) e o uso da Inteligência Artificial para a narração (é possivel com ética e supervisão humana) que tornem possível uma consciência além do “consciente libidinal” (idem) sem ética nem moral, sem o esquecimento do ser.
Sem citar a cultura oral, mas o trecho lembra ela: “se tudo o que foi vivenciado estiver presente sem distância, ou seja, estiver disponível, a recordação reaparece” (pg. 56) e acrescenta: “uma reprodução sem falhas da vivência não é uma narrativa, mas um relatório ou registro” (ibidem) e lembra que quem quiser narrar ou recordar “precisa ser capaz de esquecer ou deixar escapar muita coisa” (pg. 57) e não pode estar falando de outra coisa que não seja a cultura escrita, pois a oral é capaz de esquecer detalhes porém vai sempre recordar o que é vivido e através dela lembrar o essencial e lembrar a tradição.
Lembrar os mestres das culturas, seus ensinamentos e vivencias não é outra coisa senão a cultura oral, a cultura escrita é um “banco de dados”, uma memória sem reflexão.
Sem citar a cultura oral, mas o trecho lembra ela: “se tudo o que foi vivenciado estiver presente sem distância, ou seja, estiver disponível, a recordação reaparece” (pg. 56) e acrescenta: “uma reprodução sem falhas da vivência não é uma narrativa, mas um relatório ou registro” (ibidem) e lembra que quem quiser narrar ou recordar “precisa ser capaz de esquecer ou deixar escapar muita coisa” (pg. 57) e não pode estar falando de outra coisa que não seja a cultura escrita, pois a oral é capaz de esquecer detalhes porém vai sempre recordar o que é vivido e através dela lembrar o essencial e lembrar a tradição.
Lembrar os mestres das culturas, seus ensinamentos e vivencias não é outra coisa senão a cultura oral, a cultura escrita é um “banco de dados”, uma memória sem reflexão.
HAN, B.C. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis: Vozes, 2023.
Poder em Foucault e Chul-han
Michel Foucault rompeu com as concepções clássicas do termo poder e define como uma rede de relações onde todos os indivíduos estão envolvidos, e entendemos a rede aqui com o sentido moderno de rede embora fosse vago no seu tempo, os indivíduos são tanto geradores como destinatários do movimento destas relações, entretanto ele as identifica como biopoder, enquanto Chul-Han vai identificar como psicopoder, e de certa forma agrega as mídias a isto.
A ideologia de Estado, nascida de Hegel é a base de toda história de poder contemporâneo, o autoritarismo e as guerras modernas nasceram de uma nova ideia de imperialismo e colonialismo, na qual estados mais fortes controlam o poder não apenas pelas armas, mas antes pelo biopoder e agora pelo psicopoder.
O biopoder de Foucault, o estado é o primeiro nível de poder (ele chama de setor), o mercado o segundo nível, e, o terceiro é a sociedade civil, a ideia de 4º. poder da imprensa vem daí.
Ele estudou o poder não para desenvolver uma teoria sobre ele, mas para identificar aspectos da subjetividade (na ontologia seria a questão do Ser), ou seja, sujeito sobre os outros sujeitos.
Isto é importante para diferencia-lo de Chul-Han, que parte das relações ontológicas entre os seres e identifica a ação de mídias e estruturas mídias que atuam sobre a psicologia do poder, assim sua ideia de poder (O que é poder) é como uma técnica de dominação que estabiliza e reproduz o sistema dominado por meio de uma programação e de um controle psicológicoc.
Foucault vê o biopoder, como no corpo como uma máquina de adestramento, já que a biopolítica, em meados do século XVIII, estava focada em controles reguladores da população, a ideia que era o aumento populacional que proporcionava a miséria e a fome.
Peter Sloterdijk que orientou a tese de doutorado de Chul-Han sobre Heidegger, defende que este processo de “adestramento” falhou e assim, o processo de controle desenvolve-se para o quarto poder, que Chul-Han focaliza excessivamente nas mídias, esquecendo do 4º. poder da imprensa, TVs e cinema que influenciaram enormemente.
Ele desenvolve patologias de autocentramento (narcisismo), instabilidade emocional (borderline) como respostas às demandas de uma sociedade intoxicada de exigências de eficiência, de aparência e de coerção disciplinar, escreveu o autor):
“É inerente à sociedade pré-moderna da soberania a violência da decapitação; seu medium é o sangue. A sociedade disciplinar moderna é, em grande medida, uma sociedade da negatividade, sendo regida e dominada pela coerção disciplinar, isto é, pela ‘ortopedia social’. Sua forma de violência é a deformação. Mas nem a decapitação e nem a deformação estão em condições de descrever a sociedade de desempenho pós-moderna. Ela é dominada por uma violência da positividade, que confunde liberdade e coerção. Sua manifestação patológica é a depressão” (Han 2018, pp. 183-184).
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.
Ameaças de guerra total
As declarações de Macron e Putin assustam a Europa, embora a neutralidade não seja o termo exato para o envolvimento devido a presença da OTAN em vários países, agora Suécia e Finlândia, fronteiras com a Rússia.
Em entrevista ao jornal Le Parisien, publicada sábado passado (16/03), Macron declarou: “Prepare-se para todos os cenários possíveis” na e acrescentou “talvez em algum momento isso tenha que ser feito”, e “todos assumirão suas responsabilidades”, provocando reações de diversos tipos, umas contra e outras a favor.
Em resposta, Putin disse que, caso algum país do |Ocidente envie tropas à Ucrania, uma guerra entre a Rússia e a Otan seria inevitável, e ameaçou usar armas nucleares “capazes de destruir a civilização”.
Putin tem uma maleta com um comando e controle eletrônico altamente secreta chamada de “Kazbek”, acredita-se que também o ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, e o chefe do Estado-Maior russo Valery Gerasimov, também tenham estas maletas, elas controlariam mais de 4300 ogivas nucleares.
Também os planos da OTAN para implementar um modelo rotativo de defesa aérea na Lituânia estão tomando forma, de acordo com o ministro da Defesa lituano, Arvydas Anušauskas.
A eleição da Rússia com 87% dos votos para Putin foram criticadas no Ocidente, a Alemanha chamou de “pseudo-eleições”, os jornais franceses de “simulacro”, enfim opositores presos ou mortos e muita repressão a oposição.
Putin afirmou que a Russia consideraria testar uma arma nuclear caso os Estados Unidos o fizessem, em 2023 o presidente russo retirou a Rússia do Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares (CTBT, em inglês), embora seja noticiado que a Rússia não realizou nenhum teste, recentemente, testou o míssel Bulava (SS-NX-30 na classificação da Otan) pode ser equipado com dez ogivas nucleares.
O tom subiu, mas também a resistência do espírito e da esperança não diminuiu, a paz é possível.
A resistência do espírito da humanidade
Victor Serge escreveu “Meia noite do século” em 1939, já em plena 2ª. guerra mundial, agora em artigo publicado em La Reppublica, em 24-01-2024, o sociólogo francês Edgar Morin publicou um artigo: “A resistência do espírito” sobre a crise das guerras atuais.
Serge, um anarquista de origem, que chegou a apoiar a Revolução Russa, viu ela se burocratizar e perseguir todos os inimigos reais e imaginários no período stalinista, descrito em “O grande Terror” (1934-38), anos antes de descrever o horror a meia noite, e o que disser de hoje.
A guerra na Ucrânia mobilizou ajudas econômicos de boa parte do mundo, enquanto do lado russo enfraquecido economicamente pelas sanções impostas pelas nações ocidentais, tanto fortaleceu o desenvolvimento técno-científico quanto o bloco formado com a China.
Um novo foco surgiu após um massacre de civis feito pelo Hamas no dia 7 de outubro de 2023, aos quais se seguiram bombardeios mortais de Israel na faixa de Gaza.
Na análise de Morin, já a algum tempo desenvolvida, o progresso do conhecimento se deu criando barreiras em disciplinas cada vez mais fechadas em seu objeto, que leva a um novo tipo de pensamento quase cego, ligado ao domínio do cálculo num mundo tecnocrático, o progresso do conhecimento não dá conta da complexidade da realidade e torna-se cego.
O resultado de uma falta de clareza e compreensão da vida humana exposta pela facilidade de acesso ao conjunto da vida no planeta, sem sua compreensão, levou aos dogmatismos e aos fanatismos, e uma crise da moral enquanto se espalham os ódios e as idolatrias.
Lembrando os anos da ocupação nazista na França (foto Carentan France, June 1944 From the LIFE Magazine Archives), em que o próprio Morin foi membro da Resistência Francesa, ele evoca agora uma resistência do espírito que evita uma ação quase desesperada ou realmente desesperada, e mantém a esperança através da Resistência.
Esta resistência implica em salvaguardar ou criar um oásis de comunidades dotadas de uma palavra de relativa autonomia (agroecológica) e de redes de economia social e solidária.
Esta ação também implica em associações que se dediquem à solidariedade e rejeição ao ódio.
O que são as coisas
Ao reler as “Não-coisas” de Byung Chul-Han, que relembra com propriedade que o termo vem de Vilém Flusser, que viveu no Brasil boa parte de sua vida, o autor retoma também os conceitos de Hanna Arendt e Heidegger, mas não penetra na essência da coisa, que não é só informação.
Os filósofos medievais já haviam desenvolvido a questão da quididade, que não é nem uma ideia nem um conceito, mas algo que buscava compreender a essência das coisas, do latim, “quidditas” significa “o que é isso” e estava relacionada à ideia de identidade e singularidade.
Assim ao transformá-la em informação, faz aquilo que Luhman fez com o conceito (lembre-se que este autor trata mais a questão da comunicação do que a coisa em-si), diz citado por Byung Chul-Han: “Sua cosmologia é uma cosmologia não do ser, mas da contingência”, ou seja, algo que não possui essência, não tem identidade ou singularidade e não pode “ser”.
Esclarecendo que é uma forma particular de ver a informação, como “coisa transmitida”, e nisto o autor tem razão: “As informações não se deixam possuir tão facilmente quanto as coisas. A posse determina o paradigma da coisa. O mundo da informação não é governado pela posse, mas pelo acesso” (Han, 2022), isto é tão verdadeiro, que o dicionário português no Brasil passou a ter uma nova palavra que é “logar”, do inglês, log “registro” no sentido de marcar um acesso à “informação”, no sentido de Chul-Han.
Citando Jeremy Rifkin, Han adverte que a transição da posse para o acesso é uma mudança de paradigma que leva a mudança drástica no mundo da vida, subtítulo do livro, ele prevê um novo tipo de ser humano: “acesso, logo, ´access´são termos-chave da era nascente (Han, 2022).
Jeremy Rifkin, a transição da posse para o acesso é uma profunda mudança de paradigma que leva a mudanças drásticas no mundo da vida. Ele prevê até mesmo o surgimento de um novo tipo de ser humano: “Acesso, ‘logon’, ‘access’ são os termos-chave da era nascente. […]
Sobre a identidade modificada do sentido medieval, diz o autor: “Nós nos produzimos nas mídias sociais. A expressão francesa se produire significa colocar-se em cena. Nós nos encenamos. Nós performamos nossa identidade” (Han, 2022), veja bem: produz nas mídias.
Mídias são meios, a confusão com a ideia das redes, não de propósito é claro, destrói a terceira característica da coisa que é sua singularidade, não neste ensaio, mas em outros, o autor lembra que tudo no mundo se caracteriza pela mesmice, tudo parece muito igual.
Este mundo da “não posse” é diferenciado pelo desfrutar mais que o viver, faz da “idealização das coisas” uma tarefa, não é raro ver em programas e nas mídias sociais um grande número de perguntas utópicas e bizarras, tais como, o que seria se você fosse um objeto, se morasse em outro planeta, etc. e isto diverte o público das não-coisas.
Não se assustem os revolucionários, mas citando Walter Benjamim, Chul-Han escreve: “a relação mais profunda que se pode ter com as coisas”, esta substancialidade não é materialista e sim uma relação racional e “informacional” com as coisas, informação aqui em outro sentido.
Han, Byung-Chul Não-coisas : reviravoltas do mundo da vida / Byung-Chul Han ; tradução de Rafael Rodrigues Garcia. – Petrópolis, RJ : Vozes, 202
Feliz 2024 e este blog
Difícil fazer um balanço positivo de 2023, esperava-se alguma reação positiva da humanidade no pós-pandemia onde muitos faleceram em decorrência do agravamento de doenças colaterais do coronavirus, esperava-se mais solidariedade e respeito a vida humana.
A Ucrânia iniciará o ano com um dia de luto devido ao maciço ataque feito pela Rússia que matou 39 pessoas e feriu outras 159, a maioria civis, a ONU se pronunciou considerando o ataque como “inaceitável” e os Estados Unidos admitem uma intervenção direta na guerra através de suas tropas, isto representaria na prática o início de uma 3ª. Guerra Mundial.
Além desta crise, há o flagelo da guerra na faixa de Gaza e a tensão entre Venezuela e Guiana.
Ainda não finalizou o ano e este mês o blog bateu seu record de acessos com mais de 32 mil e a nova linha onde aprofundamos a questão da noosfera, a partir de Teilhard Chardin que cunhou o termo, também a crise do pensamento (vemos que a filosofia vive também uma crise) e que é a origem da atual crise civilizatória e a Cibercultura, com aspectos éticos e sociais que são aprofundados em leituras tanto do aparecimento de novas tecnologias (ChatGPT, Bard, Azure, etc.) que entram na Era da IA Generativa, no modelo LLM (Large Language Model).
O cenário complexo requer leitura de uns poucos autores que detectam o fio de ouro da crise atual, o modelo idealista que vem do dualismo da Grécia Antiga (o ser é e o não ser não é), o modelo de estado centralizador e monopolizador (mesmo o modelo liberal que cresce em alguns países não deixa de ditar teorias e modelos centralizados) e cuja crise atinge o corpo social, a cultura e até mesmo a religião onde não faltam falsos profetas, adivinhos e apocalípticos, este apelo cresce em função da gravidade do momento.
Deixamos um alento de esperança, de certeza que é possível sair de uma crise com equilíbrio, responsabilidade e um olhar desapaixonado sobre os problemas, paixão pela vida sim, mas não a de fanáticos e salvadores da pátria que pouco ou nada colaboram com saídas humanitárias e responsável sobre o futuro humano.
A volta do mal
Ainda que por ingenuidade ou por contexto social, de tempos em tempos demônios, existentes ou não, voltam a nos assombrar, há entre a realidade e a ficção uma verdade: ele existe, senão no imaginário (como pensam alguns) também como entidade real.
Os filmes de terror, quase todos mera ficção existem, e o seu público não é pequeno como o caso de “O exorcista” (1973) e “A hora do pesadelo” ( 1980) dois clássicos do gênero, porém há filmes que pode-se destacar como obras de arte: “Nosferatu” (1922 e remake 2018) e “Corra!” do diretor e roteirista Jordan Peele, que concorreu ao Oscar de melhor filme em 2018.
Na obra dirigida por F. W. Murnau (1922) há algo do expressionismo alemão, com técnicas do uso de sombras, tratado mais como uma loucura em torno do desconhecido, lembre-se também que estamos num entre-guerras quando Alemanha e Rússia assinam o Tratado de Ropallo, tentando formar um contrapeso na geopolítica mundial da época, acordo que durará até Hitler.
Certamente há outros filmes, porém, reaparecem agora com tom e cores mais fortemente religiosas: “O exorcista do papa” (Julius Avery, lançado este ano) que fala de fatos acontecidos com o padre Gabriele Amorth que foi oficialmente exorcista de Roma reconhecido pela Igreja Católica, no filme encenado por Russel Crowe (Caras – Nice Guys, Promessas de Guerra – The Water Diviner), o outro filme de demônios é Nefarious (Chuck Konzelman e Cary Solomon, baseado no romance de 2016 de Steve Deace: A Nefarious plot).
Enquanto Nefarious é mais uma ficção sobre a existência e artimanhas do Demônio, com algum contorno cristão, O exorcista do Papa é baseado em fatos reais narrados pelo próprio padre Gabriele, que realizou mais de 60 mil exorcismos e certamente alguns de destaque foram selecionados, entre as conversas que estão ali narradas, cito a mais importante, na qual numa possessão ele diz que o demônio só pode fazer aquilo que Deus permitiu, seu poder é limitado.
Não aprecio o gênero, porém tive mais paciência com “O exorcista do papa” por curiosidade e tentativa de entender a problemática, mas situada num contexto de confusa questão social e perigo de uma guerra ainda mais sangrenta do que as que estão em curso, mas sem maniqueísmo, a potência do mal não é superior a do bem, e seus efeitos não são comparáveis.
O mal tem existência real pela ausência do bem, assim pensava Agostinho de Hipona que foi maniqueísta na juventude.
Cosmogonia, cosmológica e escatologia
Já desenvolvemos aqui a ideia de Kosmos na filosofia grega, que é um tempo que designa todo universo em seu conjunto, mas é também “ordem”, “beleza” e “harmonia” para os gregos, agora com potentes telescópios como o Hubble e o James Webb sabemos que há também um caos e uma desarmonia no universo, mas fica a pergunta mais profunda: como tudo começou?
Cosmogonias são um corpo de doutrinas, desde princípios religiosos e míticos até os científicos que procuram explicar a ordem e o princípio do universo em sua cosmogênese.
Na medida que o homem tornou-se mais sedentário procurou adaptar-se melhor a natureza para satisfazer as necessidades dos animais e plantas, precisando por isto olhar para o céu e entender as estações do ano para controlar melhor as plantações e pastagens para os animais.
Praticamente todas as civilizações (ou era civilizatórias) elaboraram suas cosmogonias, por exemplo, na civilização ocidental o modelo geocêntrico de Ptolomeu (a terra é o centro), passou para o modelo copernicano (o modelo heliocêntrico), agora com a potência do James Webb estamos olhando para as primeiras galáxias e isto é possível por que a luz que chega até nós já viajou vários anos luz, então estamos vendo uma imagem do passado.
Assim nossa visão da cosmogênese vai aos poucos se modificando, no momento por exemplo, o telescópio que trabalha com um espectro diferente da luz, o infravermelho, conseguiu avistar uma galáxia de 400 milhões de anos depois do big bang (se esta teoria estiver certa), o que significa 13,5 bilhões de anos atrás (foto), ou seja, estamos vendo quase nossa cosmogênese.
A cosmologia então se encontra cada vez mais próxima da cosmogênese e isto significaria uma visão das duas, mas ainda faltam as questões essenciais: de onde viemos e para onde vamos?
Falta assim uma visão escatológica, principio e fim, e uma questão já é certa, embora o planeta possa entrar em colapso e com ele nossa civilização, por ação de um cataclismo externo ou uma destruição de artefatos humanos: uma guerra, o próprio perigo de tantas usinas nucleares no planeta, lembremos o incidente de Fukushima em 2011 e Chernobyl, o planeta tem hoje 440 ativas e 23 em construção, além do arsenal militar em diversos países.
Em meio ao vento tempestuoso de nosso tempo, a cosmogonia cristã se ampara e espera na presença divina daquela leitura que diz (Mt 8,27): “Quem é este homem, que até os ventos e o mar lhe obedecem?” quando os apóstolos o acordam na barca por causa do tempo e oceano bravio.