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Arquivo para junho, 2020

Da episteme grega a fenomenologia de Husserl

16 jun

Os primeiros filósofos, pensando em filosofia como amigos da sabedoria, foram na história ocidental os pré-socráticos, o que eles procuravam era uma ruptura entre o mito e a filosofia, onde no primeiro a verdade é estabelecida pelos oráculos e a segunda é procurada, o que em Platão está simbolizado pelo mito da Caverna.

Platão separou a doxa da mera opinião pela episteme, a sistematização do conhecimento, que em Aristoteles ganharia uma organização chamada de Organon, podendo ser traduzido como “ferramenta”, “instrumento”, no entanto é sua episteme organizada em: categorias e estruturas, no qual estabelece seu método, apesar de não estar declarado explicitamente por Aristóteles, seus comentadores latinos estabelecem que esta lógica era o instrumento para as ciências.

A querela dos universais foi uma filosofia que surgiu a partir de um fragmento encontrado da Obra de Boécio, se existem “conceitos” universais, ou seja, se podemos classificar as ciências em categorias, o que se constituiu uma polêmica entre nominalistas e realistas, Duns Scotus (1266-1308) foi realista  moderado (criou o princípio da e hecceidade, a qualidade e propriedade de ser “isto”) e seus discípulo Wilhem Ockam (1285-1347) um nominalista.

Tomás de Aquino (1225-1274) da corrente realista, elabora que era possível uma elaboração que unisse os universais vindo das categorias gregas com uma procedência direta formal (lógica) entre o objeto e sua essência (que representa a forma ideal do objeto), e assim formula a ideia de substância, para Scotus o principal era a experiência.

A ontologia de Tomás de Aquino parte da ideia que alguma coisa existe em essência, se de alguma forma existe mesmo não tendo existencial material, esta coisas que existem em essência existe ontologicamente, estava formada então uma onto-teologia.

Franz Brentano (1838-1917) vai elaborar bem mais tarde o conceito de intencionalidade, a partir de uma sub-categoria de substância, a categoria da consciência.

A categoria “intencionalidade” é uma revisão naquilo que a escolástica tomista chamava de in-existência (ou o existir em, dentro de) intencional de um objeto na consciência, ou o que pode ser chamado de referência a um conteúdo (Beziehung) ou direcionamento (Richtung) a um objeto.

Assim em Brentano o fenômeno psíquico que produz a existência de uma “intentio” significa, literalmente a existência dentro do que pretende ser, como um encaixe dentro dele.

Assim o ideal da neutralidade científica, que pressupõe uma cisão sujeito-objeto, cria um problema para o conhecimento, por que ele supõe que a informação fora pode tornar-se uma compreensão dentro, assim o problema epistemológico é um problema de organização do objeto fora para uma compreensão dentro, ou seja, ontológica, uma in-existência (existir dentro).

Será Edmund Husserl (1859-1938), aluno de Franz Brentano, que proporá o método da fenomenologia transcendental, que significa “vasculhar” o fenômeno, recuperando um conceito grego do epoché, colocar todos os conceitos entre parêntesis, e ao mesmo tempo fazer a redução eidética (diferente das ideias que é um conceito do racional-idealismo), através dos conceitos de noese e noema.

Enquanto noesis é o ato intencional ou a percepção imediata do objeto, noema é o conteúdo intencional, ou aquilo que remete a noesis ao objeto, é a possibilidade de conhecimento.

Assim ao relacionar um conjunto de noesis com conteúdos relacionados a um objeto (noema) estamos criando uma fenomenologia existencial, e esta é essencialmente uma hermenêutica.

 

A covid ainda avança no Brasil

15 jun

O flagelo da pandemia que poderia ter unido ao Brasil agora transforma o medo em terror, as taxas continuam avançando mesmo que o número de mortes permaneça num platô em torno das mil mortes diárias, com variações para cima e para baixo.

O resultado que dá uma sentença agora é a taxa de contaminação por mil habitantes, e o inverno chega no país na próxima semana, cidades que abriram o comércio começam a recuar, mostra uma política vacilante entre salvar a economia ou reduzir o número de mortes, e a luta política.

A polarização existente desde as eleições ameaça voltar com mais radicalidade, não há um cenário que nos dê esperança, nem de reduzir a mortalidade, que deveria ser prioridade, nem de resolver a crise política que poderia dar um alento e conduzir a uma política forte de isolamento social.

Assim o país vai se tornando o caso mais crítico e contribui para um isolamento internacional, os que queriam salvar a economia ainda não entenderam que uma política séria de combate ao covid minimizaria os resultados econômicos, salvaria vidas e talvez unisse um país cada dia mais dividido.

Não faltam comentaristas no mínimo maldosos, li de um famoso filósofo midiático que depois haverá alegria e euforia, gostaria de acreditar nisto, mas como só o desemprego já é enorme.

Se não houverem mentes sensatas e interessadas em salvar vidas (que também minimiza os custos econômicos) navegaremos em situações confusas e que os dados já mostram, não há nenhum sinal que a convid pode recuar, defendíamos no início de maio o #lockdown, se vier agora virá como medida de desespero, e sem apoio popular, os 3 meses de quarentena mal feita, esgotaram o ânimo da população.

Não é um conflito causado pela mídia, pela oposição ou pela ideologia, é falta de sensatez e sabedoria, colocamos aqueles que estão na frente da batalha: os médicos, enfermeiros e socorristas, além dos trabalhadores de serviços essenciais em situação difícil, cansaram de nos pedir: fiquem em casa, não foram ouvidos.

A esperança é que a própria doença estacionada no platô de mil morte diárias comece a recuar.

 

O esgotamento do humanismo e co-imunidade

12 jun

Quando Peter Sloterdijk proferiu sua palestra “regras para o parque humano” em 17 de julho de 1999 num colóquio dedicado a Heidegger e Lévinas, no castelo de Elmau na Baviera, apesar de ter na platéia Teólogos a reação maior foi dos meios de comunicação, ao afirmar o surgimento de uma “antropotécnica” e manipulações genéticas, os ecos foram ouvidos na França e também no Brasil onde foi publicada uma reportagem no Caderno Mais da Folha de São Paulo.

O que o filósofo alerta, em sua linguagem rica em metáforas para tornar sua intrincada filosofia mais clara, afirmava que o trabalho de domesticação humana havia fracassado, em resumo, esta era sua resposta à Carta sobre o Humanismo de Heidegger, e a sua palestra se tornaria um livro de grande repercussão.

Depois vieram outras polêmicas, sobre a ecologia por exemplo, afirmou  que “oscilaremos entre um estado de desperdício maníaco e de parcimônia depressiva”, em palestra intitulada “sobre a fúria de titãs no século 21” ou seja, entre duas forças opostas: o minimalismo e o maximalismo, o que chama de frivolidade de nossos atos.

Falou também na referida palestra, sobre a decadência do conceito da ética: “antigamente … vinha de um sentimento de obrigação, de virtude. A responsabilidade só se torna uma categoria importante quando as pessoas fazem coisas cujas consequências não conseguem controlar” e alerta que o termo responsabilidade é novo em filosofia, também nas ciências humanas.

Em resposta em uma entrevista ao jornal El País, o filósofo criador do conceito de co-imunidade, afirmou que a situação atual exigirá “a necessidade de uma prática mais profunda do mutualismo, ou seja, a proteção mútua generalizada, como digo em Você Tem que Mudar a Sua Vida”, livro sem tradução para o português.

Além desta necessidade, o que o conjunto da situação atual que revela um desequilíbrio global da natureza ao social, indica que fatores externos e inorgânicos (de alguma forma a natureza vai reagir) poderá acelerar o processo de mutualismo, como o vírus nos fez repensar a imunidade, talvez algum efeito aórgico poderá acontecer. 

O humanismo está preso a frivolidade do pensamento idealista.

 

 

Eucaristia e o efeito aórgico

11 jun

Assim como viemos da natureza inorgânica (seja o barro como acreditam os que creem, seja pela evolução das primeiras espécies primitivas) a evolução aórgica do mundo, o homem com sua mão plantará a videira e com seu trabalho fará o pão, alimento ancestral e presente em todas culturas.

O desvelar aórgico da virgem que concebe em seu ventre o Filho-Deus e recria em seu seio maternal a própria criação, e depois se manifestará em Pentecostes na vinda do sobre os Apóstolos como segunda manifestação aórgica, conforme afirma São Gregório Nazianzeno sobre este momento: “o amor de Deus não é ocioso; opera grandes coisas, se de fato existe”.

Este desvelar irá se completar como testamento do filho-Deus como uma aliança com os homens na Eucaristia: “em memória de mim o fareis”, a última manifestação aórgica de Jesus entre os homens, o Ser supremo torna-se Corpo no pão e vinho: a Eucaristia.

Diz sobre este fato Agostinho de Hipona: “O Senhor confiou-nos o Seu Corpo e o Seu Sangue em coisas tais que são reduzidas à unidade a partir de muitas outras, porque o pão é um, embora conste de muitos grãos, e o vinho é feito a partir de muitas uvas”.

Agora o Deus trinitário revela-se no Corpo Sagrado da Eucaristia em bebida e cozimento feito pelas mãos humanas, o vinho feito da videira e o pão cozido do trigo, e conforme diz-se no Cantico dos Canticos: : “Comei, amigos, e bebei; e inebriai-vos, caríssimos”, a festa do Corpus Christis deveria levar a milhões a alegria, mas a pandemia ainda limita a festa.

Porque Deus nos privou de tão grande festa, haveria uma manifestação aórgica ainda maior ? a relação da mãe Maria e seu Filho poderá ainda dizer algo mais sublime para a humanidade ? o sofrimento de milhões de pessoas e o medo desta pandemia talvez prepare algo ainda maior.

Conforme afirma o poeta Hölderlin: “onde há medo há salvação”, mas não é ainda agora.

 

Matris in gremio, a relação de sangue e a aórgica

10 jun

Para entender a digressão 10 de Sloterdijk é preciso entender sua relação com a tragédia, e um texto que certamente é do conhecimento do filósofo é a interpretação que Hörderlin faz da tragédia grega Édipo Rei de Sófocles, onde usa o termo aórgico para a busca de Épico para saber quem é, quando mais busca a consciência menos consciente torna-se em direção a tragédia.

A tragédia é que o pai Laio, havia ouvido do oráculo de Delfos, que o filho o mataria e se casaria com a mãe Jocasta, o rei o entrega a um pastor pobre para mata-lo, mas o pastor o cria e depois ele vai parar nas mãos de Políbio, rei de Corinto que o cria como filho, mas a tragédia se cumpre e depois Édipo mata o rei Laio que era seu verdadeiro pai e desposa Jocasta ao tomar consciência da verdade cega-se, a tragédia tem mais detalhes, aqui é só para entender o aórgico.

Porém Sloterdijk inverte esta história e retoma a mariologia cristã, em sua digressão 10 Matris in gremio (colo ou regaço da mãe), onde após analisar o texto De humanitae conditionis in miseria de Lotário de Segni (1160-1216) que viria a tornar-se o papa Inocencio III, que afirma que o líquido que se alimentaria a criança é o mesmo da menstruação que seria interrompida com a gravidez.

Sloterdijk, mesmo não acreditando que existam religiões (assim ele não tem esta questão), vai dizer “não há dúvida que Jesus, mesmo in gremio, deve ter sido provido de um diferente plano alimentar” (Sloterdijk, 2016, p. 557), e vai usar a Questio 31 do terceiro livro da Summa Teológica de Tomás de Aquino.

O argumento de Tomás de Aquino é que “nem mesmo um sangue melhor teria bastado para gerar o corpo de Cristo, porque, pela mistura com o sêmen humano, ele se torna geralmente impuro” (idem), e “ … a comunhão de Jesus com a mãe deveria realizar-se, ao contrário, por meio de um sangue que merecesse ser classificado como particularmente casto e puro”, e cita Tomás:

“… pois, pela ação do Espírito Santo, esse sangue é recolhido do regaço da Virgem e conformado em feto. E por isso se diz que o corpo de Cristo foi formado pelo sangue mais casto e puro da virgem” (Aquino, Suma Teológica III, 31, 5, 3, SP: Loyola, 2001-2002).

Antes de Tomás de Aquino, João Damasceno que já falamos da pericorese trinitária, vai levar ao extremo esta relação de sangue entre Maria e seu feto, citada assim por Sloterdijk: “Dado que a pericorese sempre implica a primazia da relação sobre o lugar exterior, ou justamente porque a própria relação funda o lugar em que se encontraram os que se interpenetram, o corpo de Maria não pode ser sepultado, após a morte de uma maneira usual” (SLOTERDIJK, 2016, pag. 558).

E assim nasceu a ideai de Maria ter sido levada ao céu, mas também é o nascimento 11 séculos antes de ser aceito, o dogma de sua Imaculada Concepção (que por uso popular tornou-se Conceição), assim “é a própria matriz de Deus que ofereceu miraculosamente ao escultor o material de sua escultura, e a Deus o material para tornar-se homem …” (Damasceno apud Sloterdijk, 2016, p. 558), que assim pré-nuncia a ação aórgica de Maria com Jesus e Deus-Pai, como uma pericorese in extremis (na foto, também usada por Sloterdijk, Virgem com Abertura, final do século XIV, Museu de Cluny em Paris).

SLOTERDIJK, P. Esferas I: bolhas. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.

 

Entre a filosofia e os mistérios

09 jun

A relação entre teologia e filosofia já fazem mais de 5 séculos se perdem, quando algum teólogo sério resolve falar de filosofia é para criticá-la ou para admiti-la acriticamente e então perde a fé.

Li o testemunho de ex pastor metodista americano, que escreveu: “Desisti do cristianismo porque afirma muito e explica muito pouco. Sabemos tão pouco sobre o Cosmos em que estamos flutuando – nossa casa é um sistema solar entre trilhões -, mas os teólogos se gabam e postulam sobre Deus, como se tivessem alguma maneira de saber tudo isto”, David Madison, Final Sermon in a Pandemic Time.

São indagações que muitos fazem, a minha experiência espiritual sempre envolveu algo que me tirava os pés da terra, embora eu me esforce para mantê-los ali, gosto de críticos da religiosidade de nossos dias, como Sloterdijk porque me acordam, e sua descrença no humanismo de nosso tempo é um guia para minhas questões atuais, como na pandemia e os problemas que a envolve.

Quando penso em conversão penso primeiro na minha e depois naqueles que estão comigo na caminhada e depois nos cristãos “adormecidos”. mergulhamos na pericorese, emprestei o texto a alguns amigos e eles me devolveram com comentários, fiz minha própria pericorese, minha fusão de horizontes.

E tive algumas respostas que não imaginava, uma delas sobre o que será o futuro do humanismo, descobrimos em meio a pandemia a solidariedade como também o racismo, a violência doméstica e a insensibilidade de alguns diante do flagelo, na figura acima A cruz nas montanhas de Caspar David Friedrich ( ca 1812).

A resposta e nova questão que encontrei foi na leitura de um texto de Sloterdijk, que ele chama de relação aórgica, está no Matrix in grêmio: um capricho mariológico, ele não é um teólogo, alias afirma que religiões não existem.

Minha questão ela a relação do orgânico, toda a natureza e humanidade e dela a pericorese divina, mas fundada na relação humana, e como se fosse um teólogo, Sloterdijk responde na Digressão 10 do primeiro volume da Trilogia Esferas:

Matris in gremio: Um capricho mariológico” (pag. 556) em que a interpenetração aórgica se alia à orgânica na gravidez, em Maria, do Filho de Deus, no qual os dois partilham do mesmo espírito e o mesmo sangue, e ambos na Trindade e no útero da Virgem, a interpenetração é surreal, além da pericorese.

Minha questão o que aconteceria se houvesse uma relação aórgica, o orgânico num fenômeno inorgânico real, duradouro, visível a todo ser humano e não apenas aos místicos ? Claro isto num ocorreu, mas se ocorresse ?

SLOTERDIJK, P. Esferas I: bolhas. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.

 

Pandemia: futuro incerto

08 jun

Após tentativas de controle do isolamento social, de dificuldades para tomar medidas mais duras, agora o Brasil mergulha num futuro incerto: faltam dados, uma política clara e planejamento.

Os dados oficiais dependerão agora da seriedade das Secretarias da Saúde regionais e do trabalho duro dos médicos e hospitais, e o planejamento da responsabilidade de autoridades locais, no plano mais geral há a proposta de uma abertura planejada, porém poderá ser desordenada.

Os dados que se dispõem indicam um aumento durante a semana que passou acima das mil mortes chegando a um pico de 1473, que recuou no fim de semana para o patamar de mil mortes.

A curva que traçamos parece refletir o cenário de instabilidade, embora defasada de 7 a 14 dias, pois as mortes são o reflexo de infecções nos dias passados, elas são os dados reais, pois mesmo que o grau de infecção esteja caindo para baixo de um, uma pessoa infecta outra, isto não significa que o contágio e a letalidade reduziram, no caso brasileiro é preciso entender a interiorização dos casos e os recursos regionais para o combate, como é o caso da Amazônia e regiões pobres.

A pressão dos grupos econômicos para abertura do mercado, a incerteza política e o jogo de alianças que é feito devido este cenário, tiram o foco da pandemia e se desloca ao cenário político, um quadro triste para o país.

Apesar de grandes grupos que realizam ações solidarias, do esforço dos médicos e enfermeiros, a lição que vamos tirando desta pandemia como povo é a pior possível, não temos apreço ao povo simples, nem mesmo com muitas mortes e do cansaço de quase 3 meses de pandemia.

Alguns países sairão melhores da pandemia como nação, o Brasil não, fomos incapazes de unir as forças, de sermos solidários nacionalmente com as dores de um flagelo e incoerentes com nosso amor que declaramos ao país, resta-nos fazer nossa parte e ter esperança que o vírus recue.

 

 

 

João Damasceno e a pericorese

05 jun

Mesmo aos que não creem o conceito de pericorese é importante porque torna a ideia de relação algo mais substancial, embora já se admita que o homem é um ser relacional, a relação está cheia de dualismos e interpretações não trinitárias (no caso dos cristãos) e pode levar a indiferença.

Depois de resolvido o dogma trinitário pelos padres capadócios, que explicaram que Deus é Uno e Trino, são pessoas (hipóstase) e mantem a unidade (ousia), Damasceno vai se debruçar sobre a relação entre as três pessoas e cria um termo usado também na filosofia: pericorese, a interpenetração nas relações, isto é a possibilidade de ouvir o Outro não apenas por respeito, que já seria um passo, mas tentando penetrar e entender as razões de seu pensamento.

Foi João Damasceno  (675-749) ou de Damasco foi um padre Sirio, que estudo direito e musica e na teologia estudou relação  de pericorese ou a relação trinitária, o termo emerge propondo a articulação entre a unidade e a comunhão na Trindade, parece simples dizer isto, mas difícil de entender e praticar, pois a maioria das relações excluem o Outro que é diferente, seja ele de cor, raça, credo ou cultura, muito a frente do seu tempo João Damasceno era amigo dos sarracenos, mas tarde a igreja católica o tornou santo.

No seu percurso teológico histórico procurou buscar algo que explicasse a relação, que estive de acordo com aquilo que as escrituras diziam de Deus e sua relevância na história: a articulação entre o conceito de Deus que é trino e uno, mas sendo cada um, uma pessoa singular (prosopon) e Deus, João estruturou a via intra-trinitária, a partir do conceito grego de pessoa: hipóstase.

Na palavra grega significa hypo, o que é sub, debaixo, e stasis, o que está sub-posto, como se fosse um suporte, porém como relação divina este conceito devia ser ampliado e explicado.

 O termo pericorese emerge nesta Teologia Patrística, como a articulação entre unidade e comunhão da Trindade, mas indo além, assim o Pai é uno no Filho e o Filho uno no Pai, e ambos unos no Espírito Santo, assim há uma interprenetração, é mais que pura relação, é Ser no Outro.

O problema de algumas interpretações religiosas é a relação estática dos três, que é a relação dualista que vem da filosofia idealista, onde sujeito e objeto estão separados e são relacionais por um tipo de transcendência, que na verdade nada tem a ver com o mistério Divino nem é religiosa.

O mistério divino tem a ver com o período Pascal, morte e ressurreição numa relação trinitária, na filosofia há algo semelhante que é a epoché, a suspensão de conceitos (ou juízos religiosos) porém colocados entre parênteses, gera assim uma abertura que permite a relação, e como resultado que cada pessoa é compreendida, ela não perde sua identidade e é capaz de entender o Outro.

Numa ascese espiritual mais profunda é o esforço de entender e amar o Outro que é diferente, que não é meu espelho, não tem os meus conceitos e juízos, não classifica o mundo como eu, a grande tragédia de nossos dias é a falta de pericorese, e assim de relações trinitárias.

Penso que a pandemia nos mostra isto, mesmo tendo uma grande dor que mata a todos e que sensibiliza muita gente, que abre o coração para olhar o sofrimento do outro, há aqueles que se fecham em grupos, ideias e esquemas para não olhar a dor, a fome e o desespero que a pandemia gerou, ou acordamos juntos ou perecemos juntos, ficar na nossa trincheira é não relacional.

 

A trindade e os padres capadócios

04 jun

O filósofo coreano-alemão Byung Chul Han da “A sociedade do cansaço”, partiu da análise de Vita Activa de Hanna Arendt (traduzimos Vita do latim, para vida até aqui), explicando que ela parte da prevalência na vida cristã da vida contemplativa, esclarece em nota que ela busca “uma mediação entre vita activa e vida contemplativa”, e mesmo não sendo cristão usa assuma passagem descrita por São Gregório: “temos de saber: quando exigimos um bom programa de vida, que passe da vita activa para a vita contemplativa, então, muitas vezes, é útil se a alma retorna da vida contemplativa para a ativa, de tal modo que se chama da contemplação que se acendeu no coração transmita toda sua perfeição à atividade.” (HAN, 2015, p. 39)

O corre corre do dia a dia não possibilita este balanço, porém em tempo de pandemia fomos chamados a repensar a nossa vida social, a nossa relação com as pessoas da nossa casa e também o consumo e a solidariedade aos que nestes tempos perderam empregos, passam limitações e estão vulneráveis.

Porém São Gregório tem um outro viés em seu pensamento sobre a trindade, com seus amigos também capadócios, esses padres se viram obrigados a fazer uma autodefesa da acusação do Triteísmo *3 deuses) que pesava sobre eles e então três grandes teólogos da Capadócia (Ásia Menor): São Basílio Magno (330-379), seu irmão de sangue Gregório de Nissa (+349), resolveram a questão.

Visto pela filosofia grega, que é a que dominou a cultura ocidental, “Mia Ousia treis hypostasis”, significa que ousia garante a unidade enquanto substantia et três persone garante que cada uma das três pessoas é única, e talvez o que seja mais difícil de compreender que são de fato três pessoas distintas.

Foi são Basilo o primeiro que estabeleceu a distinção dizendo que em Deus há três pessoas ou três hipóstases, como já escrevemos significa o prosopon que é o que para os gregos a pessoa.

Conforme escrevemos na semana passada houve um esquecimento da relação trinitária, em termos filosóficos é o dualismo de pensamento, a incapacidade de entender situações que são sempre de visões diferentes de mundo, mas que devem manter a unidade.

Já em termos religiosos significa a perda da capacidade relacional, a solidariedade e fraternidade com o outro, buscando uma religião ora maniqueísta, ora fundamentalista, sem qualquer apelo a unidade (ousia) e o respeito a dignidade da pessoa (hipóstases), enfim a relação trinitária.

Curiosamente o filósofo oriental e budista Byung Chul Han faz um diagnóstico muito atual, ele acrescenta que a “perda moderna da fé, que não diz respeito apenas a Deus e ao além, mas á própria realidade, torna-se vida humana radicalmente transitória” (Han, pag. 42).

HAN, B. C. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017

 

Translatio studiorum e as técnicas da escrita

03 jun

O longo período que foi desde o início da escrita registrada, a scriptura, até o surgimento dos copistas, chamado de oralidade mista, é chamado de translatio studiorum, onde a própria escrita vai passar por muitas variações técnicas, e nelas se destacam São Jerônimo que compilou e elaborou a primeira versão da Bíblia.

Neste período se destacam os chamados padres capadócios, Gregorio de Nissa (335, morto em 394), seu irmão Basílio, o Grande, e Gregório de Nazianzeno, cuja escrita é importante para o que tanto Hannah Arendt quanto Byung Chull Han vão analisar na vita activa, e aqui liga-se a informação em tempos de novas mídias, mas será feito no decorrer da semana.

Translation Studiorum, período de transferência de saberes, de uma época para outra quando as técnicas da cultura estão variando, e assim sua antropotécnica, entre diferentes culturas e religiões, sobretudo no Ocidente e no Oriente Médio, onde há a cultura do originária do livro das três grandes religiões abraamicas (vem do Pai Abraão), o Alcorão, a Torah e a Bíblia.

O translatio corresponde assim ao período de auge e decadência do pensamento greco-cristão, que possui mais enlaces do que é aparente, e que seria preservado e teria continuidade no mundo ocidental sob a forma de uma doutrina filosófica dominante e influente a trinitária e neoplatônica.

De Trinitate de Santo Agostinho é tão revelador quanto seu popular livro Confissões, e a influência de Plotino tanto não pode ser negada, como não pode ser supervalorizada, não é negada porque a concepção de Uno da alma em Plotino é essencial, e supervalorizada porque a conversão de Agostinho o desloca do centro deontológico de Platão, o Sumo Bem, para o ontológico: o Ser pessoa e trinitário do pensamento cristão.

Porém os padres capadócios trazem conceitos que podem ser explorados a luz do pensamento atual, Ousía (οὐσία, pronúncia correta é “ussía”), é traduzida um substantivo da língua grega dando origem a essência e substância, mas sendo feminina e conjugação no particípio presente do verbo “ser”, a interpretação heideggeriana é “presente” ou presentidade (ser-presente).

Também exploraremos o sentido da palavra hypostasis, do grego prosopon, vem da teologia grega com o significado de pessoa, e em articulação com o ousia dá um sentido ao trinitário.