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O coração e a fé

02 ago

O coração é um órgão vital, irriga o sangue em todo o organismo chegando a todas as células do corpo humano, quando falamos de crenças (elas estão ocultas também em objetos do conhecimento humano, acreditamos que uma coisa é de certa “forma”) não falamos apenas da fé.

Byung-Chul Han ao fazer sua análise partindo dos autores clássicos da filosofia ocidental, aborda uma perspectiva daquilo que vai chamar de “tonalidade afetiva”, se concentrando de modo principal em Heidegger.

Seu livro, diferente de outros que são só ensaios, tem “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger” (Ed. Vozes, 2023), seu primeiro livro a meu ver, com análise nova, humana e a até mesmo espiritual do cerne da filosofia ocidental.

Parte de um conceito caro a civilização judaico-cristã, que é o da circuncisão, porém da circuncisão do coração e não do órgão falido (a pele presa no início do pênis), é preciso lembrar que embora órgão masculino ele é emblema do poder, da autoridade e do desejo, foi culturalmente numa cultura bélica.

A parte de sua visão com sua visão oriental e que tem um sentido espiritual para toda a sua questão filosófica, Han vai desenvolver que é a circuncisão do coração, aquela que modula e rege o afeto, a circuncisão tem um sentido diferente do que é comumente falado, a polêmica entre cristãos e judeus no início da era cristã, é a circuncisão do coração.

A circuncisão é o ato de retirar a pele do órgão sexual masculino, porém mesmo no sentido bíblico já era a do coração, em Deuteronômio se lê: “Circuncidai, pois, o prepúcio do vosso coração, e nãos mais endureçais a vossa cerviz” (Dt 10,6), citando na epígrafe do primeiro capítulo do livro: “Circuncisão do coração” (Han, 2023, p. 7).

Assim, “esta circuncisão liberta o coração da interioridade subjetiva” (Han, 2023, p. 11), e há uma conclusão preliminar surpreendente em Heidegger: “O coração de Heidegger, por outro lado [confronta com Derrida], escuta uma só voz, segue a tonalidade e gravidade do “uno, o único que unifica” (Han, 2023, p. 14-15), para ele é um “ouvido do seu coração” e assim há algo forte de espiritual nisto.

É ali que o ser humano encontra sua essência: “permanece sintonizado com aquilo a partir de onde sua essência é determinada. Na determinação sintonizadora o homem é afetado e chamado por uma voz que soa tanto mais pura quanto mais silenciosamente ela ressoa através do sonante” (Han, 2023, p. 15) citando literalmente Heidegger.

Não dirá que é a fé, e revela a influência budista de seu pensamento, único elo, a meu ver, do autor com o idealismo, pois no budismo há uma elevação apenas pessoal, não há uma Pessoa do outro lado, que ressoa através do sonante, aquela voz do Espirito Santo.

A discordância de Derridá e Heidegger, esclarece o autor: “A ´polifonia´ que Derrida opõe à totalidade não exclui a tonalidade” (pg. 16) diríamos se estes autores Han, Derrida e Heidegger fossem cristãos, que Heidegger e Han seriam monoteístas e Derrida seria politeísta, porém é claro que esta “voz sonante” não é a de Deus, mas do interior.

Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

A forma e o conteúdo

01 ago

A filosofia moderna separou a forma do conteúdo, assim como se separa um rótulo de um ingrediente que existe num frasco, mas isto vem da compreensão reduzida do que é a matéria, o hylé dos gregos, cujo pensamento na terminologia aristotélica interliga-os no hilemorfismo (ὕλη, hýle = “matéria”; μορφή, morphé = “forma”).

Para que isto tenha um alcance antropológico, necessário ao discurso da diversidade cultural, é preciso ligar ato e potência, como o fez Tomás de Aquino, onde matéria não é aquilo que hoje designamos assim (como a substância por exemplo), mas sim aquilo que é como possibilidade ou em potência, escrito assim por Tomás: “matéria est id quod est in potentia” (matéria é aquilo que é em potência) (TOMÁS, ST I q.3 a.2 c), em termos atuais, enquanto se não é ato, é apenas um dado.

Assim o ato é a existência de fato, ou a atuação em si, ou seja, “forma est actus (forma é ato) (ST I q.50, a.2, obi.3), assim deixamos nos moldar por ideias, ações e pensamento que podem ser mais profundos ou mais rasos, fundados apenas em algumas palavras.

Assim a articulação dos binômios potência x ato e matéria x forma é deste modo, “matéria não é senão potência, já a forma é aquilo pelo qual algo é, pois é o ato” (TOMÁS, ScG II, c.43), estas categorias dão uma distinção da metafísica fundamental, e antropologicamente significam que uma coisa é a possibilidade de existir ou atuar: potência ou matéria, outra coisa é de fato existir ou atuar: ato ou forma.

Algumas teologias modernas querem separar corpo e alma, isto é sem fundamento escatológico e bíblico, senão a figura humana de Jesus seria dividida em duas: a divina e a humana, que estariam em oposição e lutariam uma contra a outra, e por isto que a antropologia cristã deve ser rigorosamente unitária, como o é em Tomás de Aquino.

A existência de um corpo na condição humana é a união entre a potência e o ato, entre a matéria e a forma (vista neste novo aspecto ligada ao conteúdo e essência), sem a sua existência de fato (forma) o corpo nem sequer existia, mas só a possibilidade de existir (em potência) o faz existir em ato, esta unidade é radical, já que a condição necessária para sua existência é o corpo, assim espiritualidade não é só “corpo” há uma essência nele.

É fundamental para compreender a antropologia cristã, escrita de forma clara por Tomás: “O ser humano não é apenas alma, mas algo composto de alma e corpo” (TOMÁS, ST I q. 75 a 4c), se por um lado nem todo materialismo (que não é hilemorfismo) nega a existência da alma, muita má teologia procura negar a existência do corpo, é a relação dualista moderna, cristalizada em objetividade e subjetividade, no qual ambas saem mutiladas, assim não foram “moldadas” com um espírito novo.

Segundo Tomás de Aquino, os corpos vivos humanos e a existência de fato (forma, chamada também por ele de alma intelectiva) é imortal, ao contrário dos demais corpos vivos não humanos, cuja existência tem início e fim, não o fim escatológico, mas o fim finalista de uma interrupção, pois todos os humanos morrem, e para ele a morte é explicada como uma deficiência provisória pela qual passamos apara uma existência imortal e ultrapassamos a deficiência radical do corpo vivo através da morte.

A metáfora do oleiro que transcende a análise simplista de simples adesão (Jr 18, 3-4): “Fui à casa do oleiro, e eis que ele estava trabalhando ao torno; quando o vaso que moldava com barro se avariava em suas mãos, ei-lo de novo a fazer com esse material um outro vaso, conforme melhor lhe parecesse aos olhos”, somos moldados e é bom escolher o oleiro.

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica São Paulo: Loyolla, 2001-2006. 8 v.

 

Contemplação e tesouros

31 jul

Não, não se trata da arte de observar a natureza ou o universo, pois também o ato de observar é já uma “vida activa” pois certamente não escapará alguma interpretação ou detalhe que nos chame a atenção.

Trata-se de outros sentidos: escutar sem interpretar, olhar com um olhar purificado e entender aquilo que é incompreensível a razão humana, assim não é uma atitude racional, nem um desvario ou delírio sensitivo, é um exercício da “inatividade” escreve Byung-Chul Han.

Escreve o autor em Vita Contemplativa: ou sobre a inatividade (Han, 2023, p. 11): “A inatividade constitui o Humanum. O que tornar o fazer genuinamente humano é a parcela de inatividade que há nele. Sem um momento de hesitação ou de contenção, o agir se degenera em ação e reação cegas. Sem repouso, surge uma nova barbárie.” (acima o quadro de Rembrandt O filósofo).

Portanto inatividade contemplativa não se confunde com preguiça, ausência de ação, mas um repouso para a ação clarividente e a fala profunda, diz o autor: “É o silenciar que dá profundidade à fala. Sem o silêncio não há música, mas apenas barulho e ruído. O jogo é a essência da beleza. Onde impera apenas o esquema estímulo e reação, de carência e satisfação, de problema e solução, de objetivo e ação, a vida se reduz à sobrevivência, à vida animalesca nua” (idem) e não por acaso se confunde com a vida moderna atual.

Não somos máquinas sempre destinadas a funcionar, a verdadeira vida da ação consciente, começa quando cessa a preocupação com a sobre-vivência (também no sentido do prolongamento da vivência) e nasce a necessidade da vida crua e não nua.

A confusão apareceu por causa da confusão entre história e cultura, não a história das ideias (no sentido do eidos grego), mas aquela que ignora a cultura e trata apenas do prazer, do poder e da opressão dos povos, diz o Han: “a ação é, de fato, constitutiva para a história, mas não é, a força formadora da cultura” (Han, 2023, p. 12) pode até ser uma consequência, mas feita de reflexão silenciosa é só barulho e manifestação impulsiva.

E acrescenta no mesmo trecho: “Não a guerra, mas a festa, não as armas, mas as joias, são a origem da cultura. História e cultural não coincidem” (Han, idem).

Podem parecer estranho as “jóias”, mas o núcleo de nossa cultura é o ornamental. Ela está situada além da funcionalidade e da utilidade.  Com o ornamental que se emancipa de qualquer finalidade ou utilidade, a vida insiste em ser mais que a sobrevivência” (idem).

Assim é o exemplo bíblico da vida eterna, onde o narrador explica a fala de Jesus: o reino de Deus (Mt 13,44) “é como um tesouro escondido no campo. Um homem o encontra e o mantém escondido. Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo” e dirá isto também sobre um comprador de pérolas que encontra uma grande pérola.

HAN, Byung-Chul. Vita Contemplativa. Trad. Lucas Machado, Brazil, RJ: Petropolis, 2023.

 

Construir a vida e não excluir

30 jul

Tanto Nietzsche em A gaia ciência como O pós-Deus de Peter Sloterdijk, afirmaram a morte de Deus, na verdade é só uma tentativa de matar Deus, porque se não existe não se pode matá-lo e se existe é imortal, então só podemos apenas apagá-lo de nossa mente temporariamente pois voltará intuitivamente, a prova é que ateus não O ignoram.

O texto de Nietzsche é claro, mas também foi deturpado: “O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. ‘Para onde foi Deus’, gritou ele, ‘já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis?” (Nietzsche, A gaia ciência, § 125)

Assim não podendo matá-lo destroem seus valores “simbólicos” como a Santa Ceia nas olimpíadas, por exemplo, ou deturpando a história verdadeira do Deus homem: Jesus, como fez a teologia idealista de Ludwig Feuerbach que postamos recentemente, criou um “absoluto” vazio e abstrato, que não pode ser Deus pessoa trinitária.

Porém a reação ao Teocídio hegeliano, aquele de Feuerbach, em que Deus só existe na mente e assim é um algo do pensamento ideal e só com a “transcendência” idealista o alcançamos, há a reação religiosa de se fechar na “comunidade dos eleitos”, dos prediletos de Deus, os escolhidos por critérios que uma certa comunidade determina e o restante são leprosos, pecadores públicos e indignos do “reino”, má semente.

A parábola do joio e do trigo é clara, ambos nascem em um mesmo ambiente, porém uma não dá frutos, não participará da colheita do trigo e será separada como palha.

De certa forma a reação a este Deus elevado, distante dos homens “todo poderoso” não passa de uma visão do poder também mundano e temporário e de uma forma de ascese desespiritualizada, a vida de “exercícios” como preconiza Peter Sloterdijk.

A verdade espiritual é aquela em que todos são incluídos, existe unidade e respeito a todos e ninguém é visto como leproso ou má semente, isto é interpretação farisaica, porém é claro que boa semente dá bons frutos então pode-se olhar a realidade a sua volta, mas sem julgamento preconceituoso ou excludente.

Fundada no perfeccionismo e no moralismo extremado, a moral que é importante e não se deve negá-la, porém, levada ao extremo torna o “vício” muito mais próximo e passível de cair nele, ou seja, são na verdade são falsos moralistas porque não conseguem pôr em prática o que defendem, e são estes falsos exercícios que levam a uma prática de desvios e aberrações morais.

A união destes conceitos com o verdadeiro humanismo, aquele cuja inspiração é divina, não pode e não deve levar a atitudes de exclusão, de isolamento e falta de caridade.

Tudo tem que ser pensado de um modo equilibrado, da política à religiosidade, da família a vida social, da ação social à contemplação.

 

Atos de sabotagem e abertura das Olimpíadas

29 jul

Horas antes da abertura das Olimpíadas de Paris vários “atos de sabotagem” foram realizados de maneira “preparada e coordenada” afetando as linhas ferroviárias da França, o primeiro ministro francês Gabriel Attal descreveu o evento, segundos fontes francesas, como “maciço e grave” e agradeceu aos bombeiros e expressou indignação pelos transtornos ao deslocamento de turistas e franceses.

A cerimônia de abertura foi com uma mensagem estranha e sem a beleza que sempre a acompanhou em versões anteriores, a apresentação de Lady Gaga foi gravada segundo explicações “devido a chuva”, uma cerimônia de pessoas trans numa mesa pareceu uma ironia com a santa ceia (aquela famosa pintura de Leonardo da Vinci) e um mascarado que aparece coma tocha olímpica parece um personagem dos jogos de videogame Assassin´s Creed.

Também o cavalo branco simulando um cavalgar sobre as águas é algo de simbologia enigmática, talvez o cavalo do apocalipse ou alguma alusão a guerra.

Salvo a famosa canção francesa L´Hymme á l´amour de Edith Piaf, interpretada por Celine Dion, desfilaram com a tocha diversos atletas franceses e acenderam um a pira olímpica num balão, cuja iluminação é mantida por um sistema elétrico.

Houve ainda no sábado uma parte de apagão em Paris e o próprio comité olímpico, através do porta-voz do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos Paris 2024: “assumimos que ultrapassamos a linha”.

As guerras continuam, a esperança de paz aumentou uma vez que a Rússia pela primeira vez chegou a admitir uma volta ao “acordo de Istambul” anterior a invasão da Ucrânia.

 

Promoção social e bens públicos

26 jul

A promoção da vida social e a verdadeira boa administração dos bens públicos (água, energia e saneamento) são os verdadeiros insumos básicos de promoção social da vida humana, porém é o que se vê só em propagandas eleitorais, mostram riquezas que serão acessíveis a todos, mas poucos e só em época de eleição.
Falar da fome é o slogan de muitas eleições, em todo mundo, porém as condições que são sustentáveis para isto pouco ou quase nunca são entendidas, e elas dependem sim de um maior equilíbrio de mercados mundiais e garantias de importação e exportações dos insumos básicos, inclusive para a saúde.
Crises econômicas, basicamaente é um desequilíbrio entre a produção e distribuição de bens essenciais e o consumo, e surgem em setores isolados da economia, não é necessário que haja a escassez de vários bens, é um desiquilíbrio em cascata e os capitais e bolsas são mais reflexos do que origem destas crises, que incluem as guerras e revoluções.
Também fatore naturais podem influenciar (secas, inundações, epidemias ou algum evento de grandes proporções como um terremoto ou uma crise atômica que agora é possível).
Assim os verdadeiros tesouros devem ser aqueles que levam a humanidade a um maior equilíbrio e sustentabilidade, incluindo os cuidados com a natureza, pois dela dependem as produções de alimentos, de energia e até mesmo de bens de consumo menos essenciais.
Os verdadeiros tesouros assim, mesmo que só pensemos nos terrenos esquecendo dos espirituais que nos dão conforto e verdadeira alegria, são aqueles que propiciam um maior entendimento civilizatório, a tolerância entre raças e culturas, e nelas não pode ser relegada a segundo plano as que incluem o plano espiritual.
A cultura cada vez mais crescente do individualismo, do ódio (de diversos tipos), da acumulação de bens como símbolo de felicidade, do consumo até mesmo do corpo e da mente humana levam ao caminho oposto daqueles que querem construir tesouros reais.
Os ilusórios passam, a traça consome, o tempo enferruja ou apodrece, porém o que permanece é essencial e dele depende uma verdadeira ascese espiritual, um bem que vislumbre as gerações futuras, e para os que creem, a eternidade.
Assim a crise atual é na sua base uma crise do pensamento, dos valores éticos e solidários, do respeito mútuo e de uma clareza sobre o que significa construir tesouros verdadeiros.

Na bíblia Jesus pega poucos pães e peixes e distribui, o significado é bem direto e simples o pouco distribuído alimenta a todos, e mal distribuído causa opulência de alguns e fome e miséria a muitos. 

 

Espírito e poder

25 jul

Poder e autoridade parecem se confundir, porém não é verdade na medida em que crescem no mundo governos autoritários e este foi sempre um péssimo sintoma civilizatório porque indica tanto as contendas como no limite delas as guerras.

Byung-Chul Han em seu livro “No enxame” explica após dizer sobre a necessária distância na esfera pública, que as “ondas de indignação indicam, além disso, uma indicação fraca com a comunidade” (Han, No enxame, 20,18, pg. 22) e ele tem um livro específico sobre o poder.

O livro O que é poder? (2019) tem uma longa análise sobre a questão em Hegel, isto se justifica tanto pela influencia no pensamento ocidental quanto pela incidência da visão de poder que atinge toda a esfera pública, porém salientamos o seu vago conceito de Absoluto e a influência até mesmo religiosa, vista no post anterior.

Sua análise é importante quando remete aos conceitos ontológicos, assim define que “o ente é, até quando for finito, rodeado pelo outro” (Han, 2019, p. 110) e o Ser deve gestar uma negatividade em si, não se trata aqui de “maus pensamentos” e sim o conceito que cita em Paul Tillich (1886-1965) que a potência do ser como “capacidade dos seres vivos de superar a negatividade, ou como ele diz, o “não ser”, ou seja, a quem não envolve-la na autoafirmação” (pg. 111).

Citando-o Han afirma: “tem-se mais potência de ser, porque deve ter sido superado mais não ser, e enquanto possam-se superá-lo. Quando não puder mais aguentar ou superar, então é a impotência total, o fim da potência do ser, o acontecimento. Esse é o risco de todo ser vivo” (Han, 2019, p. 111).

Cita a tese de Foucault que o ser humano seria “o resultado de uma submissão” (pg. 118) e Hegel que pensa que o poder deve atuar primariamente de “maneira não repressiva” (pg. 119) entretanto, ambos não abandonam a ideia do Absoluto, que na verdade vem do Príncipe de Maquiável e do Leviatã de Thomas Hobbes, e o como diz o autor: “o poder promete liberdade” (pg. 121).

A necessidade de criação de uma religião “neurótica” do poder, para Hegel viria da ideia de Deus, o poder que Ele tem o poder de “ser ele mesmo”, isto vem do idealismo que não supera a divisão entre sujeito e objeto, ou seja o Criador e o criado (seres e entes) não se compõe.

Não há dúvida que o poder, sem a necessária negatividade do não ser (a inclusão do Outro) é uma neurose como diz Hegel, e assim seu “deus” ou “o espírito” “ainda seria uma aparência desta neurose” (Han, 2019, p. 121).

“A dor da finitude pode ser perfeitamente a dor de qualquer limite que me separa do outro, que apenas pode ser superada pela criação de uma continuidade particular … ela não tem a continuidade do self que o poder cria. Ela não tem a intencionalidade da volta-a-si” (Han, 2019, p. 121).

O poder neurótico de Hegel não é o do Criador, é do ser enjaulado no si-mesmo, incapaz de olhar e servir o Outro, de sair do si, de negar-se para servir o Outro, é um poder neurótico.

 

A religião idealista

24 jul

Entre os jovens hegelianos, aqueles que junto com Marx criticaram os “velhos hegelianos”, em especial David Strauss e Bruno Bauer, estava Ludwig Andres Feuerbach (1804-1821) muito mais conhecido pelas “Teses sobre Feuerbach” de Karl Marx, do que por sua própria obra, mas os seus conceitos, ainda que criticados por Marx o influenciaram também além dos outros “novos hegelianos” conhecidos também como a “esquerda hegeliana”.

Feuerbach vindo de um ambiente católico foi educado no protestantismo, desde jovem orientou-se para a religião iniciando seus estudos na Universidade de Heidelberg, mas ao conhecer Friedrich Hegel, abandona a teologia e torna-se aluno deste filósofo por dois anos, o que provoca profundas mudanças em seu pensamento e cria o que chamo aqui de “religião idealista”, mas o Deus do cristianismo não é mais o deus de Feuerbach.

A ideia de absoluto de Hegel é bem conhecida, onde o seu “em si” que é seu “uno” não se aliena à matéria para enfim surgir como “Espírito Absoluto”, mas o homem, como espécie consciente, é o próprio infinito e absoluto, sendo a razão do homem para sua “libertação” em detrimento de uma doutrinação ou de uma cristianização (Feuerbach, 2013, p. 2-23) este Deus que o homem “imagina” é para o jovem hegeliano agora na verdade seu próprio ser, sua própria essência, é preciso entender que Ser para os idealistas não é o Ser ontológico, e sim um ser “antropológico”.

Assim a religiosidade, na análise idealista, não estaria vinculada a um ser imaterial, que transcende o humano (a transcendência idealista é o conhecimento do objeto), não é um Ser atemporal e criador, mas a própria natureza, noutro caminho Spinoza também explorou isto.

Assim Feuerbach entende que a relação do homem com o seu “deus” que é diferente de outros “jovens hegelianos” (Marx vai criticá-lo), o seu deus ou deuses, está fundado na sua própria ex-sistência, assunto também explorado na ontologia, mas visto como uma relação com o “tempo” ou ser o ser temporal.

O deus idealista é aquele que o homem externaliza “nada mais é do que a essência divinizada” (Feuerbach, 2009, p. 29), de certo modo mais ainda como “a história da religião é a história do homem” (Feuerbach, 2009, p. 30) e aqui encontra-se o marco divisório com Marx porque este vê a história como o seu “modo de produção”, a relação com o trabalho e os meios de produção para realiza-lo: feudalismo, capitalismo, etc.

Assim Feuerbach entende que a relação do homem com o suprassensível, que para ele “existe” isto é tem sua ex-sistência, é na verdade uma “patologia estética”, uma amalgama de sentimentos místicos que são ao mesmo tempo alicerce e fomentador da religiosidade: “Luto e dor pela morte de uma pessoa ou pela diminuição da luz e calor, alegria pelo nascimento de uma pessoa, pela volta da luz e do calor após dias gelados de inverno ou pela colheita, terror diante de fenômenos em si terríveis ou pelo menos na imaginação do homem … (Feuerbach, 2009, p. 49).

Assim o grande equívoco, mesmo para “religiosos”, é separar a substancialidade da espiritualidade, é ao nosso ver a essência da falsa ascese contemporânea.

FEUERBACH, Ludwig. Preleções sobre a Essência da ReligiãoTrad. José da Silva Brandão. Petrópolis/RJ. Editora Vozes, 2009.

FEUERBACH, Ludwig. A Essência do CristianismoTrad. José da Silva Brandão. Petrópolis/RJ. Editora Vozes, 2013.

 

Bem comum e sociedade

23 jul

Engana-se quem imagina que a palavra estejam ligadas só às visões religiosas, socialistas ou aos bens naturais (ar, água e bem estar social), na verdade muitas teorias econômicas se debruçaram sobre o tema, desde filósofos morais até economistas públicos, numa lista que inclui Tomás de Aquino, Nicolau Maquiavel, John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Adam Smith, Karl Marx, embora opostos Marx releu Adam Smith, John Stuart Mill numa visão utilitarista até John Maynard Keynes, numa visão de estado intervencionista na economia.

Tomás de Aquino considerava “o bem comum” (bonum commune, escrito em Latim) o objetivo da lei e do governo; John Locke declarava que “a paz, a segurança e o bem público do povo” são os objetivos da sociedade política, e argumentou ainda que “o bem-estar do povo será a lei suprema”; David Hume argumentou que as “convenções sociais” são adotadas e recebem apoio moral em virtude do fato de servirem ao interesse “público” ou “comum”, isto na teoria social que estruturou o estado moderno.

A visão mais avançada, dentro dos moldes do contratualismo, foi a visão defendida por Jean-Jacques Rousseau, a sua teoria não prescinde de dois componentes legitimadores: a ideia de que a participação de todos na soberania do corpo social (igualdade política) deve ser acompanhada de um determinado nível de igualdade substancial, e segundo, um princípio racional de moralidade política, que mantem a vontade geral dos interesses daqueles que são diversos ao verdadeiro interesse comum.

Fosse perseguida esta visão: liberdade, igualdade e fraternidade se comporiam de modo a ajustar-se ao interesse do bem-comum, porém lembra Edgar Morin em seu livro “Fraternidade: para resistir à crueldade do mundo” (no Brasil editado pela Editora Palas Athena) que o lema da revolução francesa não são complementares, mas precisa de um esforço, de uma ação humana prática e reflexiva para se integrarem e interagir entre si.

Há também uma discussão moderna sobre a ideia que o bem comum nunca é bem gerenciado senão em mãos privadas, a chamada Tragédia dos comuns (Tragedy of Commons) que foi contestado pela economista Elinor Ostrom, primeira mulher Nobel de economia.

Não significa que tudo vai passar para as mãos do estado, ou como diz a teoria keynesiana o estado deve intervir na economia, este sim provoca grandes tragédias e no Brasil os bons economistas tem arrepios lembrando fatos históricos destas intervenções: plano Collor, congelamento de preços, etc. todos deram grandes prejuízos a economia popular.

Mas aqui queremos centralizar os estudos sobre os bens comuns naturais: o meio ambiente.

Tragedy of Communs foi um texto de sucesso inicial de Garrett Hardin, porém ele recorria a tema ambientais para justificar este tipo de “tragédia”: o aumento do consumo dos recursos naturais, e por outro lado a forma como os seres humanos se organizam para extrair esses mesmos recursos, e este é parte da justificativa de mal uso de recursos ambientais.

A aprendizagem que os estudos de Elinor Ostrom nos trouxe é aquela o uso sustentável dos recursos de bem comum, são soluções alternativas ao fatalismo de Hardin, para ela tanto a propriedade estatal como a privatização, estão sujeitas ao fracasso conforme as circunstâncias (Ostrom et al. 1999).

Ostrom et al. Revisiting the Commons: Local Lessons, Global Challenges, Science, Vol. 284. no. 5412, pp. 278 – 28, 1999.

 

Apagão cibernético e as guerras

22 jul

O apagão que aconteceu na semana passada é um dos maiores da história, causou confusão em muito aeroportos (veja o gráfico dos Voos nos EUA ao lado), TVs, bancos, hospitais e serviços que dependem de comunicação digital, porém não foi com motivação bélica, a empresa CrowStrike, por trás do apagão, declarou sexta-feira (19) que “isso não foi um ataque cibernético” e que a equipe da empresa “está totalmente mobilizada para garantir a segurança e estabilidade dos clientes da empresa”.

Segundo entrevista de Rob D’Amico, um ex-agente do FBI, apesar de não haver motivação bélica: “Eles podem não estar envolvidos no que aconteceu, mas estão observando o que aconteceu, quais foram as reações, os tempos de resposta, como isso foi corrigido, para que, se considerarem uma operação cibernética ofensiva contra os Estados Unidos, possam mapear o que foi feito”, disse em declaração à CNN.

É bom lembrar que o início histórico da Internet foi um projeto junto ao DARPA, um departamento americano para projetos estratégicos que previa um funcionamento em rede que não prejudicasse a comunicação, assim a primeira rede eletrônica chamou-se Arpanet.

Isto é extremamente estratégico porque uma pane pode cibernética pode deixar indefesas tanto o sistema de comunicação como a própria defesa, que depende de comunicações para serem acionadas, fragilizando extremamente o sistema que estiver sob ataque.

A Ucrânia tem anunciado que tem conseguido afetar diretamente os sistemas de comando e defesa da Rússia, enquanto a Rússia procura fragilizar o sistema de abastecimento de energia e canais de comunicação terrestre da Ucrânia, também planeja uma ferrovia em seus domínios em solo ucraniano, revelando táticas de defesa e ataque diferenciadas.

Na medida em que avançam as retóricas bélicas, também as guerras políticas e ideológicas cotidianas, um apagão se anuncia maior que o cibernético, as mentes e as almas se tornam cada vez mais turvas e o horizontes sombrio esconde esperanças, refúgios e clareiras.

Aos que lutam e desejam a paz nada falta, nem mesmo aquilo que a guerra e o ódio tentam retirar a paz cotidiana, o momento de descanso e lazer, não aquele fantasioso da orgia e das falsas liberdades que destroem uma vida frutífera e feliz, há sempre uma sombra, uma clareira e uma pausa para respiro em meio a aceleração moderna.

“Mesmo que eu passe pelo vale da sombra da morte nenhum mal eu temerei” (Salmo 23:4) diz o salmista do período sombrio do povo hebraico, e assim cantam alegres aqueles que desejam e lutam pela paz.